quinta-feira, 26 de setembro de 2019

O direito de torcer


Daqui alguns dias talvez você dê de cara com está notícia: o Irã finalmente permitiu que mulheres assistam a jogos no estádio. Se estiver diante de uma tela provavelmente a informação virá acompanhada de cenas de mulheres na arquibancada do estádio Azadi, em Teerã, o maior do país, sorrindo, acenando com entusiasmo. O governo, chamado de moderado , durante a Copa do Mundo da  Rússia até deixou que mulheres  fossem a esse mesmo estádio para acompanhar  os jogos do país contra as seleções de Espanha e Portugal, mas num telão.

Se a expectativa se tornar realidade o fato deve se dar no próximo dia dez de outubro quando o Irã receberá a seleção do Cambodja, em partida válida pelas Eliminatórias da Copa do Mundo de 2022.  Mas o que talvez não seja devidamente lembrado é que o anuncio da liberação feito pelo Ministério do Esporte não foi  exatamente por vontade própria. Há tempos a FIFA pressiona o país  ameaçando, inclusive, exclui-lo do próximo Mundial. 

Mas por trás de toda essa novela está a morte aterradora de uma jovem de vinte e nove anos, Sahar Khodayari, que em março,  disfarçada de homem, tentou entrar em um estádio. Queria ver o time dela, o Esteghalal Teerã, um dos clubes mais populares do país, enfrentar o al-Ain dos Emirados Árabes Unidos. Acabou presa e libertada dias mais tarde sob fiança. Mas no início de setembro ateou fogo ao próprio corpo diante do Tribunal Revolucionário Islâmico de Teerã. Corria o risco de pegar seis meses de prisão. Internada em um hospital, Sahar teve a morte anunciada justamente um mês antes da data do jogo entre Irã e Cambodja.

Relatos como o do jornalista iraniano-canadense, Maziyar Bahari, falam  que a família foi duramente intimidada e a jovem imediatamente enterrada, pois já tinha causado problemas demais. O moderado presidente iraniano havia acenado com algumas medidas nesse sentido. Tribunas extras para mulheres em vários estádios de Teerã, mas foi vencido pela resistência dos clérigos. A proibição vigora desde 1981, fruto da legislação instituída depois da revolução no final dos anos setenta. A liberação não será assim uma outra revolução. Haverá entradas separadas para as mulheres, reforço considerável na segurança. 

Mas basta pensar na realidade das mulheres por aqui para encontrar alguns parâmetros. Pense o quanto os estádios brasileiros "liberados" podem ser considerados desconfortáveis para as mulheres e será possível ter uma pequena noção do que as espera por lá. E, por favor, se forem fazer esse exercício de imaginação pensem em uma mulher chegando a um dos nossos estádios desacompanhada. Há muito a ser feito nesse sentido, é só lembrar do "Brasileirão" feminino jogado em gramados  terríveis, desse nosso jeito macho pseudo-moderno. 

Mas tão irreal como imaginar as moças sendo recebidas com flores por aqui é imaginar que essa questão cultural pudesse ser neutralizada com as armas de que dispõe a FIFA. Forçar mudanças, talvez. E, por isso, nesse sentido não me parece desprovido de razão afirmar que se a principal entidade do futebol mundial tivesse exigido essa liberação a essa altura, mesmo sem saber, teria salvado uma vida. E o cultuado Esteghalal Teerã teria a essa hora uma apaixonada torcedora a mais. 

quinta-feira, 19 de setembro de 2019

O gol que falta


Rubens Chiri- sãopaulofc.net


Vou contar uma história do tempo em que praticamente todos os treinos eram abertos para a imprensa. Rogério Ceni já era um reconhecido batedor de faltas. E uma vez encerrados os trabalhos reservava um tempo para aprimorar o fundamento que lhe fazia a fama. Coisa que quase nenhum repórter se dava a acompanhar. A essa altura, espremidos pelo tempo, tinham outras prioridades. Mas recordo bem de certo dia ter acompanhado tudo de perto. Provavelmente por estar preparando algum material ligado a esse tipo de treinamento ou a respeito do próprio arqueiro tricolor. 

Rogério tinha ali com ele alguns companheiros de time, a quem desafiava. E quem não gostaria de uma chance pra mostrar que poderia encará-lo nesse quesito? E era também uma maneira de dar um ar descontraído ao treinamento. Um jeito de afinar os movimentos brincando, tirando um sarro. O desafio diante do grande artefato de metal que imitava a barreira adversária não era exatamente colocar a bola no gol. Isso era fácil. Ganhava a parada quem conseguisse acertar o travessão! Dispensavam até o goleiro. Um descrente pode achar que ficamos ali um tempo sem ver alguém realizar tal façanha. Mas não, bastaram algumas cobranças e pimba! Rogério carimbou o travessão. E com uma força que permitia imaginar muito bem o desafio que representaria a qualquer um que tivesse a missão de defender a meta. Além dele naquele dia não vi mais ninguém conseguir. 

Digo isso tudo porque acabei de dar de cara com uma manchete evidenciando o quanto um gol de falta tem sido coisa rara no futebol brasileiro. Durante todo o primeiro turno foram apenas nove. Dois deles marcados por um zagueiro. Rafael Vaz, do Goiás. Perguntado sobre a quase proeza, Vaz, afirmou que a marca é fruto de muita dedicação e que costuma cobrar umas trinta ou quarenta por dia toda vez que acaba um treino. Ou seja, a receita pra se fazer um gol de falta continua a mesma, por mais que um gênio como Rivellino defenda ardorosamente a teoria de que nem a insistência é capaz de redimir a ausência do dom.  

E entendo a indignação dele toda vez que alguém lembra que pela seleção o último gol de falta foi marcado há quase meia década. Isso mesmo, cinco longos anos. Foi em 2014 em um amistoso contra a Colômbia. No Brasileirão as contas revelam que do ano passado para cá a média de gols de falta caiu de 0,71 para 0,47. Número que beira a pior marca da década, 0,44, registrada em 2016. As razões apontadas para essa escassez são muitas. Vão desde as mudanças implementadas nos treinamentos, que passaram a ser ditados pelos preparadores físicos e pelos fisiologistas, passando pelos rasos gramados atuais,o que impede, segundo alguns, que o pé do cobrador toque a bola muito por baixo. 

Citam também a melhor preparação dos goleiros, que além de mais ágeis estão mais altos. Difícil é saber o quanto hoje em dia um jogador profissional considera que valha a pena se dedicar a esse tipo de coisa. Um gol de falta pode não ter a exuberância de um gol de bicicleta nem a dose cavalar de surpresa contida num gol feito com um belo chute de primeira. Mas mesmo ensaiado à exaustão um gol de falta tem o frescor do improviso. Portanto, se dia desses seu time marcar um do tipo, seja um torcedor sensível, e lhe honre com uma comemoração à altura.



* artigo escrito para o Jornal "A Tribuna", de Santos/SP

quinta-feira, 12 de setembro de 2019

O treinador



O treinador foi desde sempre personagem dos mais intrigantes do mundo do futebol. Graças a eles temos sido condenados a vira e mexe dar de cara com aquela velha questão que nos interroga a respeito da capacidade deles de ganhar, ou não, uma partida. Mas não quero ressuscitar esse questionamento que, enfim, sumiu das conversas para a salvação de todos. Outro lugar comum é dizer que eles ganharam importância demais. Um raciocínio com o qual é difícil não concordar quando se olha o futebol sob a perspectiva das últimas duas décadas. Os mais velhos irão lembrar que quando os anos noventa saíram de cena já tínhamos visto Luxemburgo viver dias de rei. Mas basta se entregar ao noticiário dos últimos dias e ficará comprovado  que os treinadores continuam desfrutando de um status invejável. 

Não que a chegada de Mano Menezes ao Palmeiras não merecesse muita atenção, ou que o discurso duro de Rogério Ceni depois da goleada sofrida para o Grêmio não fosse tema da maior importância. Entender onde mora exatamente esse exagero não é tarefa fácil, exige uma grande reflexão sobre o modus operandi da mídia, ou das possibilidades que a realidade lhe dá nos dias de hoje. Em linhas gerais, é possível que uma pergunta ajude a deixar mais claro o que quero dizer: quantas outras pessoas deveriam ser ouvidas a respeito de tudo que envolve a chegada de Mano ao Palmeiras ou a respeito do beco  sem saída com que Rogério Ceni se deparou ao aceitar ir para o Cruzeiro? 

A conclusão a que chego é que os treinadores pelo protagonismo que lhes foi dado são hoje a parte mais exposta dessa engrenagem. Jogadores torcem cada vez mais o nariz para conceder uma entrevista. No fundo o que os treinadores vivem é muito parecido com o que vive qualquer ser humano, inclusive os craques, altos e baixos. E isso vale para nomes que hoje soam grandiosos, como Osvaldo Brandão, João Saldanha, Aymoré Moreira e tantos outros. Mas talvez Telê Santana seja o mais indicado para apontar esse viés tão humano e imperfeito do qual nem os treinadores de futebol escapam. Não só porque também o viveu, mas principalmente por sua história ter se dado mais recentemente. Era a figura maior por trás da inesquecível seleção brasileira de 1982 mas contestado até o dia em que, à frente do São Paulo, conquistou a América e o mundo. Triunfos que definiram pra sempre o lugar de Telê nesse panteão. 

E os mais detalhistas irão lembrar o quanto o destino precisou ser caprichoso para que ele seguisse como técnico do tricolor na época. Falo disso porque neste momento em que dois estrangeiros ocupam a ponta da tabela do Brasileirão dando a impressão de que o fato incomoda muitos dos nossos treinadores, acho importante apontar que esse filtro do tempo deve ser a grande baliza. Sucesso efêmero muitos tiveram, mas para que um dia um Sampaoli ou um Jorge Jesus ocupem um lugar como o que a nossa história reservou ao húngaro Bela Guttmann, por exemplo, vai chão. Mas o que ninguém diz, e que ouvi dia desses de alguém que conhece bem o mundo do futebol, é que é quase uma ilusão achar que hoje em dia os treinadores têm muito poder. Esse, na verdade ,  está nas mãos dos diretores e dos agentes. 

quinta-feira, 5 de setembro de 2019

Secador: modo de pensar





Torcer é algo muito pessoal. Cada um tem seu estilo. Mas se você torce fatalmente você seca. Nem sempre com a mesma pegada. Conheço torcedores discretos que são secadores fervorosos. E secadores discretos que são torcedores fervorosos, embora o segundo caso seja mais raro. Nos últimos dias me vi cercado por secadores entusiasmados. Um efeito colateral da derrota do Palmeiras para o Grêmio pela Libertadores. Houve, para dar sentido a tudo isso, o fato de o Palmeiras se encontrar naquela condição de time a ser batido, menos pela beleza de seu futebol e mais pelo poderio financeiro. Posto que o Flamengo lhe roubou de vez dias depois no Maracanã provocando a queda de Felipão, o simpático.

E esse clima de secação descarada se renovou dias depois quando o Corinthians ficou frente a frente com o Fluminense pela Copa Sul-Americana. Não com a mesma intensidade, até porque a alquimia dessa coisa de secar pede na porção um resultado que o valide, aí o treco expande. O que não se deu. Mas  a sensação que me ficou é que Felipão moldou um time nada sedutor. O que é fatal para atrair secadores. Não são todos, pois existem os convictos, mas sou levado a crer que um time que joga de forma reconhecidamente bonita costuma diminuir muito essa torcida contra.

O Santista também se viu no último final de semana - depois de bater a Chape com um gol contra - nessa condição de secador. O rito  pedia aquela gorada pra cima do Flamengo que iria pegar quem? O Palmeiras! De onde se conclui que o secador é um sujeito totalmente livre de bandeiras. Mas só não podemos achar que o ato de secar não tem nenhuma lógica. Como tem. E das melhores, simples. Pra levar adiante o rito,  se precisar cruzar os dedos a favor desse ou daquele o fará sem a menor cerimônia. O secador é , com a licença do termo, um ateu futebolístico, ou melhor, um agnóstico. Afinal, não é assim um descrente de tudo.

Estamos todos cansados de saber que o secador tem, como quando está na condição de torcedor, um sem fim de rituais banais e esquisitos. Ou usar a mesma meia de lã, em pleno verão todo dia de jogo não é coisa de matusquela,  como diziam antigamente? Do jeito que está o Brasileirão o Flamengo no final de semana será o grande alvo dessa turba pra quem a tabela de classificação de um campeonato é quase um oráculo. E quem conhece bem o raciocínio de um secador sabe que ele não esmorece diante de nada, nem mesmo diante do mega desafio de ter de secar o líder quando este, além de tudo, no conforto de uma óbvia inversão de mando de campo, terá pela frente o lanterna do campeonato.


* artigo escrito para o jornal "A Tribuna", de Santos