quinta-feira, 30 de abril de 2020

O papel da torcida





Tarde de sábado. A faixa de areia próxima da Fonte Luminosa, no Gonzaga, ferve. Um grande número de torcedores se aglomera em torno do campo traçado para ser o cenário da decisão do Torneio de Inverno de Futebol de Praia.  Alguns que estão ali desceram a serra especialmente pra isso. O que não era raro.  Campos Melo e Democrático, dois dos times mais respeitados desse universo futebolístico, fazem um jogo quente e,  acima de tudo, disputadíssimo. 

O placar registra um empate  em dois a dois quando é apontado um pênalti a favor do Democrático, naquele início dos anos setenta dono de um futebol refinado, lembrado com admiração até hoje. Ao soar o apito a bagunça se instaura em forma de descontentamento. Não demora e um sem fim de olhares passam a exigir uma posição do bandeirinha, olhares pra lá de inquisidores, pra dizer o mínimo. Mas ele, valente, ratifica o que tinha sido sinalizado pelo árbitro, ainda que àquela altura fosse quase impossível em meio ao areião distinguir as de linhas de fundo e as da lateral da grande área, local onde o lance se deu. 

Fato é que o tal pênalti entrou pra história mas nunca foi batido. Isso porque a revolta dos que se consideraram injustiçados terminou com os tais arrancando as duas traves. E ponto final. Um episódio que sem dúvida alguma não decretou o fim de um momento glorioso mas que possivelmente contribuiu para que ele tivesse parte de seu brilho roubado e, quem sabe, até fosse abreviado. No dia seguinte o espaço em branco estampado em uma das folhas do principal jornal da cidade -  com uma legenda avisando que ali deveria estar a foto do campeão - quis ser, antes de qualquer outra coisa, um puxão de orelha. E foi.

Tudo muito passional  como sempre foi a receita do jogo de bola.  Fiz questão de resgatar essa passagem, já que andei falando tanto do Futebol de Praia, porque ela é um ótimo exemplo do quanto pode ser decisivo o papel da torcida para o futebol. É tênue demais, e sempre foi, essa linha que separa o ato de torcer que enaltece daquele que mancha, agride e fere o futebol. E em certo sentido não deixa de ser exatamente o que temos visto acontecer com o futebol dito profissional. Nós que há tempos temos sido condenados a jogos com torcida única. Uma realidade triste, provocada por alguns, mas que a todos condena. 

Sem a paixão não teria existido o Futebol de Praia com aquele esplendor, aquele clima  que nas últimas semanas tentei resgatar.  Mas essa mesma paixão não deixou de lhe roubar o brilho, como disseE se voltei ao tema foi instigado por uma pesquisa divulgada  dias atrás que apontou que atualmente quase quatro em cada dez torcedores têm como seu mais de um time. Isso mesmo, torcem para dois times ou mais. Ainda que o segundo, muitas vezes, seja gringo. Para mim uma grande prova de que o torcedor, assim como o futebol,  está em constante mutação.  Além disso, o  tema da pesquisa, como podem ver, me foi também uma boa oportunidade para não deixar passar em branco o papel que a torcida teve - para o bem e para o mal - na saudosa época em que o Futebol de Praia reinava.  

* artigo escrito para o jornal " A Tribuna", de Santos/SP

quinta-feira, 23 de abril de 2020

Reis da Praia

Foto ilustrativa - Fonte: giginarede.blogspot.com





Ele domina a bola. O burburinho em torno do campo diminui. Respirações que se rearranjam. Prova do suspense que o lance suscita. A linha que ele traça não é a mais curta em direção ao gol, mas ninguém duvida que seja a melhor. Sabem do que é capaz. Os dribles vão se sucedendo. E agora o efeito se dá ao contrário. O barulho da torcida aumenta. Os zagueiros ficaram para trás. Resta o goleiro, arrancado do lance com um corte a sugerir uma lâmina. Chuta, chuta. A sugestão para o desfecho é pedida em tom de desespero. Como se Peirão, o homem com a bola, não soubesse o que fazer com ela. O camisa dez não ouve nada. Só pensa no lateral que, com o canto do olho, vê se aproximar em velocidade, e que justifica as súplicas de quem assiste a tudo. Ameaça chutar. E o instinto do adversário o faz usar a única arma possível: se atirar, dar um carrinho. Mas a bola no instante seguinte está no ar, levantada com sutileza, enquanto o pobre lateral cumpre - já um tanto envergonhado - sua trajetória. Vai parar longe. Não sem antes ter dado outro quilate ao gol mais bonito da carreira daquele que semana passada chamei de o Rei da Praia. Foi contra o Praia Grande, em setenta e três, ano em que o Campos Melo se sagrou campeão. 




Mas saibam vocês que muito antes de Peirão brilhar já ia na praia ver um jogador: Carlos Prieto, o Gigi, naqueles idos dos anos sessenta estrela do Nautico. Tempos depois, quando Peirão passou a fazer o que fez, Gigi tinha bons motivos para não se espantar. Conhecia o garoto desde os tempos de juvenil no futebol de salão do clube Internacional. E também porque o futebol de praia nunca teve segredos para ele que ajudou a fundar a Liga e que hoje se orgulha, com razão, de um dia tê-la visto com mais de dois mil e quinhentos inscritos. Mas talvez a grande prova de que aqueles foram anos de ouro seja a questão que os dois fazem de dizer - e que num primeiro momento pode parecer um arroubo de humildade -  que não eram os únicos, que tinha muita gente boa. Argumento reforçado pelo fato de na época terem sido raros os bicampeões. 




Gigi, creiam, nunca gostou de calçar chuteiras. E por ser alto acabou centroavante depois de ter começado como meia. Peirão,  segundo o amigo, fazia lembrar o Sócrates, pela inteligência. Não deve ter sido à toa o flerte com a medicina. E Peirão, por sua vez, gostava da área mas não de ficar parado por lá. Os dois nunca deixam de lembrar que futebol de praia não é futebol de areia. E que há um abismo que o separa do futebol de várzea. E eu, bom, só faço questão de dizer que a cátedra do jogo de bola jamais será privilégio de profissionais. 


* artigo escrito para o jornal " A Tribuna", de Santos/SP

quinta-feira, 16 de abril de 2020

O Rei da Praia


Em pé: Zé Carlos, Ned, Pedrinho, ??, Jorge Amaral e Wilson
Agachados: Wilson, Germano, Nico, Zé Lua e Peirão
Fonte: giginarede.blogspot.com


A coisa se deu assim. Sempre me interessei pelo futebol de praia. Poderia encontrar na minha própria história explicação pra isso. Dias e tardes atrás de uma bola às margens do Atlântico. Tanto que na conversa que tivemos por telefone - tempos de pandemia - o homem disse também que guarda muito bem a lembrança de verões em que as peladas à beira mar pareciam não ter fim. O que teve fim foi o tempo em que o futebol de praia tinha glamour.  Em que os jornais da cidade se interessavam por ele e que, não raro, uma cena das rodadas disputadas nas tardes de sábado podiam ser vistas na primeira página convidando os interessados  a saber de outros detalhes, dos resultados. Essa foi a época dele.  

Mas o que despertou meu interesse por sua figura foi  o fato de várias vezes enquanto conversava sobre futebol de praia o nome dele sempre aparecer. Conversas cujos interlocutores nem se conheciam. Coincidências que foram me convencendo de que o homem tinha mesmo bola para, vira e mexe, ser chamado de o Pelé da Praia. Não foi difícil encontrá-lo. Luiz Francisco Peirão Rodrigues não tem ideia de quantos gols fez. Não importa. Jogava com a dez, claro. Rei é Rei. E, embora tenha vestido outras camisas, entrou para a história envergando a do Campos Melo. Time com o qual venceu o campeonato de 1973, já um tanto perto da fronteira que marcaria o final do que hoje pode ser visto como um apogeu. 

Uma época de ouro que foi da metade dos anos sessenta até a metade dos setenta. Sucesso facilmente  medido pela atração que exercia. Muitas partidas, mesmo disputadas na praia, tinham lotação esgotada. Era difícil encontrar um ponto sequer de onde desse pra ver o jogo. E se o auge do futebol de praia durou uma década o reinado de Peirão se ocupou de abrilhantar metade dela. E o fez sem ter noção do que representava, sem notar a fama. Só o tempo o deixou tomar ciência dela, ainda que os acontecimentos lhe dessem pistas. 

Lembrou que certa vez depois de uma partida disputada contra o Igaratá ali perto da Fonte Luminosa, no Bairro do Gonzaga, onde nasceu, foi abordado por um garoto que lhe pediu a camisa. Teve de dizer não. O o motivo era simples: só tinha aquela. O Rei da Praia usava a mesma camisa durante toda a temporada, quando não atravessa umas duas ou três com ela. Peço desculpas aos que são do métier por entrar em solo sagrado. Ao qual , se não for impedido, gostaria até de voltar semana que vem. Porque a virtude da história de Peirão, de sua fama, é provar que a beleza  sempre fica. Mesmo depois de o futebol ter virado outra coisa. 

* artigo escrito para o jornal " A Tribuna", de Santos/SP

quinta-feira, 9 de abril de 2020

O que realmente importa



A frase é das mais lembradas, desgastada até, entre as tantas que o dramaturgo, Nelson Rodrigues, cunhou com imensa maestria. É, inclusive, das mais citadas  no meio esportivo. Falo daquela que decretou certa vez que o futebol é a coisa mais importante dentre as coisas desimportantes. E os que, se dizendo apaixonados pelo jogo de bola, ao longo do tempo se recusaram a admitir a precisão do pensamento nela contido a essa altura tiveram bons motivos para mudar de opinião. Compreendo, era realidade não imaginada  ficarmos todos de uma hora para outra sem um mísero jogo de bola sequer para nos distrair. Mais desafiador que isso para o nosso "modus vivendi" só mesmo a notícia de que a novela das nove, que um dia foi das oito, iria sair de cena. 

Pode parecer cruel de minha parte, dado meu ofício, mas digo que o que a realidade nos impõe neste momento é tratar o futebol exatamente desse modo, desimportante. Pois há um número enorme de coisas verdadeiramente importantes para se cuidar. E a pressão para que a bola volte a rolar não será pequena. Desde sempre os cartolas foram bons nisso, em colocar quem manda no bolso. Não são pequenos comerciantes, se é que me faço entender. E não só a pressão não será pequena como certamente os homens da bola neste exato momento estão tramando e se mexendo para contar com a ajuda do governo, colocando na mesa o velho argumento de precisar equilibrar suas contas desequilibradas por natureza. 

Vejam, se na Inglaterra o cultuado Liverpool - cujo valor de mercado em nossa surrada moeda beira os cinquenta bilhões de reais - andou de olho em recursos de um fundo que tem como finalidade proteger trabalhadores durante a pandemia, e disso só desistiu depois de perceber que a intenção tinha pegado muito mal, imaginem vocês o que não pode se dar por aqui. É bom ficar atento. Principalmente porque o esporte se faz neste momento, como sempre, um espelho fiel da sociedade, onde os abastados terão seus trunfos enquanto aos menos favorecidos restará gritar na esperança de que algo seja feito por eles. Se neste momento o futebol se apresenta como um necessitado pensemos no que não andam vivendo então outras modalidades e seus atletas. 

No mais, se me perguntarem do mar vos digo. Apreciei vê-lo mudar de humor com a beleza ímpar com que sempre o fez. A tragar as areias, a invadir os canais. Como gostei de ver saltar a veia poética de Nelson Rodrigues, o homem que certo dia disse que se negava a acreditar que um político, nem mesmo o mais doce deles, tivesse senso moral. Se estava certo ou não os dias estão aí para desafiá-los. Não que eu tivesse dúvida a respeito da poesia em Nelson. Alegro-me pela constatação, e só. Como escreveu , Nilo Oliveira, sabiamente citado outro dia pelo amigo Marcelo Montenegro," o poeta é o que acerta de raspão - e o tempo se encarrega de colocar o alvo no lugar exato  onde o poeta supostamente errou". Palavras que soam ainda mais perfeitas nessa hora em que precisamos discutir o futebol como a coisa mais importante... dentre as coisas desimportantes

* artigo escrito para o jornal "A Tribuna", de Santos/SP

quinta-feira, 2 de abril de 2020

Ainda a saudade do mar




Se quiserem saber do mar, fui vê-lo.Ostentava a majestade de sempre. Em segredo tramei um sem fim de encontros para, quem sabe, abrandar essa saudade. Um deles imaginei de um jeito que até já tivemos. Dado pouco antes do amanhecer, quando a cidade  dorme mas uma  semi escuridão ainda o veste de mistério. No entanto, decidi pela obediência civil posto que a calmaria dele me soou, antes de outra coisa qualquer, compreensiva. Como se suas águas quisessem expressar  comunhão com estes dias singulares que nos vão sendo impostos. 

Sim, meus amigos, o mar descansava como se só cercado por homens fosse de alguma forma pleno. Havia por ali uns poucos a caminhar, e que eu também fiz questão de mirar de longe. Menos por receio e mais para preservar a aura sagrada do momento. Esperei até um instante em que um caminho solitário se abrisse no jardim da orla, o que se deu, talvez nem por acaso, quase aos pés da estátua de Vicente de Carvalho, o nosso poeta do mar. Notei por ali alguns, que preservando um costume, ou um tipo de entrega que é minha também, não andavam, não tinham o ar de quem tinha vindo para caminhar, apenas o miravam, imóveis, com o olhar cravado num ponto qualquer em direção à linha do horizonte. Ancorados no mar, náufragos em si mesmos. 

E, como sempre, havia neles a transcendência da contemplação. Um misto de confissão e devoção a insinuar que simplesmente mirar o mar pudesse iluminar, revelar algo além da própria paisagem. Como havia ali - ao mesmo tempo - a solidão espelhada num manto quase branco. As areias que uma manhã  mais ficaram sem ver os homens a desenhar sobre elas a velha dança de pés anônimos, ficaram sem ouvir o rufar dos tamboréus que sempre lhe foram tão íntimos. Era tudo ausência e amplidão. Nada de homens a surgir logo cedo para traçar linhas em sua tez granulada que por sua vez decretariam o universo de muitas diversões. Nada daquele burburinho que os homens inevitavelmente fazem nascer quando jogam. Nada. 

Nenhuma bola a quicar ou a desenhar no ar linhas improváveis, sempre capazes de atrair os olhares de distraídos interessados. E essa bem poderia ser uma lição destes dias. A beleza não está no " grand monde" do esporte mundial. A beleza está, ou esteve sempre, ali, à beira-mar, refletida nos homens ensaiando infinitamente movimentos de um jogo que aprenderam a ter para si. E que ao longo de tempo sempre encontraram nestas nossas margens atlânticas um solo fértil, capaz de mantê-los vivos. 

E de que será que falam todos eles agora? Sem poder contar, ou fantasiar, sobre as peripécias que andaram aprontando durante a pelada ou coisa que o valha. Quase todos sedentos de um triunfo qualquer. Neste momento, quando sinto minhas palavras nascerem envoltas em nostalgia e com um certo acento rococó inclusive, bem poderia ser uma lição destes dias também essa comprovação de que sonhar com uma bola nos pés é mais do que mirar todo o circo que disso se fez e que agora estancou. E a prova cabal é que a ausência da praia, essa ponte que nos leva ao mar, nos rouba parte da fantasia. 


* artigo escrito para o jornal " A Tribuna", Santos/SP