sábado, 21 de julho de 2007

O dia...

Atendo o pedido de um grande amigo, e publico abaixo um texto que narra algumas memórias sobre futebol que trago da infância.


O dia em que me tornei...



Quando penso na minha infância percebo como a bola foi a minha grande companheira. Uma realidade que eu acredito me aproxima de muitos meninos do meu país, e do mundo. Não sou capaz de dizer, nem mesmo, quando se deu o primeiro contato com essa coisa redonda, provavelmente de tão cedo que o fato ocorreu. Mas, posso lembrar perfeitamente como se deu o encantamento por ela. E nesse processo de descobrir a bola, você sabe, é possível imaginá-la em qualquer objeto que tenha essa forma. Quem já não ensaiou um drible ao se deparar com uma bolinha de tênis? Uma bola de meia? Uma bola de papel, e até uma laranja?
No prédio que eu e meu irmão morávamos havia outros dois irmãos, Vitor e Marcelo. Os três foram os amigos com quem mais joguei bola na vida. Dividiram comigo todas as fases dessa descoberta, a bola de meia, a de tênis, e também os momentos em que o bate bola foi se revelando despretensiosamente sério. Vieram, então, os rachões na rua, os duelos com a rua de trás. Foram, por sinal, os duros duelos com a “rua de trás” que me fizeram descobrir a satisfação plena de vencer uma partida de futebol. Nem sempre acontecia, mas quando acontecia...era demais. O sorriso no rosto de cada um, a conversa depois relembrando os lances. Vencer significava também uma superação física, já que os jogos eram, muitas vezes, cheios de empurra-empurra. O time da rua de trás não era só vigor, não. Tinha uns caras bons de bola, o Claudinho era um deles. Nossa esquadra também tinha lá seus nomes. Lembro de um em especial, o Zé Carlos, um mestiço de pernas tortas que era complicado de encarar. O Zé, além de marcar os jogos, era quem guardava a bola doada pra garotada pelo famoso árbitro Romualdo Arpi Filho. Romualdo, quando não estava apitando, tocava sua imobiliária que ficava perto da linha do trem, ao lado da padaria.
Depois vieram as peladas na praia, os jogos “clássicos” disputados aos sábados. Na praia, muitas vezes as turmas de amigos acabavam misturadas na hora de formar os times.
Agora, o auge das peladas da minha infância foi enfrentar o temido Pireli, time que tinha campo e tudo. O campo ficava muito abaixo do nível da rua, em um terreno baldio. Era preciso descer um barranco pra chegar até ele. Era uma espécie de Bombonera feita de barro. Bom, essa era a arte de jogar bola. Mas, foi com meu pai que eu descobri a arte de apreciar o jogo. Era programa certo! No final de semana, em geral depois do almoço, Seo Ary pegava eu e meu irmão e procurava uma partida de várzea pra assistir. Não eram poucos os jogos de várzea naquela época, dava pra escolher, se sabia qual era o time sensação, onde estava o artilheiro, que partida era importante pra decidir a temporada. Na várzea, a maior parte dos campos ficava em lugares abertos, meu pai então chegava, estacionava o carro perto da lateral e sentávamos no capô, o que evitava problemas caso o clima esquentasse. Lembrando, hoje, tenho até a sensação de que o capô da velha Brasília era confortável.
E lá íamos nós atrás do Itararé... do Paulistano... do Beija-flor...do Continental...
Como muitas das ruas em que joguei quando criança eram de terra, isso de certa forma parecia me aproximar das emoções descobertas naqueles campos de barro vermelho.
Nas décadas seguintes a expansão imobiliária tomou o espaço, e muitas equipes da várzea foram obrigadas a migrar para as areias da praia. Estou contando esses detalhes, porque o time que escolhi pra torcer é praiano e, de certa forma, esconde, na essência, um pouco de tudo isso. Evidente, como todo santista já fui chamado de viúva do Pelé, mas devo confessar que naquela época, nos idos de 1978, minha inocência me impedia de compreender a importância do Rei do futebol. Pelé era pra mim apenas um jogador famoso que vira e mexe aparecia no “Canalonga”, um alfaiate que trabalhava em uma casa na Praça do Correio. O que eu sabia era que toda vez que o Pelé pintava por lá causava um reboliço danado na porta da escola. Seja como for, cheguei a dar um aperto de mão nele, levado pela minha mãe.
Como é bom recordar. Veja só! A praça da escola tinha uns bancos que eram, na verdade, duas traves perfeitas. Só não via quem não era moleque, ou não gostava de futebol. Osvaldo, chegava todos os dias com sua pasta e seus óculos quadrados enormes, e com uma disposição tremenda colocava aquele campo quase imaginário pra funcionar. Ele se encarregava também de trazer a bola (de meia). Essa bola tinha que ter um tamanho perfeito, porque precisava ser guardada no final, quando soava o sinal de entrada. Tinha que ir pra classe com a gente.
Cresci ainda mais, e os finais de semana de futebol com meu pai já não se limitavam à várzea. O Jabaquara e, principalmente, a Portuguesa Santista passaram a fazer parte do roteiro. Ir ao estádio da Caneleira, a casa do Jabuca, em dia de chuva exigia determinação. O apogeu do time amarelo e vermelho tinha ficado pra trás, a equipe oscilava, mas levava na alma o que faz qualquer clube se encher de orgulho: os duelos eram apaixonados e apaixonantes. Já Ulrico Mursa era um campo de verdade, arquibancadas grandes de alvenaria, todo murado, e repleto de tremoços, muitos tremoços, uma semente amarela cozida e conservada em sal. A pipoca perdia de goleada por lá. No estádio Ulrico Mursa a emoção se tornava ainda maior, torcedores desesperados andavam de um lado para o outro, quase sempre sem conter o palavrão, e eram o espírito da Portuguesinha, ou “Briosa”, como muitos preferem. Hoje, entendo porque meu pai talvez não fizesse muita questão de me levar à Vila Belmiro. No fundo, no fundo, ele torcia para um clube da capital. Mas quem não queria ver um jogo de uma equipe que tinha ficado conhecida no mundo inteiro?
Ainda bem que nem meu pai resistiu a essa tentação, e meu dia de entrar na Vila Belmiro chegou.
O jogo era de noite, o que já mudava muito a atmosfera. Como mágica, as luzes dentro do estádio faziam parecer dia claro. Jamais imaginei que a entrada de um time em um gramado pudesse ser tão grandiosa.
Não, não era um clássico! O adversário era o modesto Comercial, de Ribeirão Preto. Não importava, meus olhos viam um brilho especial em tudo, e me fizeram acreditar que eu estava diante do maior evento futebolístico do planeta. Em campo, Pita, Nilton Batata e Juary. Aquele time chamado de “Meninos da Vila” era a visão do que o futebol representava pra mim, brincadeira, emoção, magia.
Pô, e ainda tinha o Juary, o jogador do momento, motivo de exaltação da torcida, que gostava de comemorar seus gols dando voltas frenéticas em torno da bandeirinha de escanteio. O Santos venceu por cinco a zero. Juary fez dois.
E pensar que outro dia entrei no site oficial do Santos e nome dele nem estava na lista de ídolos do clube.
Tudo era espetacular, o som do apito do juiz, a expectativa gerada por uma iminente cobrança de falta, aquela coisa de todo mundo levantar repentinamente das cadeiras quando a bola se aproximava do gol. Todos esses detalhes davam ao jogo de bola uma dimensão que eu jamais havia imaginado.
Hoje, entendo que o fator decisivo pra eu virar santista foi o fato de que sentia todos os outros times, por maiores que fossem, totalmente distantes de mim. Mas, o Santos, não. O Santos estava ali, ao meu alcance. É o time que eu acompanhei e o time que me acompanhou. Naquele dia, antes de me levantar para ir embora, olhei bem ao redor, sabia que aquelas jogadas frescas na memória virariam inspiração para tratar a bola pelas ruas nos dias seguintes.
Passei pelo portão de saída de maneira reverente. Meu pai me levou à Vila Belmiro outras vezes, mas aí eu já tinha “um” time. Hoje, aqui no futuro, sei que o dia em que eu virei santista foi o dia em que descobri o futebol por inteiro.

2 comentários:

Anônimo disse...

Parabéns pela iniciativa! Lindo texto, emocionante em tantos aspectos! Muito legal saber como começou seu gosto pelo futebol.
Tantos pais forçam a barra para os filhos serem atletas, pensando que estão garantindo o futuro... sua história mostra que um pai amoroso influencia os filhos de forma natural, sem qualquer pressão, basta estar presente!
Muito sucesso!

Vladir Lemos, jornalista disse...

É, Malu, essa questão da cobrança dos pais é mesmo algo complicado. E o jogo de bola parece cada vez mais distante desse descompromisso tão saudável. Abraço!