sexta-feira, 19 de junho de 2020

Drummond na véspera do Tri



De repente o Brasil ficou unido
contente de existir, trocando a morte
o ódio, a pobreza, a doença, o atraso triste
por um momento puro de grandeza
e afirmação no esporte.
Vencer com honra e graça
com beleza e humildade
é ser maduro e merecer a vida,
ato de criação, ato de amor
A Zagallo, zagal prudente,
e a seus homens de campo e bastidor
fica devendo a minha gente
este minuto de felicidade.



Carlos Drummond de Andrade
Jornal do Brasil, 20/06/1970

quarta-feira, 17 de junho de 2020

O Tri e o Maraca

                                   

Um vai fazer cinquenta anos, o outro acaba de fazer setenta. Duas datas gigantes para o nosso futebol. A primeira é a da conquista que ficou batizada como o "tri", e se completa no próximo domingo. Dia desde sempre afinado com o futebol.  Entendo a razão desse que de tão falado lhe parece até um nome de batismo. Mas esse papo de tri, ou bi, ou tetra, sem ser em sequência, na minha opinião, vai contra o espírito da coisa. Além do mais, o que a Seleção Brasileira fez na Copa de 70, a conquista definitiva da taça Jules  Rimet que o mundo cobiçava tanto, praticamente fazem dispensáveis outras exaltações ao triunfo. 

Como andei dizendo, não creio num Deus do futebol mas, às vezes, o jogo me faz crer que há por trás dele um roteirista com dons divinos.  E nada renova mais essa minha fé singular  do que ver a Seleção de 70. Devemos considerar sempre uma possível interpretação exagerada dos fatos, uma vez que fomos colocados do lado de quem nele triunfa. Ainda que a nobreza do que se desenhou  naqueles dias nos gramados do México nunca tenha deixado de ser reconhecida  pelos derrotados, muito pelo contrário. Cada lance desenhado pelo time brasileiro naquele junho distante está envolto em tamanha magia que toda vez que dou de cara com eles sinto que algo ali se renova. 

Não importa que nestes dias já meio século se encaixe  entre estnosso momento e aquele em que a bola começou a rolar lá no México. Tudo ali se revela atual. E não falo só de lances muito simbólicos, como aquela tentativa de gol por cobertura do meio de campo do Pelé, ou a gingada desvairada de Clodoaldo pra cima dos uruguaios. Não, qualquer lance daqueles me parece envolto por uma aura mágica, por mais simples que se apresente. Um time que desafia a lógica. Num instante soa desenhado pelo talento individual e no instante seguinte nos convence de que era na realidade a fina flor do que pode uma equipe ciente da importância de atuar coletivamente. Sei, são coisas que não se excluem, mas notem a beleza que reside no equilíbrio dessa fórmula, nesse jeito de se metamorfosear. 


                                     


A outra data se refere a um estádio que nasceu com a imponência das catedrais. Sonhado pra ser cenário de uma glória que, quis o destino, até hoje o torcedor brasileiro não teve direito. Vencer uma Copa em casa. Que sina essa. Construído o Maracanã o futebol brasileiro viu erguido seu símbolo maior. Com ar de templo o velho Mário Filho se fez a casa de homens admirados como deuses. 

E de tudo o que o Maracanã é - e foi -  nada se fez mais seu espelho do que a saudosa geral. Aquela parte funda de seu ventre que a sanha de modernidade dos homens simplesmente enterrou. A saudosa geral dos homens com seus rádios de pilha colados ao ouvido e que em sua simplicidade absoluta  dava a impressão  de ter espaço para abrigar as dores e prazeres de todos os que por ventura quisessem comungar com um jogo de bola.

Temos sido testemunha de tudo o que o Maracanã tem enfrentado. Não pude comprovar, mas me disseram que depois da última reforma já não se pode mais ver o Cristo Redentor de nenhum ponto da arquibancada. Pura heresia. Hoje, depois de atravessar sete décadas, o que mais se ouve é que está mudado. Mas, me digam,  quem é capaz de cruzar o tempo sendo e parecendo exatamente o mesmo? 


* artigo escrito para o jornal " A Tribuna", de Santos/SP

segunda-feira, 15 de junho de 2020

O coração de um grande poeta ...




... tomado pela emoção de ver a Seleção Brasileira fazendo o que fazia no México há 50 anos.  O poema abaixo foi publicado na véspera da partida contra a Romênia, a terceira do Brasil naquela Copa. 



MEU CORAÇÃO NO MÉXICO

Meu coração não joga nem conhece
as artes de jogar. Bate distante
da bola nos estádios, que alucina
o torcedor, escravo de seu clube.
Vive comigo, e em mim, aos meus cuidados.
Hoje, porém, acordo, e eis que me estranho:
Que é de meu coração? Está no México,
voou certeiro, sem me consultar,
instalou-se, discreto, num cantinho
qualquer, entre bandeiras tremulantes,
microfones, charangas, ovações,
e de repente, sem que eu mesmo saiba
como ficou assim, ele se exalta
e vira coração de torcedor,
torce, retorce e se distorce todo,
grita: Brasil! Com fúria e com amor.

Carlos Drummond de Andrade - 09/06/1970

quarta-feira, 10 de junho de 2020

Revista do Esporte. É hoje!


Ao vivo, na TV Cultura, a partir das 20h45




sexta-feira, 5 de junho de 2020

A torcida da Democracia




Era domingo. Desses sem futebol. Um desses domingos sobre os quais, com bola rolando ou não, algo me diz que ainda falaremos por muito tempo.  Afinal, a sensação é a de que temos atravessado dias que trazem consigo a perenidade das cicatrizes. Lavava eu a louça do almoço lembrando sei lá porque de ouvir muitas vezes o técnico Muricy Ramalho dizer que o tal ato lhe servia de terapia, que era um tipo de refúgio quando queria esquecer as coisas que andara vivendo à beira do gramado. Tá pensando o quê? Aqui é trabalho também ! 

Só sei que,  de repente, a notícia que me chegava começou a fazer espuma na minha cabeça. Corintianos e palmeirenses juntos na mítica Avenida Paulista? Juntos, não. Lado a lado. Não! Do mesmo lado!!! Uma bolha maior de espuma ensaiou refletir minha imagem nas suas difusas cores de arco-íris. Meu semblante, pensei, naquele instante devia ter em si um ar de espanto. Divagava. ​O espanto de quem vislumbrava em meio a um pequeno mar de detergente uma das maiores rivalidades do nosso país se diluir por uma nobre causa. 

E era justamente de cores que se tratava. Que força existia ali. Alvinegros e alviverdes, enfim, amalgamados. Quem diria. Solitariamente sorri, pensando em tudo o que poderia ser provocado quando quem sempre se dividiu de uma hora pra outra, num ato corajoso e improvável, resolve  se deixar descobrir que existem coisas que devem ser postas acima de um jogo de bola.  Muitas, aliás. Tá pra nascer o que nos impeça de sonhar.  Algo há de resistir eternamente à possibilidade do caos.  A recordação seguinte foi do Doutor Sócrates. 

Era um início de madrugada e ele falava cheio de entusiasmo. Os olhos tinham aquele brilho peculiar que sempre brotava deles quando ele discursava, não sobre o que nós e nosso país éramos, mas sobre o que deveríamos e poderíamos ser.  O Doutor tinha acabado de voltar de um evento na sede da Gaviões da Fiel. Onde tinha sido ouvido, não há dúvida, com uma atenção que seria dispensada a poucos. Vibrava com a força que tinha sentido ali. Ouvíamos tudo e, devo confessar, nos víamos obrigados a fazer ponderações. Não por não entender o que estava sendo dito mas por não conseguir esquecer tudo o que poderia se esconder atrás de uma torcida organizada.  Fosse aquela ou qualquer outra. 

Uma empolgação que eu sei rondou a cachola privilegiada do Doutor um bom tempo.  Andou mexendo com os anseios de cidadão que ele cultivava. Enquanto isso na Paulista o ato terminava com a sordidez da realidade de sempre. Confronto com a Polícia, borrachada.  Deixava no ar também a temeridade de qualquer aglomeração em virtude do que temos vivido. O risco sempre foi um preço. Mas nele resistia a beleza de um drible e dá até pra dizer, um sonho, do velho camisa oito que, dado a intuir um país melhor, talvez nunca tenha levado em conta que neste futuro que não lhe pertenceu estaríamos todos correndo atrás de vitórias que pensávamos já ter alcançado. E, muito menos, que um dia seriam tantos a fazer pouco caso da Democracia.


* artigo escrito para o jornal " A Tribuna", Santos/SP