segunda-feira, 28 de dezembro de 2020

A tal mortadela



Eu sei, é tempo de falar de peru. Não pensem que estou ficando louco. O que não quer dizer que possam apostar na minha sanidade. Mas se tem uma maneira de tentar mostrar o quanto o time santista foi uma grata surpresa é recorrendo à mortadela esse embutido tão popular. Calma, vocês irão entender onde estou tentando chegar.  Dias atrás estava prestes a entrar no ar, não tirava os olhos do jogo que o Santos fazia com o Grêmio para decidir a vaga nas semifinais da Libertadores. Até porque seria necessário falar sobre o que se desenhava  no gramado da Vila Belmiro. Quando deixei de assistir a partida pra tomar a direção do estúdio o placar apontava três a zero para o time santista. Não demorou e chegaria ao definitivo quatro a um. 

A verdade é que um espanto enorme podia ser visto no rosto dos três comentaristas que fariam o programa comigo. Um deles, sempre espirituoso, enquanto ouvia as observações que iam sendo feitas a respeito do assunto, deixando transparecer toda sua humildade - apesar de entender do riscado que é uma barbaridade - com um sorriso meio sacana soltou essa: a gente não entende mesmo nada dessa mortadela. Era uma analogia direta à surpresa que a classificação do Santos provocava. Não houve , claro, nenhuma discordância nesse sentido. Todos ali estavam absolutamente rendidos ao que o time comandado por Cuca tinha acabado de fazer. 

E ainda que nossa intimidade com a mortadela se dê sem que necessariamente se saiba muito a respeito dela, bastaria uma pesquisa no todo poderoso Google para descobrir que ela teve origem em Bolonha, na Itália. E que o relato mais antigo a respeito desse embutido é de 1376, e versa sobre um tipo de linguiça que, dizem os entendidos, era muito parecida com a mortadela que conhecemos. Tudo muito diferente do futebol que nem uma invenção sinistra como o Google será capaz de desvendar por inteiro. Depois de dizer tudo isso não vou, de modo algum, tentar explicar o que se deu. Mas não resisto a dizer que entenderia perfeitamente o torcedor que ao saber da ausência de Soteldo em tão solene momento tenha pensado que tudo estava perdido.  

De minha parte , mesmo reconhecendo o papel do venezuelano e do bravo Marinho, considerei problema maior ou, no mínimo de igual envergadura, a suspensão de Pituca, que ao lado de Alison há tempos dá ao time da Vila uma consistência singular.  Não é de hoje que o Santos desenha campanhas melhores do que as previstas pelos especialistas. Talvez porque o time da Vila, como é possível constatar, esteja longe de ser tão visto e analisado quanto outros ditos grandes. O perigo da Libertadores  parece ser um só: comprometer a campanha do time no Brasileirão.  Mas tudo tem um preço. Vai saber o que pode esse Santos que tem feito muito pelo torcedor e pelo futebol brasileiro. Não foi à toa que Renato Gaúcho pareceu meio perdido depois do jogo. Talvez concordasse com essa sensação de que o futebol nos prega cada peça  provocando essa sensação estranha de que a gente não entende mesmo nada dessa mortadela. A todos um Feliz Natal. E que a Era de Aquário possa mesmo abrandar nossos destinos. 

sexta-feira, 18 de dezembro de 2020

O que os olhos não veem



A morte de Paolo Rossi dias atrás me fez pensar muito sobre esse nosso viver o futebol. A geração que antecedeu a minha já tinha visto poucas e boas quando o italiano nos fez sentir da forma mais dolorosa possível  que é mesmo impossível saber de antemão o que o jogo de bola nos reserva.  Entrou em campo envolto numa aura mezzo boleira, mezzo policial. Tinha vindo de um gancho por envolvimento num escândalo relativo a manipulação de resultados. Mas mostrou que era mesmo do ramo da bola. 

Divulgada a notícia foram muitos os relatos de gente, em especial da minha geração, dizendo que poucas vezes tinham chorado por causa de futebol, mas que nas poucas, ou únicas vezes, o responsável tinha sido aquele italiano que agora partia. Sinceramente , não recordo se chorei ao ver tudo o que aconteceu naquele dia julho de 1982, tamanho foi o trauma. A definição mais precisa que já ouvi daquele fatídico Brasil e Itália, e tenho a impressão até de já tê-la dividido com vocês, foi dada pelo amigo e escritor, Joca Terron.  

Diz o Joca que naquele bendito dia quando o jogo começou ele era um menino. E que quando o tal acabou era um homem de barba feita. Que me perdoem nossos campeões do mundo mas de lá pra cá não houve, para mim, seleção que tenha nos dado o que aquela de 82 nos deu. O tempo me convenceu de algo que na época não quis , ou não pude compreender: a Itália estava num dia iluminado, jogou muito. Basta pensar no que jogava o time que tinha Sócrates , Zico, Falcão & Cia  pra se concluir que não seria qualquer time que faria o que o time italiano fez.

Tão incrível quanto a façanha de Sarriá foi ver que, ao contrário do que toda grande rivalidade sugere, Paolo Rossi não só era imensamente respeitado e querido por aqueles de quem, de certa forma, foi algoz, mas que nutria pelo nosso futebol admiração e respeito. Em uma das manchetes lembro de ter lido algo como: nunca falou mal do Brasil. E eu, como dizia, mesmo tendo tentado driblar um pouco a intimidade com a notícia da morte de Paolo Rossi, fustigado que andamos por tantas e tão penosas partidas, me peguei imaginando o que não sentiram as testemunhas de outros fatos gigantescos dessa nossa história com o jogo de bola. 




Os abençoados que certo dia foram ao estádio da Rua Javari e viram , meio sem acreditar nos próprios olhos, Pelé marcar o mais magistral de seus gols. Ou aqueles que um dia  se assomaram a um Maracanã, novinho em folha, certos de que veriam pela primeira vez na história nossa seleção ser campeã do mundo. E de lá saíram repletos de cicatrizes deixadas por essa veia cruel e inocente da qual o futebol nunca irá nos poupar.  Aquele silêncio que dizem se abateu sobre o estádio depois do triunfo uruguaio, a desesperança que se viu pelas ruas nos olhos de quase todos. 

Chega a ser injusto reduzir o ídolo italiano a esse papel de vilão dos nossos mais tenros sonhos. Mas não se trata disso obviamente. Sócrates, talvez por pura provocação, costumava brincar dizendo que se a Seleção de 82 tivesse vencido a Copa da Espanha, seria menos contundente, seria mais normal.  Depois de tudo, e de Paolo Rossi, ouso dizer que  é possível sim entender a grandeza de certas derrotas. 

sexta-feira, 11 de dezembro de 2020

Nem tudo está perdido

                                                                Foto: Cesar Greco

Aos saudosistas eu digo que há esperança. Nem tudo está perdido quando se trata de futebol. Vejam, a capacidade que o jogo sempre teve de nos surpreender, por exemplo. Quero crer que ela segue, se não intacta, viva.  As mudanças e a dinheirama podem a ter enfraquecido mas ela resiste. Impressão que se renovou na retumbante queda do Flamengo na Libertadores. Ainda que tratar um time com a tradição de um Racing como zebra possa ter em si algo de heresia. E pode parecer cruel dizer mas essa mesma virtude do jogo de bola esteve refletida na classificação do Santos diante da LDU. Talvez em menor grau, mas esteve. Normal que a essa altura muitos digam que  tinham apostado todas as fichas no time santista. Digo mais. Não é surpreendente ver o Santos envolvido na disputa por uma vaga na semifinal do torneio continental com o Grêmio e perceber que muita gente enxerga nesse duelo uma ausência de favorito? 

Outra coisa que a queda do Flamengo mostrou é o quanto essa coisa de mudar de time no meio da temporada pode fragilizar um treinador. Parece óbvio que parte da sedução exercida sobre Rogério Ceni, que o fez mudar de ares, estava além de toda a tradição do time carioca. Estava na possibilidade de conquistar títulos importantes em curtíssimo prazo.  O que podendo contar com um elenco de respeito como o do rubro-negro estava longe de soar descabido. Um preço que Abel Braga anda pagando também por ter aceitado voltar  ao Internacional. Embora, claro, a história dos dois seja infinitamente distinta. Rogério Ceni nesse caso tem muito mais a perder. 

E por falar em treinadores que chegam no meio do Campeonato a boa surprese é o português, Abel Ferreira.  Jovem, de  currículo modesto, mas que tem se mostrado apto a fazer do Palmeiras um time  capaz de jogar um futebol com o qual o torcedor sonhou durante muito tempo. O que na mão de muitos pareceu impossível.  Os que costumam frequentar este espaço já puderam notar minha simpatia pelo tipo de discurso que Abel tem apresentado, pela forma de explicar o que anda fazendo. Só o fato de ter aportado por aqui e demonstrado interesse profundo na história do clube que iria comandar, sem que isso soasse artificial mas sim fruto de alguma preparação, já seria o suficiente para distingui-lo do todo. 

Nós aqui, mesmo íntimos do futebol brasileiro,  poderíamos enxergar um Palmeiras que não fosse acadêmico. Um Palmeiras bem sucedido até como foram tantos, mas que nem por isso entraram para a história como uma academia. Vai saber. De repente, para alguém que tenha começado essa relação pelos livros é possível que lhe tenha soado inconcebível pensar num time que não tivesse um futebol vistoso como meta. Abel, que entrou no mira do clube alviverde por obra de analistas de desempenho, que testou para Covid e viu de longe o time dele patinar diante do Libertad na terça, dias atrás deu o que falar ao afirmar que não imaginava o menino Gabriel Véron vendido por uma soma de dinheiro menor do que a que foi dada a Neymar.  Exagero? Talvez. Quem sabe exatamente como se distribuem as cifras nesse mundo da bola? Algumas são óbvias, outras surpreendentes, como o jogo. Só não são inocentes, sou levado a crer. 

sexta-feira, 4 de dezembro de 2020

Os eternos meninos da Vila



Nestes tempos em que os esquemas de jogo são dissecados sem piedade pelos analistas, em que o discurso sobre o jogo de bola definitivamente parece ter ganho um ar científico, o todo sugere que o futebol não tem mais segredos. Autopsiado que está pelos entendidos. Pelas onipresentes câmeras à serviço do árbitro de vídeo. Mas não falo sobre essa , digamos, vigilância. Nem desse exercício louco de mirar os jogadores em campo e a partir dos movimentos de cada um fazer nascer uma interpretação sobre o que tinha o treinador na cabeça quando decidiu ensaiar aquele tipo de dança com suas linhas. 

O que me faz escrever  sobre os mistérios que se derramam sobre o futebol são os meninos da Vila. Não exatamente aqueles que no final dos anos setenta com seu futebol quase imberbe se colocaram de vez na história do Santos e, a partir dali, ficaram assim conhecidos.  Falo de todos os meninos que nunca pararam de brotar no gramado de Urbano Caldeira. Como não falo também só daqueles que ao quebrar a fronteira do anonimato foram saudados de maneira efusiva e viram cair sobre eles o peso de ter de lidar com a sombra de um menino Rei que sempre irá pairar por ali. 

Falo de todos os meninos que tiveram na Vila uma porta de entrada para um mundo que também viria a se revelar uma outra coisa, não exatamente sinônimo de fama e grana. Escrevo sobre o assunto porque nos últimos dias muitos amigos depois de assistirem ao time santista , jovem, fazer o que andou fazendo vieram me perguntar como seria possível explicar isso. E me vi incapaz de encontrar uma resposta que não sugerisse algo misterioso, algo do qual não se tem compreensão. 

Não queria me amparar no que já virou um lugar comum quando se fala sobre o tema. Na visão macro acho impossível a base  do Santos não passar pelos mesmos desafios e imprecisões que desafiam outros clubes na hora de tratar seus meninos. Talvez, a insistência ao longo da história em ter um moleque ou mais entre os bambas ajudando a dar originalidade à receita seja um caminho pra entender o que se passa. Ainda que estejamos cansados de saber que muitas vezes essa presença dos garotos se dê mais por necessidade do que exatamente por planejamento. 

Fato é que os meninos sempre foram onipresentes no time santista. E romântico que sou ouso pensar que essa magia toda se dá também porque nos meninos - e no seu jeito de jogar  - o futebol ainda se encontra em estado mais puro.  Só não me venham dizer que o clube sempre apostou nos meninos que essa não cola. É só ver a grana que o Santos gastou nos últimos anos contratando medalhões de talento duvidoso, bancando contratações capazes de deixar até os torcedores adversários inconformados. 

Escolhas que não deixam dúvida alguma sobre o que ao longo do tempo tem sido realmente prioridade. De quantos garotos seria possível cuidar com a fortuna que se apostou em Leandro Damião, por exemplo? Isso pra não dizer que formar um time de garotos, usando a experiência de maneira pontual, exigiria uma ousadia que só os garotos costumam ter, cartolas não.  Enfim, estou totalmente ciente do quanto é desafiador desvendar que mistério é esse que desde sempre se derramou sobre o time santista. A única certeza que tenho é a de que um clube deve sempre zelar por sua mística.