quarta-feira, 30 de janeiro de 2008

Antes tarde...

Segue artigo que citei dias atrás... atendendo aos pedidos de alguns.

Boa leitura!




O carro que o São Paulo deve a Peixinho
Ignácio de Loyola Brandão

Tarde de janeiro, Araraquara, uma semana atrás. Cidade meio deserta, os que se foram para o réveillon ainda não voltaram. Um grupo expressivo está reunido no velório municipal para se despedir de Vera Alvares, parente chegada, amiga, mulher destemida que durante anos lutou contra a doença, mas foi por ela vencida. A enormidade de coroas de flores, uma delas da APAE, pela qual Vera batalhou anos, assistindo a um sem-número de pessoas, mostrou quem ela era, os amigos que fez. Pouco antes de o caixão ser conduzido pelas alamedas, veio uma ventania que vergou árvores, quase levou pelos ares uma banca de jornais. A água desabou violenta, todo mundo correu. Contaram que Vera tinha medo de chuva. Aquela vinha para se despedir dela ou para retardar um pouco a viagem final?

Quando percebi, estava ao lado de um homem magro, moreno, óculos modernos, bem disposto, ar de alguém que envelhece de bem com a vida. Todos que passavam, o cumprimentavam cordiais, estendiam a mão, faziam um aceno, davam um abraço. Quem era tão popular assim? Mário Sérgio Galera, um parente, me salvou, ao exclamar:- Peixinho! Você também!- Vim dizer adeus à Vera! Não podia deixar.Peixinho. Então era ele? Décadas recuaram. Peixinho era o ponta-direita da Ferroviária. Pequeno, frágil, entortava defesas, como se dizia. Rápido como azougue, outra expressão de época. Bem-humorado, galhofeiro, fazia que ia, ficava, fingia que sairia pela direita, saía pela esquerda, praticava sempre a jogada inesperada. Era alegria, jogava pelo prazer, era feliz naquele espaço estreito de campo que lhe concediam. Tempos que havia no interior um clube respeitado, amado, a Ferroviária de Esportes. Time que enfrentava o Santos sem medo. Perdeu muitas, mas ganhou o suficiente. Bazani, meio-campo, que morreu recentemente, dizia que eles ficavam observando a entrada do Santos. Se o 'negão', na sua expressão, o Pelé, entrasse com a bola aninhada nos braços, ia ser pauleira, jogo impossível de vencer. Pelé declarou um dia que um de seus marcadores mais duros e mais leais sempre foi Rodrigues, da Ferroviária. Foi a esse time que Peixinho pertenceu. Nunca soube de onde veio o apelido, uma vez que seu nome é Arnaldo Poffo Garcia.

Fiquei ali imaginando que parece acabada a época dos pontas que avançavam até a linha de fundo para centrar bolas, fazer cruzamentos, ou continuar dentro da área deixando atemorizados os zagueiros. Mudou o futebol, mas me pergunto: para melhor? Do ponto de vista de quem gosta do espetáculo, da arte, da brincadeira? Peixinho foi ídolo na cidade até ser vendido ao São Paulo. Parecia predestinado. No dia 2 de outubro de 1960, ele foi escalado para o jogo inaugural entre São Paulo e o Sporting de Lisboa. O Morumbi ainda não estava terminado, mas a diretoria decidiu fazer a festa. Havia anos os são-paulinos esperavam seu estádio. Havia 13 anos não conseguiam nenhum título. Só se pensava na construção do Morumbi, numa região distante e deserta. Loucura, diziam todos. Quem vai assistir ao jogo naquela lonjura?

Naquele outubro de 60, veio o jogo esperado. A grande novidade foram as traves redondas, em lugar das tradicionais, quadradas, hoje abolidas no mundo. O tricolor entrou em campo com Poy, Ademar, Gildésio e Riberto. Fernando Sátiro e Vitor. Peixinho, Jonas (Paulo), Gino, Gonçalo (Cláudio) e Canhoteiro. Como se tratava de festa, o São Paulo havia prometido um carro ao autor do primeiro gol. O jogo corria e nenhum gol, os ponteiros avançavam, como diziam os locutores, e nada. Finalmente, saiu. O primeiro gol do Morumbi foi marcado por Peixinho, o jogador que tinha vindo da Ferroviária. Lembro-me que os araraquarenses comemoraram, afinal, também os nomes da cidade e da AFE seriam lembrados para sempre. Os jornais noticiaram em manchete: São Paulo 1 x Sporting 0: o resultado para a história.

Nessa tarde quente de janeiro, esperando a chuva passar para me despedir de Vera, estendi a mão a Peixinho, que estava acompanhado de outro ex-jogador, o Mateus:- Você é personagem meu.- Sei, claro que sei. Li o livro. Apareço na página 29, quando você fala da inauguração do Morumbi.

O livro é o São Paulo, a Saga de Um Campeão, lançado em 1994. Foi um prazer escrevê-lo, é uma bela trajetória, quase um romance, parte da história da cidade de São Paulo. Falamos de generalidades, Peixinho, com 67 anos, mora em Piracicaba, teve restaurante, conduz seus negócios, é afável, tranqüilo, parece ter resolvido bem a vida.- Quem diria? Mal saiu da AFE entrou para a história do futebol.- Daqui a três anos, vou comemorar.- Os 50 anos do primeiro

gol?- Não! Os 50 anos do carro que nunca recebi.- O carro?- O São Paulo tinha prometido um carro a quem fizesse o primeiro gol.- Você fez. Não recebeu?- Até hoje, não. Vai ver o administrador esqueceu, perderam a chave, o carro deve estar ainda no porão do estádio. Talvez seja um velho Fusca.
- Cinqüenta anos. Bela data. Quem sabe o carro ainda venha!
Peixinho riu:
- No fundo, esperavam que o gol fosse feito por um dos dois cobras do time, o Gino ou o Canhoteiro, megajogadores. Daria muita mídia. Mas foi o menino recém-saído do juvenil que escreveu a história. Acho que frustrei expectativas. Esqueceram. Talvez nas bodas de ouro do gol se lembrem e me entreguem o carro que nunca vi.

A chuva passou, o cortejo saiu, levamos Vera ao seu canto, o sol brilhou rápido, despediu-se dela.

Um comentário:

fb disse...

Vladir,

Obrigado por nos agraciar com este belo texto do meu conterrâneo. Sou de AQA, mas moro em Casa Branca, tinha viajado um dia antes do fato ocorrido e citado por Ignácio. O triste desta história é que a banca que a chuva tombou é da minha mãe e de certa forma fico feliz por ele ter citado o fato neste texto, pois Ignácio é conhecido dela.

Abraços,

Fábio