quinta-feira, 29 de fevereiro de 2024

Retranqueiro: ser ou não ser?




Já tive a oportunidade de dizer aqui em outro momento que a retranca com o passar dos anos foi ganhando ares de maldita. Pode-se desfiar uma longa teoria a respeito. A minha tiro do modo como a tal foi sendo encarada ao longo dos anos. Ouso dizer que em outros tempos era vista como um dogma do futebol do qual não se ouvia falar mal.  Hoje em dia a coisa está longe de ser assim. Que o diga o laureado técnico Tite. A coisa tanto o cerca que dias atrás ele falou sobre o assunto. Na verdade rebateu com veemência que o queiram ver como retranqueiro. 

A coisa tem muitas nuances. Há retrancas que não anulam a vontade de gol de um time. Há outras que os reduzem a ela. Diante disso, talvez seja pertinente lembrar o que escreveu certa vez Fernando Pessoa. Afirmou o poeta que há arte até no fazer embrulhos. Não foi por acaso que o assunto veio à tona. O Flamengo de Tite nesta temporada anda fazendo gols em número considerável enquanto sua meta até a declaração citada tinha sofrido um único gol. Não me caem bem certos termos para definir a fixação de um time, ou de alguém, para com o setor defensivo. Chega a me dar arrepios ouvir alguém dizer que fulano fechou a casinha, ou que estacionou um ônibus na área pra evitar levar gols. Se não tens muita intimidade com o jogo não se espante. São coisas ouvidas quando não se tem dúvidas sobre ser ou não ser retranqueiro. 

Os argumentos de Tite para se descolar dessa condição foram fortes. Disse que carrega o estigma do gaúcho.  E isso por si só permitiria que desfiássemos outra longa teoria. Disse que saiu do Rio Grande do Sul fazendo três a zero no Grêmio de Ronaldinho. Disse que a história dele tem título com o Grêmio fazendo três a um no Corinthians entrando com bola e tudo no terceiro gol.  Lembrou ter sido campeão mundial de clubes diante do Chelsea criando oportunidades e - usando um termo muito boleiro - indo pra dentro. Embalado no assunto, recordou que pegou o Corinthians pra cair e que precisou ser competitivo com um time que tinha quatorze garotos. Que pegou o Palmeiras na mesma situação, ameaçado de rebaixamento e precisando de uma reformulação extraordinária. E que deu conta disso tudo. 

A mim não resta dúvida da sua capacidade profissional. Foi por mérito que ele agora tem nas mãos o melhor elenco do país. E quero crer que saberá tirar proveito disso. Estava coberto de razão quando disse que é preciso ter cuidado com os rótulos. Acho tudo muito pertinente. Mas devo dizer que quando falava do assunto com um amigo o senti um tanto impaciente. Não demorou muito e, enquanto eu ainda falava, ele me cortou bruscamente e disse: é eu sei, mas e as duas Copas que ele têm nas costas? Argumento afiadíssimo. E que me fez lembrar de Luigi Pirandello. O romancista italiano fez questão de alertar seus leitores , com veemência também, que a gente não é o que pensa que é, nós somos o que o mundo vê. 

O que, ao mesmo tempo, me deixou com a sensação de que este assunto é mesmo bom. Permitiu citar Pessoa e Pirandello num mesmo artigo! Que tabelinha essa! Tite não dirá jamais que a defesa é o cerne de sua estratégia. O que parece óbvio olhando a trajetória dele. Eu, de minha parte, vos digo que nada tenho contra a retranca. Por estilo, prefiro sempre a ofensividade. Só peço aos que decidiram a abraçar que a exerçam, mas com elegância, na medida do possível. Como, talvez, seja o caso de Tite.

quinta-feira, 22 de fevereiro de 2024

A voz do Doutor



Na última segunda Sócrates Brasileiro teria feito setenta anos. No meio de toda a saudade provocada pela data me peguei com a cabeça nas nuvens. Fiquei imaginando como seria se o Doutor estivesse aqui. E que vontade de que ele estivesse. O que me fez flertar com muitas dúvidas. Mas o que ao mesmo tempo provocou em mim uma certeza: a de que se o Magrão estivesse entre nós haveria festa. E das boas. Talvez fosse celebrada na paulistana Ria Livraria, na Vila Madalena, que o tempo tratou de fazer a mais legítima substituta da velha Mercearia São Pedro, onde tive o privilégio de passar muitas noites com esse lendário camisa oito cercado de amigos. E é daí que trago tal certeza. O Doutor adorava celebrar a vida, que acabou lhe sendo breve. 

Ele partiu. O país se dividiu. A democracia passou a ser atacada. A correr perigo. A democracia da qual ele, de certa forma, passou a ser sinônimo. A democracia que ele tratou de plantar com seus iguais no árido chão que sustenta nosso futebol. E foi disso tudo que as dúvidas que andei alimentando nasceram. Pois me peguei imaginando, não é de agora, como nosso velho Magrão teria encarado as últimas páginas da nossa história. O que teria dito. De que forma teria defendido sua maneira humana de encarar o mundo. A quantas andaria a paciência dele com esse nosso jogo de bola. O que diria dos livros sendo alterados em nome de novos ditames. Como teria seguido na sua brava resistência. 

Pra mim Sócrates é meio Belchior, dessas figuras que o tempo só vai agigantando. 

Sabendo do papel que o Doutor chamou para ele, não foram poucas as vezes em que me peguei admirando sua figura e pensando comigo em segredo que aquele cara devia ter voz, muita voz. Devia ser ouvido. Por isso pra mim havia ali, além do prazer da companhia, o alento de saber que o programa que fazíamos juntos cumpria essa função, como cumpria a revista na qual ele publicava seus artigos semanais. E era interessante notar como as pessoas paravam para ouvir o Magrão. Presenciei isso muitas vezes, mesmo estando na mesa de um bar onde todo mundo costuma falar ao mesmo tempo. Mas aí ele embalava num assunto qualquer e, aos poucos, as pessoas à sua volta iam prestando atenção, prestando atenção, até que em dado momento todos eram só ouvidos. E era possível notar, então, um quase silêncio pra lá de reverente. 

E isso quando ele tramava um papo qualquer, não quando ele sacava da memória uma história vivida nos gramados - ou em seus arredores - por esse mundão afora. Aí seria covardia. Seria fácil explicar qualquer encantamento. Entre os amantes do futebol bem jogado acho que tá pra nascer alguém que não gostaria de ter escutado uma história de bola contada por Sócrates Brasileiro, ainda mais em tom um tanto íntimo. O Doutor virou nome de prêmio social da revista France Football, nome de esplanada em Ribeirão Preto, cidade que fez dele. A data de seus setenta anos rendeu manchetes. Sua figura foi reverenciada. Partilhei a saudade com alguns de seus velhos amigos que me foram deixados de herança e hoje também são meus. E ao lembrar disso enquanto batucava estas linhas devo ter deixado escapar um sorriso porque meus devaneios acabaram por me convencer de que o Magrão segue na área e ainda tem voz.   


*Artigo escrito para o jornal "A Tribuna" , de Santos /SP

quinta-feira, 15 de fevereiro de 2024

O futebol é ilusão



Uma das coisas que mais me intrigam é porque mesmo tendo praticado tantos esportes quando garoto nunca pensei em fazer dele profissão. No cerne de tudo estava o divertimento, e só. Era assim quando acordava de madrugada para ir com um amigo de classe às aulas de remo. Foi assim quando a molecada descobriu o surfe e cedo ia em bando para a praia. Era assim nos tempos da natação. E tudo isso, claro, me veio depois de ter descoberto o prazer de jogar bola. Essa questão voltou à minha cabeça insistentemente quando comecei a trabalhar como repórter. Ia cobrir um treino e ficava , muitas vezes, curtindo uma inveja boa de quem estava ali trabalhando e ao mesmo tempo cuidando do corpo - e por tabela da cabeça. 

O vôlei foi dos esportes mais longevos na minha vida. Vieram os campeonatos, a possibilidade de disputar uma edição dos jogos abertos. Mas era como se tudo se encerrasse ali. Pensando bem pode haver uma explicação muito simples pra tudo isso: a ausência de um talento desses  que costumam mudar o destino das pessoas. Já contei aqui que a única vez que flertei com essa possibilidade foi depois de meu pai ter visto meus cotovelos inchados de tanto fazer defesas nas peladas que travávamos no chão duro da garagem do prédio em que morávamos. Deu-me uma bronca e em seguida me perguntou porque não ia jogar bola na praia. E avisou que se era assim iríamos arrumar um time - e consequentemente um campo - pra eu treinar. 

Foi uma das mais breves possibilidades da minha vida. No sábado, quando chegamos ao treino, enquanto meu pai conversava com o treinador e explicava a situação vi o garoto que jogava no gol fazer três defesas incríveis. E todo o devaneio a respeito de um caminho repleto de glórias como arqueiro evaporou. Andei lembrando disso tudo dias atrás adivinhem por que? Dei de cara com uma manchete, oras. Sim, estou obcecado por elas. A dita versava sobre a trajetória do atacante Yuri Mamute, que muito jovem foi alçado à essa condição tão perigosa de craque prestes a ser revelado para o mundo. Tinha dezesseis anos quando viu cair sobre ele esse fardo de ser uma grande promessa do nosso futebol. Com toda a tentação que realidades assim certamente escondem. 

E a vida seguiu com todos os requintes precoces que costumam por à prova uma maturidade que inexiste. Yuri foi convocado para umas das nossas seleções de base. Foi campeão. Laureado como o melhor jogador de um dos torneios mais prestigiosos do mundo na categoria. Coisas que deveriam bastar para tirar alguém do lugar comum. Mas apesar de tudo isso, ele diz com todas as letras que se desiludiu. Hoje cita as oportunidades que não teve, que o futebol ainda assim não lhe deu. No meio do caminho deu de cara com algo infinitamente mais presente no futebol do que o sucesso: a contusão. 

Foi parar no futebol grego, no Japão. Voltou ao Brasil. Hoje está no Joinville. Onde tem vivido a alegria de fazer gols. Essa coisa tão desejada e que em se tratando do jogo de bola sempre foi o melhor dos combustíveis. Consagrado, ou não, ter o esporte em nossas vidas, quero crer, já é um tipo de vitória. E que os que sonham com ele e não ficariam satisfeitos com algo menor do que a glória levem em conta o que ele tem de sublime, mas que levem em conta também o que ele tem de dor. E aí já não importa que seja verdadeira, ou não, a frase dita por Mamute que me fez de novo aqui escravo de uma manchete. A frase era: O futebol é ilusão. Mas qual de nós viveria sem ela?   

quinta-feira, 8 de fevereiro de 2024

A dúvida da dívida



Vou seguir nossa conversa partindo de uma manchete novamente. Boa demais para deixar passar sem uma reflexão. Creio que vocês irão entender. Já vimos de tudo no futebol. Times que não têm dinheiro fazendo contratações bombásticas. Time sendo campeão quando os balanços sugerem a bancarrota. Enfim, vigora no mundo da bola um quê de tudo é possível. E verdadeiramente é. Não fosse assim não teríamos visto como já vimos, e muito, times se impondo no cenário nacional com grandes títulos, grandes esquadrões, grandes faturamentos  e tudo isso virando pó pouco tempos depois. Qualquer semelhança com o Santos não terá sido mera coincidência. Um ciclo perverso que sempre jogou a favor do faturamento.

Costumo brincar com meus amigos, toda vez que damos de cara com algo nessa linha, dizendo o seguinte: quem gosta de futebol somos nós, eles gostam de dinheiro.  Veja, do ponto de vista dos negócios do mundo da bola tanto faz se um time está sendo montado ou desmontado. O que importa é o dinheiro girando, as comissões. Se puder desmontar e montar de novo, então, talvez seja melhor ainda. E se não fosse assim - com essa economia que desafia a lógica - as dívidas já teriam inviabilizado a história de praticamente todos os nossos clubes. Mas há sempre uma mão a lhes salvar, um mirabolante plano de refinanciamento bancado pelo governo - leia-se com a nossa grana -  cuja eficácia até aqui foi sempre uma espécie de naufrágio. Não há freios. 

Vivemos agora a era das SAFs.  Mas as manchetes, estas mesmo de onde tenho extraído o caldo da nossa prosa, estão fartas de exemplos que jogam na nossa cara que ser empresa nunca foi sinônimo de beatitude. Vira e mexe um balanço contábil estremece o mercado com rombos bilionários que experts em auditoria não conseguiram farejar.  Vai explicar. Por essas e outras costumo brincar com meus amigos dizendo também a eles que tenho a impressão que se um dia o mundo acabar poderá não ter sido em virtude de uma poderosa bomba, ou algo que o valha, mas por causa da economia com essa lógica absurda que passou a ser o cerne dela. 

Posso até admitir que muito foi feito no sentido de não deixar os cartolas impunes. Reconheço o empenho em se criar mecanismos que passassem a permitir que a lei fosse atrás deles e que passassem a responder com os patrimônios particulares uma vez constatada a falcatrua. A pergunta é: sabes de algum que no final das contas se viu na condição de ter de entregar o que tinha? Mas não digo que não andamos. O que digo é que até o final da semana passada duvidava, ou melhor, jamais imaginei que um dia daria de cara com uma manchete como aquela. Que dizia que o Bahia, graças a um aporte feito pelo seu agora parceiro grupo City, tinha quitado setenta e nove por cento das suas dívidas. Se quitarão estas para no futuro fazer outras é o que veremos. Afirmei aqui tempos atrás, que olhando a tabela do Brasileirão era possível ver que uma maneira diferente de gerir o futebol andava dando as caras e colocando entre os times ditos grandes outros mais modestos que outrora não teriam esse fôlego. Não apostaria que o mundo do futebol será saneado, mas sou obrigado a dar o braço a torcer que não esperava isso dele. 

quinta-feira, 1 de fevereiro de 2024

Andar com fé



Se tem uma coisa que me chamou a atenção nesse breve tempo em que deixamos de nos encontrar é como a tal Mega-Sena da virada vai ano após ano ganhando destaque nessa fronteira entre os anos. Dizem que sonhar não custa nada, mas sonhar com essas tais centenas de milhões de reais sem ter feito uma aposta não é sonho é sandice. Donde concluo que esse sonho tem seu preço. Aliás, que muitos topam pagar como podemos concluir pelo tamanho da bolada. Nossa realidade cruel, não dá pra negar, certamente contribui deveras pra esse quadro. A loteria , creio, cumpre o papel de uma espécie de último recurso em busca da felicidade ou, mais humildemente, em busca de uma vida digna. Por mais que nunca nos tenha faltado aviso de que a felicidade não se compra. 

Enfim, muito foi noticiado. O adeus ao velho lobo, Zagallo. O adeus ao cultuado Beckenbauer. A chegada de Dorival Júnior ao comando da Seleção Brasileira. Eu disse pra vocês que só acreditava na chegada de Ancelotti quando o visse de agasalho dando treino na Granja Comari, não disse? Essa sempre me pareceu uma cena difícil de se materializar. E pelo andar da carruagem jamais se materializará. Mas falando nas manchetes que ocuparam esta nossa lacuna, nenhuma me desafiou mais do que aquela que dizia que os brasileiros tinham gasto mais de 50 bilhões de reais em apostas on-line em 2023. Pensando bem não deveria, afinal, somos o povo que consagrou a aposta como uma espécie de fé. E que discorde aquele que nunca fez uma fézinha. 

E se digo que a notícia me desafiou é porque se trata de um número colossal. E talvez a maior parte das pessoas não tenha ideia do que ele representa. Como ainda não temos os números fechados de 2023 levemos em conta o exercício anterior. Em 2022 todas as loterias oficiais do país juntas foram responsáveis por uma arrecadação de 23,2 bilhões de reais. Menos da metade do faturamento das apostas on-line. E, vejam, foram números muito significativos  que representaram  a maior arrecadação da história. E justamente no ano em que a loteria pública brasileira completava sessenta anos de existência. Mais espantoso ainda se faz a realidade se levarmos em conta que até outro dia praticamente nem se falava em apostas on-line. 

Volto a insistir no papel que a nossa realidade social tem nisso tudo porque esse recorde histórico significou também um aumento de vinte e cinco por cento em relação ao ano anterior.  Um crescimento vertiginoso para algo tão estabelecido. E pensar que chegamos a esse cenário com todas essas empresas de apostas operando fora do nosso país. A regulamentação só agora está virando uma realidade e, ouso dizer, uma realidade ainda não totalmente estabelecida. Quase metade desse recorde histórico foi obra da Mega-Sena que em apenas um mês faturou mais do que o ECAD, nossa entidade responsável pela arrecadação e distribuição de direitos autorais de músicos e músicas. O que não deveria espantar já que somos um povo que gasta treze vezes mais com apostas lotéricas do que indo ao cinema. Mas por falar em música, não custa lembrar que quando Gilberto Gil canta que anda com fé, pois a fé não costuma falhar, está falando de algo mais transcendental do que uma aposta. Apostas, quase sempre, falham.