quinta-feira, 27 de abril de 2023

Futebol e fetiche



Eis que chegamos a esta semana com o Flamengo dirigido pelo argentino Jorge Sampaoli e o São Paulo por Dorival Júnior. Nos dois casos as torcidas não pareceram totalmente satisfeitas. Mas Sampaoli e Dorival não se viram nesse papel por incapacidade profissional. Não se trata disso. ​É que o torcedor desde sempre é um fetichista. E na história recente do rubro-negro e do tricolor paulista isso ficou muito evidente. Fetichista é quem cultua o fetiche. E o fetiche é essa coisa de se atribuir poder sobrenatural ou mágico a alguma coisa. A alguém, tomo a liberdade de dizer.  Há uma distinção  a ser feita. O fetiche dos são paulinos era com o ídolo Rogério Ceni. Trazido para a função de treinador da primeira vez precocemente mas que dirigentes com interesses outros fingiram não ver. 

E se voltou para uma segunda passagem não foi por outra coisa que não essa crença que insistia em rondar a figura do ex-goleiro. E que os dirigentes, sempre atentos, sabiam que poderiam usar a favor deles. A curta mas consistente trajetória como treinador não deixa dúvidas de que ele é capaz. Se ele não se consagrar na função não terá sido por não entender de futebol. Certamente não ficará sem trabalho. Outros clubes lhe abrirão as portas. Clubes grandes. E aí o torcedor são-paulino que não tiver se livrado do tal fetiche ficará se perguntando porque é que justamente no São Paulo Rogério Ceni não vingou. E por acreditar tanto no que pode um fetiche digo a vocês que não descarto uma terceira passagem dele pelo clube. Enfim, Rogério Ceni é o fetiche tricolor que se foi. Jorge Jesus, o fetiche que não voltou. 

Nesse caso a coisa se deu de maneira tão forte que passou a ser unanimidade a necessidade de que os dirigentes do clube primeiro esgotassem essa possibilidade para só depois pensar em outro nome.  A pena seria permanecer com a sombra do português pairando sobre a Gávea. Entendo que a passagem dele pelo Flamengo foi gloriosa.  Só não sei o quanto disso se  deve à mágica que o futebol costuma produzir de tempos em tempos. Coisa que na gíria do futebol se convencionou chamar de dar liga. Não consigo deixar de pensar nessa possibilidade quando penso na saída deselegante que ele encenou ao partir. Fico pensando quanto um fetiche é capaz de resistir a maus modos. E não é só nisso que me amparo para fazer esse juízo. Me amparo também na ausência de grandes trabalhos ou resultados  depois de Jorge Jesus ter deixado o Brasil. 

Em linhas gerais diria que nos dois casos os clubes estão bem servidos. Dorival Júnior nos últimos tempos  ganhou uma estatura que não tinha. Não seria exagero dizer que chega ao time do Morumbi muito mais preparado do que quando lá esteve pela primeira vez e por um requinte do destino justamente para ocupar o lugar de Rogério Ceni. Sobre Sampaoli diria que ainda colhe os frutos da temporada em que esteve à frente do Santos.  E sobre a qual seria o caso de perguntar também quanto daquilo se deveu à mágica que o futebol de tempos em tempos produz. Terá a disposição um elenco que Dorival não terá. Deve ter sido por isso e pela envergadura do Flamengo que deixou transparecer meio desavergonhadamente que o rubro-negro tinha virado um fetiche pra ele. 

 

quinta-feira, 20 de abril de 2023

O Dinizismo em alta



Se você ainda não se convenceu de que Fernando Diniz é um treinador que merece reconhecimento vou tentar lhe dar uma outra razão para vê-lo com bons olhos. Depois do título conquistado com louvor sobre o Flamengo que fez dele - de longe - o mais decantado personagem do futebol brasileiro notei que o jeito de ser do treinador do Flu de tão singular nos faz perceber algo mais profundo do que gostar ou não gostar dos esquemas dele. Os valores propostos por Diniz vão além, são capazes de evidenciar as fronteiras do modo que cada um tem de enxergar o jogo. Ou enxergar a vida, arrisco dizer. Explico. Entre os meus colegas de profissão há um com quem me afino muito, mas com o qual sempre mantive opiniões divergentes quando o assunto era o treinador.  É fato que o título carioca ao tornar evidente a evolução de Diniz na profissão aproximou um tanto nossos pontos de vista. 

Mas ao contrário do que eu pensava a entrevista concedida por Diniz na segunda-feira pós título que tanto me impactou foi vista por ele com muitas ressalvas. A mim, por outro lado, soou valorosa. E se escolho esse adjetivo é porque no cerne de tudo ali estavam valores. Valores que Diniz faz questão de colocar à frente da vitória, do título. O que para muitos soa como uma heresia. Mesmo que ele tenha reconhecido que ficava devendo no que diz respeito à parte defensiva. Ou que tenha tratado com elegância a brutalidade que Felipe Melo sempre trouxe embutida em seu futebol. E que Diniz chamou de imposição, fazendo questão de dizer que é algo que não despreza no jogo, pelo contrário, considera importante. Uma entrevista que explicitou que talvez a maior contribuição de Diniz ao nosso futebol não tenha nada a ver com resultados, ainda que com eles passe a ser muito mais ouvido, a ter mais voz. 

Para ser breve, o que a minha formação intelectual sugere é que pessoas com o tipo de lógica que Diniz faz questão de defender aproxima as pessoas da vitória em qualquer campo. Trago comigo um certo receio com essa coisa de considerar a vitória um grande fim. O caminho a ela me soa infinitamente mais interessante. Enfim, penso que talvez a grande contribuição de Diniz seja nos fazer pensar.  Tire suas conclusões. O que irá aqui depois do ponto final que se aproxima são palavras de Fernando Diniz, não minhas. 

"A minha convicção vem do sofrimento que eu tive quando jogava futebol. Eu sei o que é ser jogador. Se sentir o tempo todo exposto para ser massacrado. Pela imprensa, pela torcida, pela parte interna que não protege. O futebol para mim é um meio de ajudar as pessoas a serem melhores.  Tem que entender quem joga. A gente tem que entender a pessoa por trás do jogador. Esse é o meu objeto de estudo, minha paixão. Eu acho que o Dinizismo é aprofundar mais as discussões para ajudar mais as pessoas. A parte tática, por mais que seja mais visível, não é a parte fundamental. O central de meu trabalho é estabelecer boas relações humanas. Que eles se sintam bem, que possam errar sem ser atacados o tempo todo. O futebol é uma arte, é como pintar ou tocar uma música. Tudo o que você faz com a mão a gente faz com o pé. Os mais talentosos quase sempre são os que ficaram mais longe da escola, tiveram menos acesso a questões cognitivas e de base". 

 

quinta-feira, 13 de abril de 2023

O papo sobre futebol



Não há a menor dúvida de que nos últimos anos o discurso sobre futebol se tornou mais científico. A retórica que cerca o jogo está infinitamente além dos números que versam sobre a posse da bola, outrora a vedete do segmento. Vivemos a era em que os mapas de calor desnudam tudo e são turbinados pelos dados de finalização, desarme e afins. Mas é interessante notar que o papo sobre futebol em linhas gerais não acompanhou tudo isso. Continua sendo de viés humano, levando em conta detalhes que nunca aparecem em scouts.  A maneira de agir de um treinador, a marra de um atacante, a grossura ou o carisma desse ou daquele zagueiro. Por mais que os zagueiros gostem mesmo é de parecer cruéis. 

Enfim, não é de se estranhar que a coisa tenha tomado esse caminho, digamos, moderno. Nos últimos tempos ofícios como os dos analistas de desempenho ganharam destaque. E com os clubes se blindando cada vez mais, deixando de divulgar muitas vezes as listas de jogadores relacionados para os jogos e até mesmo a condição física de atletas lesionados é inevitável que as informações desse universo científico acabem por contaminar o discurso da crônica esportiva. Mas confesso que estou pra ver uma acalorada discussão sobre futebol em uma mesa de bar ter como combustível divergências sobre linhas altas ou baixas, sistemas quatro quatro dois ou algo que o valha. 

Gosto de pensar que esse discurso boleiro impregnado do que é puramente humano é a grande peça de resistência desse universo atualmente. O jogo em si há muito se rendeu. Outro viés interessante sobre o assunto é que com a chegada de um grande número de treinadores estrangeiros tem sido possível sentir uma certa falta de compreensão com determinados conceitos que eles fazem questão de adotar. Sendo de longe a maneira de lidar com o elenco a que mais se sobressai. Vitor Pereira, até pelo fato de ter estado à frente de dois dos times de maior torcida do país, amplamente acompanhados pelos veículos de comunicação - seja lá o que isso queira dizer hoje em dia - é dos mais incompreendidos. 

Tanto no Corinthians quanto no Flamengo  pareceu executar infinitos esforços para que o torcedor não tivesse muito claro o que era o time titular  dele. O que não teria sido problema se essa indefinição tivesse sido acompanhada de triunfos.  Mas não. E o torcedor, desde sempre, quer ver em campo os melhores. Esperar que o torcedor desenvolva algum tipo de simpatia para o que se convencionou chamar de time alternativo é ingenuidade. E é aí que se encontra uma questão importante demais e para a qual também não tenho opinião formada :  o quanto essa falta de compreensão  a respeito do que virou o futebol acaba por fragilizar um treinador.  Já que parece óbvio que ninguém é realmente capaz de defender o que não entende. 

Imaginar que um corneteiro dos bons vai levar em conta o que viu estampado em um mapa de calor, ou será capaz de se contentar com um scout que dê a impressão de questionar uma derrota, ou relevar um resultado adverso porque foi preciso poupar esse ou aquele jogador é algo que não cola. Os interessados em fazer esse meio de campo entre quem escala e quem corneta deveriam ter sempre em mente a necessidade de unir essas duas pontas. Uma fórmula desafiadora que faria seu criador  ter a atenção do primeiro e o respeito do segundo.

quinta-feira, 6 de abril de 2023

Resultado não importa



Pode , num primeiro momento, soar como heresia dizer que é possível questionar o esporte profissional do ponto de vista moral. E talvez essa investida faça mais sentido quando se trata de futebol e não de outros esportes. Não é por acaso que quando o assunto são os outros esportes em suas versões mais competitivas se cunhou o termo esporte de alto rendimento. Os mais cínicos dirão que em se tratando de futebol profissional em seu mais alto nível falar de alto rendimento seria redundância. No que estariam muito certos. Mas rendimento aqui, claro, tem duplo sentido. Quando questiono o valor moral do esporte profissional, digo dos infinitos casos de doping, por exemplo. Ou de comportamentos inapropriados que nascem quando um esportista passa a aceitar a vitória a qualquer preço. E no futebol mais do que em qualquer outro , até pela imensa exposição, essa realidade do vale tudo é infinitamente mais vista. 

Digo tudo isso para não deixar passar em branco uma notícia, que mesmo sendo de dias atrás, valeria a qualquer tempo, já que o que traz com ela não se dissolve com o tempo. E talvez o fato de tal acontecimento ter virado notícia mostre muito bem a realidade meio atravessada em que vivemos. A coisa se deu quando a meninada da Escola Municipal Maurício Rolim, da cidade de Dormentes , no sertão de Pernambuco, disputava uma partida de Futsal. O time em questão perdia por nove  a zero quando o professor Ezequiel Reis pediu para parar o jogo. O que se viu a partir dali foi uma sequência de declarações que poderiam muito bem servir a uma quantidade infinita de marmanjos e marmanjas que no anseio da glória atropelam sem o menor pudor o ético. Farei questão de listá-las a seguir.  Mas antes quero dizer que posso imaginar uma multidão fazendo questão de me jogar na cara que o ambiente de uma competição sub-14 nada tem a ver com o de uma profissional envolvendo cifras imensas e alcance planetário. E eu vos digo que realmente não tem. Mas que se todos os ditos professores em todas as escolinhas se prestassem a dar ao esporte esse viés nobre, tudo poderia ser diferente. Ezequiel, esse singular professor, tratou de fazer seus comandados tomarem consciência da condição deles. 

Disse aos atletas que era a primeira competição de que estavam fazendo parte, que jamais tinham jogado um amistoso nem nada. Vamos fazer um gol, dois se der, mas que se não desse eles seguiriam sendo uma equipe. Não apelou para irrealidades. Assumiu que o placar a favor do time adversário era amplo, mas que ainda assim era possível terminar tudo aquilo de maneira mais bonita. Atentem para a palavra: bonita. Mas talvez mais edificante que as palavras que fez questão de usar tenha sido a ausência de broncas.  Algo praticamente impensável no mundo do esporte profissional, onde o destempero dos treinadores virou algo trivial. E aí não falo só dos futebol, não. Lembrem-se do que já viram protagonizar na beira das quadras treinadores de voleibol, técnicos de ginastas. Imaginem o ambiente tóxico tomado de cobranças tão comum mesmo em categorias menores e  será inevitável admitir que ouvir alguém lhe dizer  que o resultado não importa, que importa é dar ali naquela situação o melhor de si, é algo raro, muito raro. E não deveria ser.