sexta-feira, 29 de outubro de 2021

O que o futebol vai virar?



O preço dos ingressos escancara , mais do que qualquer outra coisa, como pensam os homens que comandam o futebol no nosso continente.  Não creio que  pensem de modo muito diferente dos outros. Mas fato é que na Europa, por exemplo,  o preço de um ingresso para jogos de primeira linha beira oitenta e cinco dólares, enquanto a final da Libertadores terá o ingresso mais barato custando cerca de duzentos dólares ou, um salário mínimo.  Os números bastariam para mostrar o abismo entre um e outro, mas há ainda nossa realidade social. O que faz esse abismo infinitamente maior, mais bárbaro. Ao mesmo tempo escancara a elitização do jogo. E a constatação é óbvia:  o futebol deixará de ser  popular.  

É questão de tempo que deixe de ser parte da cultura de massa. Não sou um expert em temas sociológicos mas acho que cabe o termo.  Na verdade os homens que cuidam do futebol nunca estiveram nem aí pra essa veia popular.  A exploraram de todas as formas. E não se importam que ela se perca desde que o faturamento continue subindo. E foi disso que se ocuparam ao criar o vampiresco sistema de sócio torcedor, ou ao fazer dos estádios Arenas pra poucos. Para eles se um dia a média de público despencar tanto faz, desde que o preço do ingresso seja uma fortuna e uns poucos abonados se encarreguem de não deixar o faturamento cair. Só irão mudar se um dia perceberem que deixando de ser  popular o futebol talvez veja minada sua capacidade de faturar. Aí pode ser tarde demais.  

Não duvido que o futebol se sustente sendo quase um luxo. Há um sem fim de modalidades endinheiradas para corroborar essa possibilidade. Vendo quanto passou a custar um ingresso, uma camisa de um time, sou levado a crer que um dia se amará o futebol como se ama carros importados, bolsas de grife que custam os olhos da cara. Sei que é chato ficar falando do tempo em que o Morumbi abrigava mais de cem mil torcedores nas tardes de domingo. Da poesia rude da velha geral do Maracanã. Até gente com saudade do tobogã do Pacaembu temos visto. Justo do tobogã sempre tão mal falado por ter tomado o espaço da velha concha acústica. Mas não se trata disso. Se trata de tentar entender qual será o preço de tudo que tem sido feito em nome do futebol. 

Do ponto de vista histórico, já disse outras vezes, o futebol é até novo. E sou capaz de dizer que o apogeu dele se deu por volta do fim dos anos setenta, início dos oitenta. Pouco depois do nosso jeito de tratar a bola ter definitivamente encantado o mundo.  E não me importa que daqui uns anos estas minhas palavras sejam lidas como foram lidas as de Lima Barreto que no século passado profetizou que o futebol era moda que não pegaria. Até acho que ele pode viver historicamente outro grande momento. Só sei que não será com essa receita, roubando dele o que sempre teve de mais belo: a veia popular, apaixonada. Enfim, é isso, toda vez que vejo um ingresso custando os olhos da cara me pergunto: o que é que o futebol vai virar? 

terça-feira, 26 de outubro de 2021

Ricardo Piglia - Trecho de "Os anos felizes" - Diários de Emílio Renzi



A vida não se divide em capítulos, disse Emilio Renzi ao barman do El Cervatillo naquela tarde, com os cotovelos apoiados no balcão, em pé diante do espelho e das garrafas de uísque, vodca e tequila que se alinhavam nas prateleiras do bar. Sempre me intrigou o modo irreal mas matemático em que ordenamos os dias, disse. O próprio calendário já é uma prisão insensata sobre a experiência porque impõe uma ordem cronológica a uma duração que flui sem critério algum. 

O calendário aprisiona os dias, e é provável que essa mania classificatória tenha influenciado a moral dos homens, disse Renzi sorrindo para o barman. Falo por mim, disse, que escrevo um diário, e os diários só obedecem à progressão dos dias, meses e anos. Não há outra coisa que possa definir um diário, não é o material autobiográfico, não é a confissão íntima, nem sequer é o registro da vida de quem o escreve que o define; simplesmente, disse Renzi, é a ordenação do escrito pelos dias da semana e os meses do ano. Só isso, disse satisfeito. 

Você pode escrever qualquer coisa, por exemplo, uma progressão matemática, uma lista da lavanderia ou o relato minucioso de uma conversa num bar com o uruguaio que atende o balcão ou, como no meu caso, uma mistura inesperada de detalhes ou encontros com amigos ou testemunhos de acontecimentos vividos, tudo isso pode ser escrito, mas será um diário apenas e exclusivamente se você anotar o dia, o mês, o ano, ou uma dessas três formas de nos orientarmos na corrente do tempo. 

sábado, 23 de outubro de 2021

Hoje é dia do Rei

 

                

           O difícil, o extraordinário, não é fazer mil gols, como Pelé. 
                                                               É fazer um gol como Pelé 

                                                            Carlos Drummond de Andrade

quinta-feira, 21 de outubro de 2021

Em comum acordo



Tudo bem, o São Paulo ganhou o clássico contra o Corinthians! Mas se há uma maneira de perceber toda a manobra que o tricolor fez para trazer de volta ao comando do time o ídolo Rogério Ceni é notar que nunca na história desse país essa coisa de dizer que tudo se deu em comum acordo soou tão falsa. Faz algum tempo que esse, digamos, artifício de linguagem virou moda no futebol brasileiro. De modo geral a crônica tem feito vistas grossas, mas no caso do time do Morumbi não engoliu. A versão oficial não colou, nem poderia diante de todo o imediatismo que cercou a troca e escancarou o quanto tudo teve de premeditado.  

É fato que esse tipo de comportamento nasceu do velho jeitinho brasileiro. Bastou fazer soar a regra de qu uma coisa, creio, iremos concordar, há muito assunto bom que acaba ficando na peneira que chacoalha com a intenção de selecionar as notícias. Há temas que se impõem, forçam passagem, mas no minuto seguinte são esquecidos. Foi o caso do goleiro da Bélgica que meteu a boca no trombone criticando essa ideia que nos ronda de se fazer uma Copa do Mundo a cada dois anos. Pelo visto implodida horas atrás na reunião da FIFA, deixou isolado o presidente Infantino.  Courtois também gritou contra a insânia de um calendário que tem maltratado os atletas. Dito por aqui, como fez o treinador palmeirense, a coisa é até aceita, mas relevada.  Lá foi diferente. 

O goleiro belga viu três de seus companheiros de seleção serem autorizados a deixar a concentração por problemas físicos. O último deles, Lukaku, uma estrela. Trata-se de um tema sério.  Colocar em risco a saúde física dos jogadores é aceitar colocar o próprio espetáculo em risco.  Acho esse um grande tema. Primeiro em razão de que quase não se leva em conta que as lesões, talvez, não estejam só ligadas ao número de partidas, mas também às mudanças no jogo. Sabe-se que hoje se corre mais, se tem um número maior de lesões na cabeça, e que o jogo ganhou um aspecto preponderantemente físico. O que não se sabe é o custo de tudo isso.  

E não se fala que esse sintoma de calendários ainda mais esticados se deu quase que como um efeito colateral dos escândalos envolvendo o futebol e seus direitos de transmissão. Antes já acontecia com interesses políticos. Desde sempre se usou tal expediente. Mas diante da necessidade de se refazer contratos deu-se um jeito de oferecer mais aos interessados. Seria bom juntar os fatos que possam corroborar essa teoria. Estou convencido de que existem.  No mais, a graça do Brasileirão continua residindo na boa campanha de times como Bragantino e Fortaleza. E nessa dualidade entre Atlético Mineiro e Flamengo. 

A ver como os dois vão acabar as semifinais que começaram na noite de ontem. Mas vocês não precisam concordar comigo. Não temos necessidade alguma de chegar a um comum acordo.    e os times teriam limites para esse tipo de situação e , como num passe de mágica, ninguém mais manda treinador embora.  Todos civilizadamente se acertam. Transparência nunca foi um mandamento no futebol por mais que todos os cartolas gostem de dizer sorrindo que são adeptos.  Os treinadores que aceitam esse tipo de justificativa sem que ela seja verdadeira também têm lá sua culpa. Mas é sabido que ninguém gosta de ser visto como alguém que foi dispensado. Por mais que a gente saiba que é do jogo. 


quinta-feira, 14 de outubro de 2021

A retranca





Sou do tempo em que a Libertadores não desfrutava de toda essa pompa. E nem pensem que sou tão velho. Não faz tanto tempo. Falando nisso, sou do tempo em que ganhar o outrora chamado Paulistão dava direito a uma alegria muito parecida com a de ganhar um Brasileirão. Pode parecer exagero. Mas quem é da minha geração saberá do que estou falando. Os fatos, no entanto, mostram que não é só o prestígio de certos torneios que mudou. Mudou também a maneira de interpretar o futebol. E isso ficou muito claro pra mim depois que o Palmeiras eliminou o Atlético Mineiro do torneio continental.  Crédito que deve ser dado ao treinador do Palmeiras, Abel Ferreira. 

O português nos obrigou a rever conceitos a respeito da retranca. Ou, no mínimo, a repensá-la. Vista por essa lente do tempo - que costuma transformar tudo - é possível concluir que a retranca já ocupou lugar mais nobre. Faz algumas décadas passou a ser vista de maneira meio maldita. Chutaria que isso se deu para valer nos últimos vinte anos, talvez um pouco mais. Qualquer um que tenha tido um aprendizado meio raiz do jogo de bola sabe que um time capaz de segurar a bronca sempre foi algo para se respeitar.  Mas alguma coisa se deu.  A retranca passou a ser sinônimo de algo menor, digo menor do que o que ela realmente pode representar. O Palmeiras está aí para provar. 

É possível que uma das razões dessa transformação tenha sido a invasão de visões muito táticas e técnicas que passaram a regar as conversas e os debates a respeito do futebol. Isso por mais que aquela ladainha da necessidade de fechar a casinha esteja sempre nos rondando e testando nossos nervos. Como anda testando nossos nervos o comportamento de Abel Ferreira. E essa realidade se impõe por mais que treinadores respeitados ao longo do tempo tenham insistido em dizer que foram buscar inspiração em outras modalidades, como o basquete por exemplo, onde a defesa sempre teve papel de destaque. 

Eu mesmo e minha ânsia por um futebol ousado me vi desafiado. Percebi meio encabulado que pode se ter um ideal de jogo, mas não se pode negar o que a retranca representa como estratégia. Usei a palavra ousado, para evitar dizer bonito. Pois no meio dos papos vi gente dizendo, para defender esse tipo de estratégia mais cautelosa, que futebol bonito não existe. O que existe é jogar bem. Entendo perfeitamente a colocação.  Se um time se sagrou campeão como não reconhecer que jogou bem? Ora, reconhecendo que é possível que se alcance objetivos sem necessariamente fazer questão do requinte. Da beleza.  

E na minha opinião a grande questão que cerca a retranca, e o que a impede de ser tratada de maneira mais clara, é um certo pudor de aceitá-la pra valer, dizendo que ao optar por ela se partiu da premissa de que o adversário era melhor. De outra maneira por que não apostar num jogo mais ofensivo, mais de igual para igual? Mas há egos e tradições demais a impedir esse tipo de transparência, de discurso.  Só uma coisa não dá pra negar: a retranca só floresce quando a capacidade de brilhar de um time de algum modo encontra limites. E que o que anda salvando Abel , por hora, é o prestígio atual da Libertadores.

quinta-feira, 7 de outubro de 2021

O jogo é hoje



Pensando no que espera o torcedor santista hoje a noite foi inevitável lembrar da frase que inicia a canção é dá título a uma das músicas do genial violonista Paulinho Nogueira, que se não me falha a memória era corintiano. Durante os anos em que estudei violão as partituras de Paulinho frequentaram minha pasta. Juro que tentei executá-las  com a maior virtuosidade que me era possível. Por falar nisso, até hoje me arrependo de não ter aproveitado as oportunidades que tive pra falar com ele. Nos últimos anos de vida, muitas vezes em que ia correr no Parque da Água Branca, em São Paulo, o via no início das manhãs sentado sozinho num dos bancos do Parque, com ar de quem pensava na vida e tramava sem dar pistas alguma nova obra.  O resto da primeira estrofe da música, aliás, faz todo sentido, não só a primeira frase ou o título, que com reverência plagiei. Diz a canção: O jogo é hoje/nosso time não pode perder/ Se não puder na bola/ Não dá bola vai de sola/ Que a torcida não quer nem saber.  Faz  ou não faz todo sentido? 

E não só para os santistas, mas também para os torcedores do São Paulo, o adversário desta noite no Morumbi.  É jogo com ar de tudo ou nada. Ou, menos polidamente como sugere a canção, vai ou racha. Tem sido comum se ouvir por aí que os dois times vivem momentos parecidos, andam sendo assombrados pela fantasma do rebaixamento, morando  perto da fronteira da tabela que separa a agonia da salvação. Na minha modesta opinião, não se trata de uma afirmação muito precisa. Não é bem assim. Há uma certo abismo separando as duas equipes.  Vejo o elenco do tricolor com muito mais opções do que o elenco santista, sobre quem pesa um sem fim de fatores.  Uma incômoda sequência de dez jogos sem vencer.  Um técnico recém chegado que , pra complicar, só viu a situação da equipe piorar desde então.  Isso sem falar no desmanche que o time santista viveu nos últimos tempos. 

O São Paulo, queiram ou não, conseguiu dar uma respirada ao vencer o Paulista e ainda tem sobre ele um ar de esperança de que o time se reencontre.  Ainda que o mesmo venha testando de lá pra cá a paciência dos são-paulinos. Sem contar o fato de que jogará em casa e bem na hora em que poderá ter de volta a sua torcida.  Chega a ser cáustico que o clássico que ficou conhecido como SanSão ostente neste momento tão pouca força. O treinador santista já deixou claro a preocupação com os efeitos da pressão que os jogadores andam sentindo. O fato é que só há uma maneira a essa altura de neutralizá-la, vencendo.  E não só hoje a noite. Será preciso seguir vencendo.  Nunca dar à Vila um ar de alçapão foi tão crucial.  

Na história recente do Santos o torcedor se acostumou a sugerir, com um discreto sorriso no rosto, que pros lados de Urbano caldeira o raio costuma cair sim duas vezes no mesmo lugar. Mas a coisa mudou e será necessário, como já disse, torcer pra que o raio que nunca caiu na Vila realmente não caia. E neste momento há no ar do que a simples assombração do descenso. Notem que a tal segundona nunca andou tão ameaçadora. Foi-se o tempo em que uma vez lá se dava quase por certo que o time grande seria capaz de voltar ba temporada seguinte. Enfim, como cantou Paulinho Nogueira, o jogo é hoje.  E como também diz a obra: tá na hora da grande emoção.