quinta-feira, 27 de maio de 2021

Um devaneio futebolístico

 


Vou dividir com vocês pensamentos grandiosos. Não digo que no sentido literal, mas no que carregam de valoroso. Tudo bem talvez fosse melhor dizer pretensioso mesmo. Faz tempo que o tema me ronda. Um pouco por indignação com certas cenas que se tornaram normais em campo. Como a do jogador que  está com a bola e, percebendo a chegada de um adversário, estica o braço com a nítida intenção de não deixá-lo se aproximar.  Ou aquela outra, mais malandra e sutil, a do atacante que uma vez tendo recebido a bola coloca os dois braços pra trás, encaixa ali o marcador, e assim impede que o adversário no seu encalço não consiga fazer o giro e lhe tomar a frente. 

Há na verdade um sem fim de situações. É possível que a mais constante resida no número de vezes em que um atleta ao dar de cara com um adversário em disparada faz falta claramente com a intenção de parar o que viraria um contra ataque promissor.  Com o passar do tempo esse conceito a respeito do que seria o nascedouro de um contra ataque promissor foi se distendendo. E o que se vê na maior parte das vezes atualmente é o árbitro apontar uma simples falta e ponto. Nada de punição. Fica por isso mesmo.  

Não é preciso estudar muito para se chegar à conclusão de que toda essa permissividade com o que se dá em campo só joga contra a beleza do jogo. O faz cada vez mais físico. O Board, aquela patota de senhores  que define o que pode e o que não pode em matéria de futebol, deveria ter pretensões mais nobres, mais clássicas. A gente quase esquece que a graça do futebol sempre esteve no desafio que impõe. Carregar a bola com os pés, o que do ponto de vista da coordenação motora é das coisas mais desafiadoras que o homem pode encarar. Detalhe que ao mesmo tempo escancara o quanto o jogo de bola é especial.  Pois mesmo os menos habilidosos desde sempre conseguiram um lugar na brincadeira. Eu mesmo, confesso, sou uma prova cabal disso com minha falta de sintonia fina para lidar com a bola.  

Para quem não crê nesse desafio vale uma breve citação de antropologia. Ela tem mostrado que através dos tempos esse desafio só se fez maior. Estudos mostram que se há uma coisa que evoluiu no caminho que nos separou de nossos ancestrais chimpanzés foi justamente o fato de termos cismado em ficar eretos, e com isso termos relegado os pés a tarefas, digamos, mais básicas. Quando se compara as mãos e os pés do homem e de seus ancestrais isso fica muito claro. Entre os chimpanzés  quase não existe grandes diferenças entre mãos e pés que, no caso dos chimpanzés, apresentam dedos alongados.  Ou seja uma formação adequada a fazer com eles outras tarefas e não apenas usá-los para nos manter de pé. 

Seria muito bom  pro jogo de bola que tivéssemos ambições estéticas maiores, que nos déssemos a apurar o que o futebol poderia ter de mais bonito e isso passa, depois de tudo que tenho visto e lido, por cada vez mais dar aos pés e não aos braços e mãos o protagonismo. Um protocolo mais rígido  com o que é permitido em campo. Nada me tira da cabeça que uma vez posta em prática essa receita o drible voltaria a florescer, o gingado seria mais do que nunca um artifício dos craques, os contra ataques velozes e precisos se fariam infinitamente mais presentes. 

Perdoem tanta elucubração. Acusem -me de falta de conexão com a realidade se acharem que  é o caso. Desde o início joguei limpo, fui transparente, avisando que o que estas linhas guardavam era algo pretensioso. E se não exatamente no que diz respeito a questões estéticas, ao menos na intenção do poder pensar o futebol com liberdade. Uma maneira de tratar o jogo que obrigue quem está em campo a ser mais elegante, mais refinado nos movimentos. O embate sempre haverá. Não se trata disso. Seria impossível anular essa questão. Mas esse olhar mais exigente talvez fizesse até os grossos mais vistosos.  O físico , é preciso reconhecer, deu grande contribuição ao futebol como o  conhecemos hoje. Mas tá mais do que na hora de deixar a cabeça - representada de certa forma pelos pés - voltar a ter o protagonismo.  

sexta-feira, 21 de maio de 2021

Goleiros



A modernidade é cruel. Diante dela nem aquele velho chavão de que onde  joga um goleiro nem grama nasce deixou de ter sentido. Embora ouse apontar que por ali o gramado sintético estará sempre mais maltratado.  Sei que cada posição tem sua dor e sua delícia, mas o caso dos goleiros é outro. Ficar ali na zona do campo em que todo mundo quer chegar tendo de evitar que a bola lhe alcance a rede sabendo que viris atacantes não medirão esforços para  dar conta do recado beira a insanidade. Não é á toa que na época de moleque testemunhei várias peladas orfãs de quem aceitasse se sujeitar à tal condição, como muitas vezes escutei também o elegido para o gol, com voz de condenado, suplicar que tudo bem ficar ali entregue à sorte mas que não  valia dar bicão. 

Pra você que por ventura se apresente a essas linhas na condição de outsider saiba que um bicão vem a ser usar toda a força no pé pra chutar a bola.  Agora, se você foi o tipo de moleque que cansou de ralar a parte de fora das coxas dando carrinhos suicidas , ou do tipo que deixou pelo caminho um sem fim de tampões do dedão do pé ao tentar se consagrar em peladas travadas em chão de terra, saberá bem do que estou falando. Estará neste momento quem sabe até rindo sozinho, com certa nostalgia estampada no rosto. 

Tudo isso me veio na cabeça não por causa da lembrança do velho Barbosa, o grande Barbosa, símbolo do Vasco que quis o destino personificasse como  ninguém as agruras a que um goleiro está exposto, mas sim pelas declarações de Muralha, aquele mesmo que alguns anos atrás passou a ser o grande alvo da torcida do Flamengo. O arqueiro andou brilhando no Campeonato Paulista, teve atuações enaltecidas pela crônica e se o Mirassol uma vez mais voltou a figurar entre os semifinalistas do torneio estadual foi por obra dele.  Notem que por si só o apelido desse mineiro de três Corações, de nome Alex Roberto,  é prova de que um dia ele foi visto de modo respeitoso, de outro modo não teria ficado conhecido como Muralha. Seria conhecido - como tantos por aí - como mão de alface, o jeito carinhoso que a torcida como costuma tratar aqueles cujas mãos não inspiram confiança.  

O gol, meus amigos, guarda o céu e o inferno como nenhum outro lugar do campo. Isso nestes dias em que o gaúcho, Alisson, goleiro do Liverpool, virou herói ao avançar pra área adversária e marcar um tento de virada aos quarenta e nove do segundo tempo. Coisa que o time inglês jamais tinha visto em seus cento e vinte e nove anos de história. Mas nada foi tão esclarecedor da importância de alguém que topa defender o gol do que a situação que se desenhou para o River Plate na noite da última quarta-feira. Tomado por um surto de covid o time argentino viu seus quatro arqueiros infectados e precisou achar entre os jogadores de linha alguém pra cumprir a tarefa.  Encontrou o herói na figura de Enzo Perez. O que provou, ao mesmo tempo,  que a vida dos goleiros é mesmo uma mistura indócil de consagração e flertes com a ruína e a Conmebol... uma ameaça ao futebol.

 

quinta-feira, 13 de maio de 2021

Entre a euforia e a realidade

 



Nas duas últimas semanas a crônica esportiva mostrou entusiasmo com o nosso futebol, o futebol brasileiro quero dizer. É de se entender. Apesar de a última decisão continental ter tido duas equipes brasileiras ninguém ousava dizer, e não se tinha essa pinta, de que estávamos assim tão à frente dos outros.  Além do mais, o embate final entre palmeirenses e santistas era apenas a terceira final brasileira em toda a história da Libertadores. Mas teria sido um presságio dessa temporada que viria? 

Bom, isso o tempo esclarecerá. 


E se duas semanas atrás, diziam, tinha ficado faltando uma vitória santista no meio de semana, na passada ela veio. Uma goleada de números respeitáveis sobre um adversário que bem antes de entrar em campo muita gente já dava como vencido. Realmente os brasileiros andaram sobrando. Mas no caso do Santos melhor seria tratar a recente vitória sobre o Boca com moderação e balizar a realidade pelo que o time viveu  até o jogo da salvação diante do São Bento. 


Sobre o futebol brasileiro acho que certa supremacia chega a beirar a obrigação. Mesmo querendo ( e torcendo) para que a grana não seja algo totalmente definitivo nesse mundo da bola. Se levarmos em conta o faturamento dos times sul-americanos no ano de 2019, já que o ano de 2020 foi tão atípico, veremos que entre os dez que mais faturaram todos são brasileiros. O único intruso nesse grupo é o Boca Juniors. E se ampliarmos esse universo para os quinze primeiros todos seguem sendo brasileiros . Aí, além do Boca, só o River Plate, também argentino, passa a figurar.  


Isso num recorte nobre. Pois quando se trata de times de outros países do continente, então, um verdadeiro abismo se revela. Interessante notar que nos números fornecidos pela consultoria Ernest & Young o Santos, apesar de pouca diferença, figura acima de times como o São Paulo e o Atlético Mineiro. Mas nesse mundo montanhas de dinheiro nunca foram suficientes e não temos notícia de um único clube relevante que não esteja seriamente endividado. Contraste total com a nababesca situação da CBF que, acabamos de ficar sabendo, fechou o ano passado ainda mais rica, com quase novecentos milhões de reais em caixa.


 Mas se flamenguistas e palmeirenses, muito além dos balancetes, têm motivos para o entusiasmo os santistas devem se conscientizar de que nos arredores da Vila a banda toca diferente.  E o peso disso fatalmente caíra sobre as costas de seu novo treinador.  É preciso se perguntar, antes de tudo, o que poderá Fernando Diniz realizar no cargo que acaba de ocupar? Depois de um final de Campeonato Paulista dos mais melancólicos de toda sua história qual o horizonte que o time da Vila vislumbra?  Aquele velho papo do raio que cai duas vezes no mesmo lugar mostrou uma outra face. A do raio  que nunca caiu mas que pode cair chamuscando tudo e todos pra valer.  


O Santos, é fato, vive o caldo, ou rescaldo, dos atropelos de suas últimas administrações. Tudo fiou muito claro quando de uma hora para deixou de contar com resultados animadores que, não é de hoje, nem os entendidos sabem bem explicar.  E há ainda um outro detalhe importante que o tempo se encarregará de revelar, se a opção por Diniz se deu por opção ou não. O que pode fazer muita diferença. Mais do que a mística, a história mostra que o Santos sempre esteve comprometido com um jeito de jogar muito próprio, ainda que por vezes ele tenha ficado fora do alcance. 


Tenho a nítida impressão de que a medida que fará do novo treinador alguém visto como bem sucedido é que moldará tudo. Talvez, algo que deverá transitar entre a aceitação da ausência de títulos e a exigência de um futebol capaz de fazer o torcedor se sentir satisfeito. Para ser mais direto, o desafio de Fernando Diniz é imenso. Só não é maior do que os daqueles que aceitaram cuidar do clube e levar essa história adiante.  

quinta-feira, 6 de maio de 2021

O que se esconde das manchetes



Tudo nessa vida tem dois lados, tudo. Um velho amigo, desde a mais tenra juventude, teve papel fundamental para incutir isso no meu modo de ver o mundo. Hoje percebo melhor que muitas das  vezes em que ele se contrapunha ao meu modo de encarar certas questões, no fundo concordava comigo. O que ele queria era provocar um outro olhar, desafiar o que se dava como estabelecido. Tinha prazer em colocar supostas certezas em xeque. O que tem me parecido com o passar do tempo algo  cada vez mais acertado. Trata-se de um hábito de muita serventia na hora de interpretar o futebol, por exemplo. 

E vou dizer onde fundamento esse meu ponto de vista. Primeiro no fato de que quanto mais o tempo passa mais desafiador e difícil fica para a crônica esportiva vasculhar os bastidores desse universo.  Um processo, entre tantos outros, acelerado  pela pandemia. Nem treinos - ou as migalhas que deles eram ofertadas a quem fazia a cobertura - se acompanha mais.  Visivelmente o distanciamento entre os jornalistas e os personagens que compõem esse universo aumentou. Reportagens  como a feita certa vez pelo genial MIchel Laurence com o Rei Pelé soam impossíveis. Os dois, ele e o Rei do futebol,  dentro de um velho Chevette subindo a Serra em direção à chácara alvinegra Nicolau Moran numa cumplicidade de fazer inveja. 

Escrevo isso depois de ler um sem fim de manchetes esportivas, com seus tons taxativos, definitivos. Em especial quando versam sobre a demissão de treinadores. Fico pensando se não haveria no meio daquilo tudo um detalhe, uma fala atravessada, a paciência desse ou daquele que já estava por um fio, coisas mínimas que foram primordiais para moldar os fatos e das quais ninguém jamais ficará sabendo. E assim vou exercitando o que disse no princípio, tentando ao menos supor uma outra possibilidade. Em matéria de debate esportivo temos procurado pelo em ovo. E não é de hoje. Estas minhas linhas podem fazer parte dessa procura, caso alguém venha a se sentir atingido. 

Acredito nisso porque o desenrolar da história tem sempre algo de muito íntimo, inconfessável. Aquela derrota, aquela sequência de resultados negativos podem não ser exatamente a explicação e ponto. Notem, temos quase como uma crença que um treinador sem vitórias não vinga por muito tempo. Não há passado glorioso que  o salve. E essa dificuldade em aceitar essa realidade muito provavelmente esteja embasada num desejo de que as coisas fossem diferentes. O que é ao mesmo tempo a negação de que tudo nessa vida tem seu tempo. Sempre um outro lado. 

Alguém como Alex Ferguson, tido como exemplo de possibilidade duradoura, com suas décadas de trabalho dedicadas ao Manchester United, é algo que desafia o normal no mundo da bola. Como dribla o comum também Renato Gaúcho ter passado mais de quatro temporadas à frente do Grêmio. Isso quando sabemos que por aqui o trivial é ser efêmero.  Acabei lembrando agora de outro momento daquela entrevista dada por Pep Guardiola e que citei aqui recentemente. Questionado sobre a relação dele com os jogadores não poderia ter sido mais direto. Admitiu que não há como escapar, uma temporada sempre deixa grandes cicatrizes. Não só nos jogadores mas também no treinador. E imagino que por tabela nos cartolas também. 

Viver desgasta, conviver idem. Por outro lado esse São Paulo que anda aí, parece ter se revigorado sob a batuta do argentino Hernan Crespo mesmo levando a campo um elenco que se conhece faz tempo. O que teria Crespo dito aos atletas? O que exatamente foi capaz de causar tamanha mudança? Há muita coisa que ninguém diz a um repórter. Um outro dia talvez, no futuro. Diante disso não custa considerar que os fatos tenham bem mais de dois lados até. Que escondam coisas que nenhuma manchete irá gritar.