quinta-feira, 30 de novembro de 2023

As pérolas e a vaia



Podem falar o que for mas o futebol é uma fonte inesgotável de divertimento. Nem sempre pelo que se dá entre as quatro linhas. Nos últimos dias, em meio a debacle da nossa Seleção, não faltaram bons exemplos do que digo. Lembremos algumas frases ditas no calor do momento, por exemplo. A de Gabriel Jesus dizendo que o gol não era o forte dele. Por mais que o futebol atual e seus esquemas táticos tenham ditado outras funções a um camisa nove não deixa de ser lapidar. Ou a dita pelo lateral Emerson Royal, classificando o esquema do treinador do escrete nacional de algo muito difícil de ser executado. E o cara joga em uma Liga famosa pela excelência técnica. Ou a de Mourinho sobre Ancelloti afirmando que só um louco deixa o Real Madrid. E a do Ancelotti ontem dizendo que concorda com o que disse o português. Boas demais, não? 

Outra coisa que me chamou a atenção: a vaia. Algo que a nossa Seleção parece ter despertado. E ouvida também ao fim do empate do Botafogo com o Santos. Vaias são sempre cruéis, não há dúvida. Não por acaso soaram pela primeira vez durante as execuções na Grécia antiga onde o espectador passou a usá-la quando achava que o que estava vendo não merecia aplausos. De onde é possível concluir que o torcedor brasileiro tem sido até  muito condescendente com o futebol que anda vendo. Em geral quando a vaia pinta na área o circo já pegou fogo. 

Prova disso é que uma das vezes em que um jogador conseguiu a façanha de transformar uma vaia em aplauso fez do momento uma página inesquecível. Caso de Julinho Botelho em maio de 1959, quando a Seleção Brasileira entrou em campo para comemorar a conquista da Copa no ano anterior e os alto falantes do Maracanã anunciaram que ele ocuparia o lugar de Garrincha barrado por estar acima do peso, dizem. A estrondosa vaia teria sido ouvida pelo ponta direita ainda no vestiário e ele ao ouvi-la teria prometido a Nilton Santos jogar muito. E jogou. Com dois minutos de jogo fez o primeiro gol do Brasil no amistoso contra a Inglaterra, deu passe para o segundo, seguiu brilhando e saiu de campo aplaudido de pé. Até hoje há quem diga que se tratou de uma das maiores apresentações individuais da história do nosso futebol. 

O que quase ninguém lembra é que Julinho, que tinha estado com a Seleção no Mundial anterior era pra estar também em 1958. Ocorre que depois de ir muito bem em 54 acabou negociado com a Fiorentina time com o qual conquistaria um inédito Campeonato Italiano. Naquela altura Julinho tinha fama e a experiência de três temporadas passadas na Europa. Teria ocupado o lugar de Garrincha. Isso mesmo! Pois o titular era Joel, do Flamengo. Talvez os mais novos nem acreditem. Mas não teço aqui uma peça de ficção. Julinho recusou o convite! Alegou que não seria justo jogar uma Copa no lugar de alguém que estava no Brasil. E, ao contrário do que se ouve muito por aí, durante a Copa os manda chuvas do elenco não pediram pra que Garrincha fosse escalado. 

Relatos em livros, como o de Ruy Castro, sustentam que no primeiro jogo era preciso um ponta que atuasse recuado. Não era o caso do Mané. E na segunda partida, por mais que tenha sido avisado que não deveria segurar a bola porque o tal de Stanley, o lateral inglês, era violento e desleal, Joel deu mole. Levou uma botinada e ficou às voltas com o departamento médico. E se Garrincha acabou escalado contra os temidos - e até favoritos  -soviéticos foi porque a estratégia brasileira era ser ofensivo desde o início. É, já não se ousa mais como antigamente. Mas a vaia e o aplauso continuam tendo rigorosamente a mesma alma. 

quinta-feira, 23 de novembro de 2023

Ah, moleque!



Depois de ter visto as cenas lamentáveis na arquibancada do Maracanã na terça vou preferir falar do que pode dar vida ao jogo de bola. A molecada. O futebol nos homens é uma outra coisa. É profissão. É um tudo ou nada. É um balé de movimentos premeditados. Algo que raramente se satisfaz com o ato de se divertir. Isso explica muito da graça cativante que se descortina quando damos de cara com algum moleque desafiando tudo isso. Já vimos tantos. Não esquecemos nunca a precocidade daquele que se fez o Rei. E que continua, até hoje, sendo  o mais novo a entrar em campo pela Seleção e a marcar um gol vestindo a camisa dela.  Chego a pensar que um dos segredos de Pelé foi justamente o de conseguir preservar em si a capacidade de jogar futebol como quem brinca. Persistiu nele algo de moleque. Algo que, olhando bem, o maior de todos os camisas dez deixava transparecer no sorriso. Uma aura que se renova agora na figura de Endrick que acaba de debutar na Seleção. 

A jóia palmeirense recém envolvida em polpuda transação irá se juntar a outros meninos, alguns já nem tão meninos assim, que o mercado se encarregou de levar pra longe de nós. Será uma questão de tempo para que outros sigam pela mesma trilha drenando do nosso futebol essa força capaz de lhe dar outra vida.  Os homens de negócio do mundo da bola, preocupados que estão com as cifras, não os buscam exatamente pelo que jogam. Os buscam pelo que podem vir a render. E nesse sentido quanto mais cedo melhor. Não tardará e  jogadores como o santista Marcos Leonardo seguirão pelo mesmo caminho. E assim vamos ficando cada vez mais sem esse combustível essencial da juventude. Imaginem o nosso futebol se Vini Jr estivesse aqui... Vitor Roque...Rodrygo. Um fluxo que não só não nos deixa remoçar como nos envelhece. 



A última janela de transações internacionais reforçou esse viés. Um sem fim de jogadores já bem rodados têm desembarcado aqui. E ainda que ostentem trajetórias de se admirar - o que está muito longe de ser o caso da maioria - de uma forma ou de outra fazem nosso futebol perder o viço. Se trata de uma equação inevitável. Só mesmo a inocência dos jovens para driblar o ar sério e modorrento que tanto insiste em ser a cara do nosso futebol atual. Quero crer que muitos por aí, como eu, andam saudosos de um sentimento que se perdeu. Aquela ansiedade boa que se sentia quando um jogo ia começar e trazíamos conosco a certeza de que lá estaria alguém que poderia nos deslumbrar. Lembro de viver muito essa sensação nos tempos do Zico. Como era bom poder esperar isso do futebol. 

Mas hoje  alguém começa a nos dar esse prazer e o tal do mercado logo aparece na área com sua mão impiedosa levando o talento pra um lugar em que nossa conexão com ele já não pode ser tão íntima. Sem dizer que na maior parte das vezes quando se fala de um jovem talento se fala também do cuidado que é preciso ter com ele. Que tem de ser colocado pra jogar com cuidado, que não se pode queimar etapas. Mas, estranhamente, ao mesmo tempo eles já assinaram contratos para amarrá-los, já viram as empresas esportivas lhes seduzirem com seu mundo de sonhos e suas chuteiras exclusivas. Tem de colocar é a molecada pra jogar. Ainda mais quando a juventude chega pedindo passagem.             

quinta-feira, 16 de novembro de 2023

Nosso Brasileirão surreal



O Botafogo tá na fogueira. Não há como mascarar essa verdade. A mim soou desde o início que tamanha frente era cruel demais de administrar. Tivesse o time botafoguense desenhado uma liderança normal a realidade seria outra. Mas a bola , a sorte e os gols de Tiquinho Soares o colocaram em total evidência. O fizeram desenhar o melhor primeiro turno da era dos pontos corridos. Impor aos que precisaram se contentar em persegui-lo uma distância que chegou a treze pontos. Algo que em dado momento soou gigante. E agora está aí deixando o pessoal da crônica com cara de quem não acredita no que vê.  Está pra nascer quem consiga explicar do que o futebol é capaz. Interpretar esse maluquice a que o time da estrela solitária tem condenado seus torcedores. 

O modo como começou o jogo contra o Vasco dias atrás. Valente, dando pinta de que poderia voltar a ser o que vinha sendo, que não sentiria a bigorna sobre as costas que acabou sendo o encontro  com o Palmeiras. O tipo de enredo que costuma minar qualquer confiança. Pra desespero dos que foram convencidos a sonhar com o título brasileiro desde praticamente o início a partir de agora, sob comando de Tiago Nunes, será torcer para que a realidade não venha realmente a ser tão perversa quanto a curva de aproveitamento sugere.  No momento em que escrevo ouço gente aqui afirmando que não se trata de uma questão técnica mas psicológica. Cheguei a crer que Lúcio Flávio ter sido alçado à condição de comandante atendendo ao clamor do elenco que via nele o cara pra tocar o barco um antídoto pra isso. Mas a tempestade se fez. 

Os capítulos que se seguiram ajudaram a manter a veia surreal de tudo o que estamos vendo se dar. O Bragantino que no momento em que passou a ser visto como sério candidato não conseguiu segurar a onda também. O Palmeiras que foi ao Maracanã renascido para encarar aquele que a história recente fez seu maior rival e de lá saiu fazendo o torcedor alviverde, tão acostumado a grandes conquistas, duvidar um tanto dessa alentadora sobrevida. Crença resgatada pouco depois na vitória sobre o Inter que lhe fez chegar a liderança.  Mas aproveitemos o caldo que a história vai nos dando. 

Na ausência do brilho técnico, de jogos memoráveis, de times que dão gosto de ver, já não podemos dizer que nosso futebol anda totalmente sem graça. Por mais que  essa graça tenha um quê da emoção que costuma nos ser oferecida num jogo de bingo. Daquelas que todos começam a se olhar quando vários jogadores estão esperando uma última pedra. Ou estaria exagerando? O que me leva a aceitar a afirmação feita dia desses pelo glorificado Carlo Ancelotti que - dizem - colocará em breve todo seu conhecimento a favor da Seleção Brasileira. Disse ele que ganhar é a única maneira para se avaliar um técnico. Que tenham isso em mente Abel Ferreira, Tite, Pedro Caixinha, e todos os que por ventura tenham condições de chegar lá. Ainda que eu creia que eles saibam de cor e acreditem cegamente nessa teoria.

Eu, de minha parte, acho que a coisa não é tão simples assim, mas sabidamente tenho perfil de quem enxerga tudo de forma mais complexa. Sou , por isso, instado a acreditar mais no que disse certa vez Frida Kahlo, ao sugerir uma fórmula para se tornar invencível. Rir. Isso mesmo, rir.  Disse ela: rir, não como os que sempre ganham. Mas como aqueles que não se rendem. O que me fez ver que esse pode ser um jeito bom de encarar as imensas decepções e glórias que este Brasileirão está prestes a ofertar. 


quinta-feira, 9 de novembro de 2023

O jeitinho argentino



Costumo brincar com meus amigos dizendo que se a Argentina tivesse vencido a Copa de 2014 muitos dos hermanos estariam em Copacabana comemorando até hoje. Se tivessem vencido a Libertadores no sábado idem. Gosto de imaginar a cena. Um tipo com jeitão portenho, uma já surrada camisa da seleção, pele vermelha do sol, deixando transparecer intimidade total com a praia e, claro, pronto pra falar de futebol com quem chegasse perto disposto a isso. É uma licença poética , mas que diz muito sobre do que são capazes. Algo que, de certa forma, elucida o jeito deles de torcer. Infinitamente mais vibrante do que o nosso. Tão vibrante que aos poucos foram me convencendo de que podem nos ensinar muito a respeito. 

E, olha, como costumo brincar também, venderam caro aquela Copa para os alemães. Não fosse o tal de Gotze achar aquele gol na prorrogação, sei não.  A recente decisão que fez deles campeões mundiais também foi um espelho disso. A França mesmo oscilando e não mantendo a pegada que tanto impressionou no início do Mundial  era páreo duro. E mesmo fazendo uso de todos os recursos possíveis, inclusindo aí um afiado Mbappé, acabou sucumbindo diante dos argentinos. Por essas e outras vejo neles algo que parece nos faltar faz tempo. Poderia dizer que é uma competitividade, mas não é só isso. É uma questão anímica. Um certo dom para dar alma às grandes batalhas e a certas páginas que o futebol desenha.  Fazendo muitas vezes, no meu modo de ver, essa coisa de dizer que somos o país de futebol soar prepotente. 

E talvez seja por isso que pra nós uma final contra um time argentino jamais soará como uma final qualquer. E isso nunca se reduzirá ao velho discurso da rivalidade que, como já disse, muitos exploraram sem pudor na ânsia de esquentar transmissões. Assim como costumamos dizer que esse ou aquele escrete argentino não anda com o time afinado como teve em outros tempos. Seja como for na hora em que a bola rola a garganta dá um nó porque sabemos que, seja como for, nada tornará a missão mais fácil. No mais, somos muito parecidos. Irmanados que estamos nesta nossa América. Ameaçados pela inflação. Desiludidos com a constatação de que nossos países poderiam muito mais. Igualados também pela sombra de uma certa extrema direita que nos torna outro tanto iguais. 

Sem contar que a final da Libertadores nos mostrou ainda uma outra semelhança: um certo despreparo para lidar com o futebol quando ele vira um grande evento. Mas bagunça na hora de decidir um título continental é coisa que manchou tempos atrás o futebol europeu também. Mas por estas bandas, não sei, a coisa se mistura a um certo descaso. Enfim, ficamos parecidos, inclusive, quando o futebol revela seu lado mais perverso, mais bárbaro. A essa altura pode soar descabida essa espécie de ode aos argentinos, depois de torcer para que a maneira de pensar o futebol defendida por Diniz triunfasse. E se triunfou justamente sobre eles, isso sem dúvida alguma amplificou a graça da coisa. E provou também que nos momentos em que o futebol revela seu lado nobre os argentinos podem muito. Disse Diniz horas depois do triunfo sobre o Boca - ao se vestir novamente de técnico da Seleção Brasileira - que talvez esteja na hora de admirar mais quem é bom do que quem ganha. Mas aí, nesse caso, lhes digo eu: não é pra tanto.        

sábado, 4 de novembro de 2023

Vojvoda, o original



Sei que vivemos em um país em que os títulos são decisivos para que alguém seja reconhecido como o tal. E quando não são os títulos é a grana. E quando não é a grana agora pode ser o número de seguidores. Por mais que eu seja de um tempo em que soaria pra lá de estranho se você viesse a dizer que alguém tinha seguidores. Mas deixemos as questões temporais de lado. Pois se tem uma coisa que desafia o tempo são personagens originais.  Falo num nível que faz certos homens ganharem um quê de inoxidáveis. E o que vou por fim citar aqui me faz recordar muito do Seo Antenor.  Nos finais de semana quando a molecada se encontrava no velho campinho que ficava entre a estrada de ferro e a pedreira ele sempre estava lá. 

E, meio sem que se soubesse como, depois de escolhido os times ele sempre se achegava ao escrete com o qual se sentia mais afinado e começava a dar instruções. Falava baixo, quase como se tivesse contando segredos. Mas aquilo caia tão bem nos ouvidos da molecada que não me lembro de alguém que não tenha se desdobrado pra tentar fazer a coisa minimamente do jeito que Antenor propunha. E o que era mais intrigante é que o homem não tinha pinta de boleiro. Não contava histórias de outros tempos. Durante a semana era visto executando tarefas banais como cuidar dos passarinhos ou da jardim da sua pequena casa. E quando não estava fazendo nada era visto sentado com a mulher numa cadeira de praia em frente ao portão de casa. Jamais na padaria onde a conversa dos mais velhos sobre futebol poderia facialmente ser confundida com uma algazarra. 

Vez por outra chegava ao campinho mais cedo do que todo mundo. Tirava um tufo de mato do pé da trave. Depois caminhava de cabeça baixa, parando aqui e ali para puxar com um dos pés um pouco de terra na tentativa de tapar ou reduzir buracos que podiam vitimar a garotada. E é em Juan Pablo Vojvoda, o técnico do Fortaleza, que vejo um pouco do Seo Antenor. Não tem pinta de boleiro. Quando o ouço falar é quase sempre com ar sóbrio. Lembro que quando começou a fazer certo sucesso foi flagrado pela imprensa saindo não sei se de casa ou do clube para ir ver uma pelada que estava sendo travada ali nas redondezas. Aos poucos foi construindo uma história de respeito. E depois de conquistar as últimas três edições do estadual acaba de levar o Fortaleza a uma decisão de torneio continental. Mas isso é detalhe se quisermos driblar essa história de enaltecer os homens por seus títulos. 

Vojvoda , por uma dessas singularidades do futebol brasileiro, chegou ao posto que ocupa sem ostentar um título de expressão sequer. Tinha levado o modesto Union La Calera, do Chile, à Libertadores é verdade. E com isso já teria credencial para ser tido como um personagem original. Mas foi além, fez com o time dele uma campanha incrível no Brasileirão de 2021 quando o Fortaleza figurou entre os quatro melhores do principal torneio de futebol do país. E mais, em evidência total, resistiu ao assédio dos ditos grandes. E ao agir assim seguiu por um caminho que quase nenhum dos nossos professores teve coragem de trilhar, e que o tem levado cada vez mais longe. Por isso Vojvoda, assim como fazia o velho Antenor, me dá a impressão de não estar muito interessado em copiar fórmulas. O que convenhamos sempre foi tática das mais nobres. E pra poucos.