quinta-feira, 30 de setembro de 2021

Nossos futebóis



Há o futebol estabelecido e há o futebol que nos vai na alma, como sugeriu com sabedoria certa vez um dos nossos maiores poetas. O estabelecido anda daquele jeito. E sua realidade mordaz tem sido assunto aqui neste espaço, mesmo porque sem uma ligação com a mais pura realidade cotidiana sem alma acaba ficando a crônica. O que o futuro reserva ao jogo de bola saberemos só quando o cronômetro que solfeja a história andar. Mas do passado já sabemos quais são os frutos. E não são poucos. Há ainda por aí uma geração para a qual o jogo de bola, não é exagero, veio a ser motivo de vida. E não estou falando de nomes como o lendário goleiro italiano Buffon ou do baiano Magno Alves. Os dois já bem pra lá de quarentões e atuando. Falo de gente, digamos, com histórias comuns , ou quase. 

Gente como meu estimado Tio Afonso, o boleiro-mor da família. Um boa praça que, entre idas e vindas, e muito preparo de um pasto de berinjela destinado ao pós -jogo, não pensa em aposentadoria. Esteve em campo, dando aquela distribuída na meiúca, do alto de seus oitenta e dois e anda encarando a fisioterapia com disciplina de dar inveja, convencido de que o joelho vai parar de reclamar dessa insistência. Até infiltração já encarou pra ter condição de atuar.  E se digo que temo pelo futuro do jogo é por estar convencido de que é a prática que alimentou desde sempre tudo isso. E pelo que vejo ela vai , ainda que aos poucos, esmorecendo. Já não há espaço. Na maior parte das vezes a bola rola em campos de society.  

O barato de jogar num campo de verdade, com suas dimensões desafiadoras, vai virando coisa pra iniciados. Mas abençoado seja o society, a praia, e os terrenos baldios ainda não encampados por construtoras  que, seja como for, ainda nos fazem acreditar que o futebol seguirá arrebanhando novos adeptos e ajudando a manter os antigos. Essa vontade de render homenagem aos resistentes me veio depois de ter dado de cara com a notícia de que no Suriname uma figura singular havia se tornado  o jogador mais velho a atuar profissionalmente.  Não sei se viram essa. 

Ronnie Brunswijk, aos sessenta anos e cento e noventa e oito dias, vestiu a camisa do Inter Moengo Tapoe, pela Liga da Concacaf.  À parte o que a história pode conter de vaidade trata-se de uma pérola.  Ainda que o tal seja o Presidente e dono do clube poderia  ter ficado de fora. Mesmo porque não se tratou de uma apresentação honrosa. O time dele foi goleado por seis a zero. É fato que se trata de um sujeito para lá de controverso. Foi segurança de um ditador que governou o país, chegou ser condenado na Holanda por tráfico de cocaína e no final do jogo em questão apareceu distribuindo dinheiro no vestiário adversário. Vai entender.  

De qualquer forma por um instante fui convencido de que se trata de um desses casos em que o futebol não sai da pessoa. Seja como for em matéria de amor pelo futebol sou muito mais o meu tio cuja história é, além de tudo, infinitamente menos controversa.  Do ponto de vista da coordenação motora jogar bola esconde uma complexidade considerável. Em outras palavras, machuca mesmo. Por isso quis render tributo, jogar alguma luz sobre a paixão que o cerca e ainda faz muito pelo futebol. Já que pelo viés oficial ele tem honrado pouco os apaixonados por ele.     

quinta-feira, 23 de setembro de 2021

O futebol já não nos diverte



Há tempos a qualidade dos jogos do nosso futebol virou tema constante. Não era para menos. Peço perdão até se farei o torcedor recordar insistentes penitências vividas por causa da paixão pelo esporte bretão.  E ainda que esteja longe de ser novidade que as paixões trazem consigo vez ou outra boas doses de dor, a coisa anda passando dos limites.  Ninguém merece doar quarenta e cinco minutos da vida para ter em troca  um par de chutes a gol. E vejam que se fazem cada vez menos raras situações em que nem um mísero chute perigoso se passa a ter direito. Está aí o recente primeiro tempo do Santos contra o Bahia que não me deixa mentir.  Ou o jogo mesmo entre Palmeiras e Atlético Mineiro pela Libertadores. Dois times considerados o que temos de melhor. 

Uma realidade que vai se fazendo tão cruel que é impossível pensar que não terá um efeito destrutivo sobre a relação com o torcedor. E só mesmo um sem fim de sessões analíticas pra desvendar a razão maior que faz o torcedor assim tão apaixonado, ainda que a palavra mais sensata pra isso talvez fosse dependente. Agora aqui, batucando estas linhas, me ocorre que tudo venha a ser muito mais simples e não passe puro hábito. O hábito que um velho pensador disse, e muito bem, que é a nossa segunda educação.  No fim o que vou defender pode dar uma embolada na cabeça de quem lê uma vez que times como Flamengo e Atlético Mineiro são apontados como responsáveis por darem um toque de excelência ao nosso futebol. Despertando os olhares até daqueles que  torcem por outras camisas.  Coisa cada vez mais rara, mas desde sempre o melhor dos sintomas do jogo de bola.  

E o que infelizmente pode servir de contraponto ao que andei defendendo aqui. A saber, que aos poucos uma nova ordem vai se impondo no panorama futebolístico do nosso país. Momentos como o do Fortaleza diante do São Paulo no jogo de volta das quartas de final da Copa do Brasil, seria um exemplo. Mas acho bom esclarecer que quando digo isso penso mais no clube como um todo, do que no que se dá em campo. Prova disso é que o time cearense até eliminar o São Paulo amargava uma sequência de seis jogos sem vitória. Mas se vou costurando o meio de campo aqui como se fosse um Zizinho - que há cem anos nascia para fazer do futebol algo que é o avesso do que andamos vendo - é pra chegar à grande questão. Uma certa transformação a que essa pobreza futebolística fatalmente nos condena. 

Começo a perceber que mais do que o jogo, passo a me divertir como nunca com uma visão mais macro, pra usar um termo meio catedrático. Percebo que a história do time vai tendo mais graça do que o próprio futebol. O drama de um treinador, a postura do presidente, a fase que promete decepções nunca vividas. Ainda que aí tudo não passe de um grande drama. Para além das quatro linhas há mais graça do que dentro delas. Tá certo, isso sempre existiu, as histórias dos times, as dos homens. O jogo é tudo isso. Mas o detalhe está no peso que  certas coisas dessas passaram a ter.  

Diante do futebol opaco instintivamente se procura uma saída. E é bom notar que nos últimos anos a crônica esportiva ajudou como pôde insistindo em jogar luz sobre questões táticas , técnicas, científicas.  E a impressão que tenho um pouco também é que até esse viés do olhar, do discurso, anda se desgastando, perdendo o sentido.  Chego a arriscar que até esse burburinho envolvendo o VAR, a arbitragem, se dá um pouco em razão disso. É parte da mesma onda. Uma tentativa desesperada  de buscar graça em outros lances, já que o poder de sedução do jogo dá a impressão de ser cada vez menor.  O custo é alto, perigoso. Enfim, talvez seja só uma dificuldade minha em compreender que as coisas mudam. Mas se por acaso se afinarem com o que acabo de dizer, já sabem, não estão sozinhos.  

sexta-feira, 17 de setembro de 2021

O treinador, essa entidade



O técnico de futebol é uma entidade indecifrável. Ao mesmo tempo magnética. Não resta dúvida de que o tempo lhes fez exigências. E elas foram sobretudo  táticas e técnicas. A tão lembrada questão que nos desafia a dizer se eles ganham ou não ganham jogo é a mais óbvia das provas de que é impossível determinar até onde vão os efeitos de seus ensinamentos. Sejam eles teóricos ou humanos. Quem acompanha de perto esse universo onde eles orbitam sabe também que de uns tempos para cá uma das maiores acusações que lhes imputam é a de terem se tornado celebridades. E aí vale notar que é uma acusação que recai também sobre a crônica esportiva que, segundo muitos, foi a grande culpada por tê-los alçado a essa condição. 

A coisa é tão complexa que confesso ficar um pouco intimidado diante do desafio de tentar decifrar todos os acontecimentos que os cercam.  E eles se sucedem com uma constância frenética. Coisa que não refresca nem mesmo quando ameaçada pela recente regra que determina alguns limites para trocas ao longo da temporada. Não quero me ater aqui a questão das demissões. Quero ir além delas. O que vejo é que da mesma forma que há uma nova ordem no futebol brasileiro colocando times teoricamente menores em posição de destaque, o mesmo pode ser percebido quando o assunto são os treinadores. É notório como nomes antes incontestes aos poucos foram perdendo espaço.  

Mas creio que também não seja o caso de falar de profissionais que neste momento desfrutam de prestígio, vivem bons momentos. Isso por mais que não consiga parar de tentar decifrar o quanto do sucesso de Renato Gaúcho é técnico e o quanto é humano, emocional. Minha tendência , de modo geral, é me interessar por questões ligadas ao homem. E, sendo celebridades ou não, é impossível negar que de alguma forma eles estão mais nus do que seus comandados. Em caso de dúvida note o quanto estamos mais cientes de seus perfis do que dos perfis da galera comandada por eles e cujo ofício é correr atrás da bola. Essa teoria só cai por terra, creio, quando falamos daquele artilheiro marrento que, querendo ou não,  faz questão de deixar evidente seu comportamento. 

Há algo muito além das escolhas feitas por clubes e dirigentes, há as escolhas feitas pelos próprios treinadores. Mas quando eles são o assunto é preciso esquecer qualquer traço ou possibilidade de eternidade. Está aí o Lisca pra nos mostrar. Não durou dois meses no Vasco, e eu aqui ainda pensando o quanto ele parecia afinado com o América Mineiro com o qual se destacou tanto.  O jovem português Antônio Oliveira outro dia mesmo recebia todos os louros pelo trabalho que desenvolvia à frente do Athlético Paranaense e já era. É uma equação sem solução. A mim já era estranho ver Lisca no comando do Vasco, depois de senti-lo tão afinado com o América Mineiro. E a afinidade parecia gigante com o time, Lisca parecia sedimentar uma trajetória de ascensão. E aí se deu que o homem  não durou nem dois meses em São Januário. 

Por essa ótica nem há muito a dizer sobre a demissão de Fernando Diniz do time santista. Dos roteiros todos o mais comum. Talvez  melhor fosse tentar esmiuçar as razões que fazem muita gente apontar certa incompatibilidade entre Carille e o Santos. Ainda mais agora que a coisa ferveu. Ao mesmo tempo, aí estão jovens como Marquinhos Santos que, aos quarenta e dois anos, já tem mais de uma década de estrada e pelo visto vai  construindo uma trajetória  de respeito longe dos grandes, mas por times de muita tradição, que retratam melhor que os endinheirados o nosso futebol. Ou o calvário de Sylvinho ao chegar ao Corinthians, depois também de ter construído um currículo que beira o impecável.  Mas vai saber o que , no fundo, se faz primordial na vida de um treinador de futebol, essa entidade indecifrável. 


* Artigo escrito para o jornal " A Tribuna",  Santos/SP 

 

quinta-feira, 9 de setembro de 2021

A evidência da Seleção.



Como bem definiu o jornalista Celso Unzelte, a receita é simples.  Foi só respeitar a data, tirar o Brasileirão de cena e a Seleção Brasileira de futebol ganhou certa evidência. Em especial nos dias que antecederam a partida contra o Chile. Papelão não vale, não vem ao caso. É fato que a não liberação de certos convocados por suas ligas e, consequentemente, a convocação de jogadores que atuam no futebol brasileiro deu uma turbinada na receita.  Depois do Chile, a coisa mudou um pouco tivemos jogos no final de semana pelo Brasileirão, times entrando em campo no dia da Independência. Enfim, seja como for a impressão que me ficou é que tudo isso deu  uma arejada na relação do torcedor com a Seleção. Na Seleção propriamente não chego a dizer que foi o caso.  

Tite, mais do que nunca, se viu  cobrado por um tipo de jogo e de esquema, pra usar um adjetivo leve, mais vistoso. O que sabemos agora não o tocou, ao menos, de primeira. Em linhas gerais o Brasil esteve perto de perder a mão do jogo no primeiro tempo contra o Chile. E eu que não sou lá de reduzir minhas ponderações à questões táticas vi no time chileno uma qualidade que vivo cobrando do time brasileiro: atitude. Não as atitudes que abundaram no fim da partida, me entendam. Depois veio a Argentina o que é tido sempre como um filé mignon. Ou viria. Os uruguaios que me perdoem, apesar do fino trato que sempre dedicaram às carnes. 

A todos os que tem considerações a fazer sobre Tite acho apropriado dizer, nunca é demais, de sua legitimidade. Poucos chegaram ao comando da Seleção dessa forma. Acho justo , inclusive, que se tenha dado a ele mais um ciclo para trabalhar. Lógico que estou entre aqueles que gostaria de ver a Seleção Brasileira jogando de outra forma. Mas é sempre fácil arriscar a entrar na tormenta quando barco é dos outros. Tite não tem dilemas e isso não o incomoda. É do ramo, sabe o que está fazendo. Terá olhos , primeiro de tudo, para sua defesa, por mais que diga que anda preocupado pra valer com o tal último terço do campo. Como é preciso reconhecer que se a Seleção Brasileira tem uma qualidade, essa qualidade é a de ser competitiva. Coisa que ela só o é por uma razão, acima de todas as outras, se defende bem.  

E, outra coisa, tem sim um esquema bem definido. Sempre me rendi a jogadores em boa fase. Acho desde sempre um disparate quando um treinador de seleção praticamente fecha os olhos pra alguém que está voando. E geralmente só se fecha os olhos para voos dados por aqui. Na Europa quase sempre voos são impositivos. Por que será, né? Como sou capaz de entender que , às vezes, é preciso levar em conta a história do atleta, seu currículo. Só acho que na maioria das vezes o que se esconde por trás disso é o mercado, não o reconhecimento. Se é que me faço claro.  

E é preciso falar de Neymar também. De longe o grande nome do futebol brasileiro e da Seleção. E ponto. Tite, sabemos todos, sempre respeitou - para não dizer se curvou - o talento do hoje jogador do PSG. Mas é preciso entender que essa imagem que anda no imaginário do torcedor talvez seja maior que ele. Neymar foi à glória. Se tornou o jogador mais caro do mundo, o que não quer dizer o melhor. E apesar de todos os esforços o papel que tem desempenhado no time nacional está longe de ser o que se esperava. No jogo contra o Chile foi poupado de críticas pelo seu momento físico, por estar se preparando para uma nova temporada na Europa. A análise que faço está além desse período de jogos das Eliminatórias que se encerra hoje à noite. Apesar de tudo o que aconteceu no jogo, ou não jogo, contra a Argentina , fazia tempo que a Seleção não parecia tão nossa. Terminará seus compromissos na condição de líder do torneio classificatório. A única ameaça que se impõe é uma só: a realidade do futebol além do nosso continente. O que tem sido fatal.           

 

sexta-feira, 3 de setembro de 2021

Sobre homens e fantasmas



Há um fantasma que ronda inevitavelmente os que têm esse meu ofício. A possibilidade sempre presente de o tema escolhido caducar, ficar velho. Sem falar nas impossibilidades decretadas pelo espaço necessário entre o fechamento do jornal e o momento em que ele chega até suas mãos, ou sua tela. É pra lá de cruel saber que um jogo à noite dará o que falar, que seria material farto e quente para um encontro com o leitor pela manhã, mas o horário do fechamento não permite que se fale dele.  E assim está posto um jogo em que farejar um tema se revela tão desafiador quanto descrevê-lo com algum talento. 

Digo tudo isso para , de certa forma, justificar Pep Guardiola como personagem destas linhas. Talvez um feito dele como treinador não soasse tão perene quanto a postura dele sobre coisas que estão muito além do campo. E foi por causa delas que resolvi deixar de lado esse eterno dilema sobre o quanto um assunto pode se manter vivo. Não sei se viram mas dias atrás ao participar de um evento , digamos, de mercado, foi contundente. Disse não se interessar por outras formas de ganhar dinheiro que não seja com seu trabalho e arrematou o raciocínio dizendo que essa coisa de ganhar dinheiro dormindo não é c
om ele. 

E não foi só , se mostrou incomodado com os mecanismos sociais que insistentemente tem tornado os pobres cada vez mais pobres e os ricos cada vez mais ricos. Claro que tudo isso soou ainda mais contundente em razão do espaço em que essas coisas foram ditas. É fato que se ele não as tivesse dito um número infinitamente menor de pessoas teria ficado sabendo da tal palestra. Teria sido uma estratégia de desconstrução de quem a pensou? Talvez. Mas seja como for o tempo vai passando e Pep Guardiola vai se fazendo uma figura cada vez mais interessante.

Com uma sensibilidade rara para interpretar tudo que o cerca. Nesse mesmo evento reconheceu a importância do ego, normalmente tão mal dito. Ressaltou que as pessoas , seja em que área for, têm necessidade do reconhecimento. De alguma forma é a semente que provoca um trabalho bem feito. As medidas e os métodos são uma outra história. Podem colocar tudo a perder. Guardiola, pode parecer exagero eu sei, me parece a prova do quanto a formação de um homem é decisiva  na qualidade do seu jogo.  Se é que me entendem. 


Em futebol, especialmente, muitas vezes sem querer carregamos e alimentamos uma crença de que tudo se explica pelo talento, pelo dom. E não é bem assim. Há nesse catalão, um apuro, um comportamento que nos dá dá impressão de alguém, que mais do que qualquer outra coisa, quer é se ver desafiado. É isso que o move. Me deu essa impressão ao sair da Espanha para a Alemanha. Depois ao se transferir para o futebol inglês. E pelo que disse na tal palestra, pelos elogios ao futebol brasileiro, ao que tivemos de melhor, ao que sempre foi o espelho da excelência que um dia tivemos, que continua procurando novos horizontes. 


Deixou claro que dirigir uma seleção seria um jeito de ir além.  Ainda que tenha dito que as grandes seleções raramente terão um treinador de fora, deixou no ar que mesmo sabendo disso, ou considerando essa possibilidade, não é para ele algo distante. E não deve ser mesmo.  No fim fiquei com a nítida sensação de que trazer Guardiola para dirigir a seleção brasileira é infinitamente mais inviável pela mentalidade tacanha dos nossos cartolas do que outra coisa qualquer. 



* artigo escrito para o Jornal "A Tribuna", Santos /SP