quinta-feira, 28 de maio de 2020

A novela e o futebol



Sei que vivemos na era das séries. E já nem sei se é o caso de chamá-las de séries de tv tantas são as telas que nos cercam nestes tempos. Fato é que não sou muito dado a elas.  Mas não me creiam um sujeito antiquado ou daquele tipo que briga com o novo. Nem tanto. No fundo de tudo talvez esteja somente uma falta de tempo onipresente que não me abandona nem em plena pandemia. De todo modo, não vou esconder que uma longa  sequência de capítulos de certa forma me entedie. Traga a mim a impressão de estar vendo uma novela.  E em matéria de novela parei em o Bem Amado,  com Paulo Gracindo no papel soberbo de Odorico Paraguaçu.  Embora nunca tenha conseguido apagar da memória também uma das cenas derradeiras de Pecado Capital, gravada nas obras do metrô paulistano, quando Francisco Cuoco morre com uma mala cheia de dinheiro nas mãos ao som de Paulinho da Viola. 



É!Acreditem, as trilhas de novela já foram de um requinte assustador. Não por acaso colecionadores de vinil crescem os olhos quando ainda hoje quando dão de cara com um LP da trilha sonora de Locomotivas ou Véu de noiva. Memórias do tempo em que se tinha, quando se tinha, uma única tela em casa. E quem decretava a sintonia era o pai ou a mãe.  Não se falava mais nisso. Mas o que eu queria dizer é que dias atrás terminei de ver a série The English Game, que retrata os primórdios do futebol inglês. Seis capítulos que fatalmente levam à reflexão qualquer um que tenha esse jogo em alta estima. 


Licenças históricas e poéticas à parte, o que me impressionou, no entanto, foi a constatação de que mais de um século depois o jogo siga desafiado pelas mesmas questões. O poder da grana, a cartolagem disposta a qualquer artimanha para não perder as rédeas do negócio, uma suposta paixão que na arquibancada -  ou nos seus arredores, e muitas vezes em nome do jogo - se transforma em pura violência. E, além de tudo isso, o  peso da vida de cada homem por trás desse jogo planetário. Fergus Suter, o protagonista, entrou para a história - ainda que o tema seja controverso - como o primeiro jogador profissional. Em outras palavras, o primeiro a receber uma grana para tal.  E tinha, rapaz pobre que era, por trás de si uma trajetória pessoal pra lá de sofrida.  

Enfim, tudo naquela história que se desenrola há quase cento e quarenta anos soa atual. Ou ainda não há, claramente, uma disputa entre endinheirados e desafortunados? Isso por mais que o tal fair play financeiro não passe de um acerto de contas entre os primeiros. Estranho é notar que para cada personagem austero e insensível que toma vulto no enredo facilmente encontraríamos entre nós um assemelhado. Mas ninguém que pudesse fazer o papel de um certo lorde que foi capaz de enfrentar grandes embates em nome de algo  que nos soa cada vez mais como uma abstração: o dito espírito esportivo.

* artigo escrito para o jornal " A Tribuna", Santos/SP

sexta-feira, 22 de maio de 2020

Bombonera de barro




Eram duas turmas de garotos, entre tantas que aqueles anos guardavam. Cada uma delas com um time pronto para encarar um "contra". Era assim que se denominava um embate que se desse com alguém que não estava entre os seus. Pois na maioria delas havia meninos suficientes para formar bem mais do que um esquadrão. Talvez o termo seja usado até hoje, não sei. Envelheci. Entre elas uma se destacava. Não só pelo futebol mas porque tinha a seu favor - e a favor de sua fama - um campinho singular. Ficava no terreno de uma obra temporariamente abandonada. O lugar havia sido escavado. Por isso, para alcançar o campo de jogo era preciso descer um barranco. E uma vez lá os candidatos a craque se viam cercados por  altas paredes de terra. Soava como uma Bombonera feita de barro. 

Um lugar intimidador, mas  com boas traves, campo marcadinho, portanto,  sedutor também. Coisa rara. Logo, a lista de desafiantes era imensa. O dono da casa era o Pirelli.  Não lembro a razão, mas imagino que pelo fato de naqueles tempos o nome ser quase sinônimo de equipe bem sucedida graças a um time de voleibol que com suas conquistas se fez lendário. O dia do embate contra eles custou a chegar e deu frio na barriga da molecada.  Era lugar pra se pisar miudinho. Outro detalhe era que o campinho que ficava na Rua Visconde do Rio Branco, quase na esquina com a Avenida Presidente  Wilson, em São Vicente, onde hoje está o Edifício Ariane, sempre tinha torcida.  Fato que por si faz aumentar a temperatura de qualquer jogo.  

Quando o duelo se deu teve como destaques nosso centroavante, um cara alto, desengonçado e destemido. E um meio campista adversário, que era o fino. Jeito de moleque de rua, futebol de Lorde. Naquela tarde longínqua não teve chuva grossa nem fina, nem chuva de gols. O embate terminou em zero a zero. Esse mísero placar nascido para driblar os desavisados. Naquele dia aprendi que nem sempre a ausência de gols é sinônimo de pobreza. O que é verdade custou algumas divididas duras e metade da ponta do dedão direito. Barato. Andei lembrando disso tudo ao pensar na bola que não tem rolado e no atual interesse da meninada pelo jogo, que acredito já foi infinitamente maior.  

Sou de uma época em que o futebol era, disparado, a brincadeira-mor da maioria dos garotos. E, dessa forma, cada um deles se fazia - se fez - legítimo para interpretá-lo. Afinal, o vivido e as divididas iam elucidando o peso de cada momento. O peso de ser condenado à sentença cruel de levar uma bola entre as pernas, a euforia de ser alçado à condição de herói depois de marcar um gol de longe vendo a bola entrar no ângulo. A descoberta empírica, crua, de que ninguém volta para casa igual depois de uma grande partida, seja profissional ou não. Nossa brincadeira-mor, antes de tudo, nos fazia descobrir o que pode provocar em alguém a simples possibilidade de uma vitória, ou derrota, com ares épicos. E tudo isso , mais do que me fazer compreender, me fez entender essa onipresença do futebol na nossa cultura, na nossa vida. Além do mais, depois de pisar numa Bombonera de barro como aquela seria um pecado se render à velha miopia que vira e mexe insiste em reduzir o jogo a vinte e dois sujeitos correndo atrás de uma bola.   

* artigo escrito para o jornal " A Tribuna", Santos/SP

quinta-feira, 14 de maio de 2020

Quem tem futuro?



Esse tem futuro! Faz tempo que não ouço essa frase e temo que não deva ser por acaso. Como tenho a impressão de que não preciso dar muitos detalhes, pois estou convencido  de que em algum momento você já a tenha ouvido e saiba muito bem do que estou falando.  Mas, se  por ventura lhe for desconhecida, saiba que era um tipo de saudação que se fazia quando se dava de cara com algum traço de talento -  ou coisa que o valha - em alguém ainda jovem. E, embora esteja colocada aqui no masculino, é claro que o futuro nunca fez a menor distinção entre homens e mulheres. 

O triste dessa constatação é ter comigo a mais pura convicção de que o talento segue por aí. Cada vez mais sufocado. Obviamente, por ofício, costumo falar de esporte, mas a reflexão vale para outros campos. Em especial o das artes, que já vinha sendo minado bem antes dessa pandemia dar as caras. Assim como está sob ataque a ciência de quem, vejam como são as coisas, dependemos tanto neste momento. Vivemos num país que mesmo enquanto esteve, supostamente, sadio, jamais foi capaz de colocar em prática um projeto nacional de esporte.  Difícil crer , portanto, que o fará a partir de agora. 

Como não me espanta que em meio a tamanha expectativa sobre o que será do futebol brasileiro eu tenha demorado tanto para dar de cara com uma manchete que fosse a respeito das categorias de base. E quando dei de cara com uma fui informado de que boa parte dos clubes levam em conta retomar as competições menores só no ano que vem. Nisso fecham questão. Em outras palavras, para os nossos dirigentes quando se trata da base, pelo visto, não há urgência. Não que deveria. Mas como eu gostaria de acreditar que estão dispostos a agir assim por questões humanas, ou por preocupação com o próximo. Na realidade é o momento nos dando um contorno mais nítido do que o que o futebol sempre reservou aos que orbitam em torno dele, aos que ainda não alcançaram o estrelato. 

Aposto que você, como eu, se é simpático ao tema, em algum momento da temporada passada, por exemplo, andou convencido de que o nosso futebol feminino estava vivendo um bom momento. E nunca é demais lembrar: constatação que só se fez possível porque de uma hora para outra os fatos obrigaram os manda-chuvas a colocar os cartolas contra a parede e exigir deles investimentos na modalidade. Detalhe que não deve ser esquecido. Se a coisa andou foi por obrigação, com raríssimas exceções. Mas que progresso é esse se  temos tido notícias de times femininos sem uma estrutura mínima, que mal conseguem treinar, e cujas jogadoras - pelo que foi noticiado - aqui e ali têm sido as últimas a ver a cor da grana que a CBF andou mandando para ajudar as equipes? Isso é , ou não é, esmagar o talento?  

Sem falar de outras modalidades com papel pra lá de nobre em nossa história esportiva, como o vôlei e o basquete, onde nem seria preciso chegar à base para constatar que tudo está um tanto em ruínas. Ora, se o vôlei brasileiro , com toda a sua excelência, já vinha convivendo com grandes desafios financeiros, com times deixando de pagar salários, extinguindo equipes, o que pode esperar o praticante de modalidades que sempre estiveram à margem da grande mídia? Não, não é o acaso que fez evaporar a velha frase. Como não foi o acaso que fez tão pertinente nesta hora perguntar: quem tem futuro? 

* artigo escrito para o jornal " A Tribuna", de Santos/SP

quinta-feira, 7 de maio de 2020

Driblando o presente






Nas últimas semanas andei por aí. Visitando outros tempos. Não que o interesse pela história em mim seja novo. Mas devo admitir que tais passeios tiveram, sim, a alma do drible. Um modo de colocar a bola entre as pernas dessa realidade dura que nos foi imposta. Aliás, o drible sempre nos será perfeita analogia. Viver não deixa de ser o exercício dele. A vida vai se apresentando, e nós, diante dela vamos sendo obrigados a decidir que caminho tomar pra conseguir chegar lá na frente. O que fazemos todos, uns de modo bem mais engajado e consciente. Outros, nem tanto. O que não deve nos espantar. Desde sempre a sentença que dizem cada um nós traz na cabeça é que embolou o jogo.


Li em algum lugar certa vez - e gosto sempre de lembrar - que o passado nos seduz porque é um tempo sem angústias. Decidido. Verdade, ou não, ele nos dá algo que o presente está longe de ofertar. E se abraçamos o presente, o que nos sobra? Um futebol plasticamente empobrecido. Lembram dele? Declarações razoavelmente bem colocadas de certos dirigentes dizendo que não faz o menor sentido neste momento discutir se a bola deve ou não deve rolar, enquanto sabemos que nos bastidores o que pode ser feito para encaminhar a coisa nesse sentido vai sendo feito.


Melhor, então, tentar encontrar algo que dê alguma graça aos dias. Como, por exemplo, a lista feita com os trinta jogadores mais legais da história. Alguns que vi por lá, juro, não tinha tão atrelados a esse amplo adjetivo. Como o lendário, Puskas, que desconfio figure na lista realmente pelo que jogava, ainda que tenha fama de gente fina. Maradona, obviamente, não me causou espanto. Mas a alegria me veio por ter visto que apenas dois brasileiros figuravam entre eles. Anunciados na matéria como dois corintianos, o que a história seria capaz de mostrar que nem sempre.


Dois craques. Um deles o saudoso, Sócrates Brasileiro, o Magrão. Um cara que só de lembrar do sorriso dele noite adentro já coloco meu coração em teste. E o outro, também herança que a profissão me deixa, um dos maiores ícones do nosso futebol: Roberto Rivellino. Dono de um estilo bonito, inconfundível. Campeão do mundo. Fã de uma boa pizza de aliche, como eu. E com quem ainda tenho o prazer de conviver. Não por acaso , com um ou com outro, sempre foi inevitável falar do passado. E, por que não dizer, prazerosamente driblar o presente.

* artigo escrito para o jornal " A Tribuna", de Santos/SP