quinta-feira, 18 de abril de 2024

Receitas para o futebol



Não sei se vocês sabem  mas o jornalismo costuma usar o termo suíte quando um assunto que foi notícia na edição anterior volta a ser explorado. O termo vem do francês, onde suite significa uma série, uma sequência. É o que de certa forma farei aqui ao retornar não exatamente ao tema arbitragem mas ao que a cerca e que, creio, poderia ajudar àqueles que têm a incumbência de soprar o apito. A contribuição-mor, como já defendi aqui semana passada, seria ordenar um pouco os comentários sobre arbitragem. Não que isso vá livrar os árbitros do purgatório ou de alguma outra seção mais ardente. Quando digo ordenar falo em tecer considerações a respeito dos lances duvidosos só depois que eles já tiverem sido decididos. Sei que hoje em virtude da maneira como as coisas estão se dando nem bem o lance ocorreu os narradores já estão pedindo que o comentarista de arbitragem se pronuncie. Uma urgência que deveria ser evitada já que assim os narradores forçariam seus parceiros de transmissão à elegância do veredito em tempo oportuno. 

Outra coisa que meu viés romântico sugere é livrar os envolvidos no jogo de qualquer interferência externa. O que significa dar um jeito de proibir verdadeiramente qualquer aparato tecnológico. Celulares e afins.  Estou ciente de que há muitas ferramentas de análise que dependem da internet e uma vez que ela entre em campo danou-se. Mas seria possível. Há filtros. Há recursos. Condenaríamos assim os envolvidos com o jogo a acreditar no que olhos viram e ponto. Como antigamente. No jogo de ida da recente decisão paulista me chamou a atenção o tamanho dos monitores instalados nos bancos de reservas da Vila Belmiro. Com eles, mesmo que não venha a narração, vem a câmera lenta, o replay. Todos esses recursos que costumam complicar a nossa interpretação do jogo. Isso me fez lembrar do velho Telê Santana. 

No início dos anos 90 ele pediu que fossem instalados monitores nos bancos de reservas do Morumbi para auxiliá-lo durante as partidas. Reclamava com razão que a visão dali era ruim. E vejam, disse também que era mesmo só pra analisar os jogos e não para pressionar o juiz. Ainda se chamava árbitro de juiz. Elegante - e prevenido - pediu que um monitor fosse instalado também para o time visitante. Mas em um jogo do torneio estadual, orientado pelo juiz, o fiscal da Federação mandou que o desligasse. Telê disse que desligaria. E ficou furioso quando voltou do intervalo e viu que o monitor não estava lá. Não exatamente por ter sido retirado mas pelo fato de que o fiscal não havia confiado nele. Irritado com episódio no Brasileirão pegou um walkie-talkie e passou a assistir aos jogos da tribuna, orientando o auxiliar, Muricy Ramalho, que estava à beira do campo. 

Dois anos mais tarde Washington Rodrigues, treinador do Flamengo, usou do mesmo expediente sem ser molestado. A visão ao nível do campo é mesmo ruim. Para os repórteres atrás dos gols também. Quando comecei a trabalhar lembro que todo mundo queria saber da emoção de poder estar ali à beira do gramado. E lembro das caras de desapontamento quando eu dizia dessa visão prejudicada. Enfim, acho que é uma ideia essa blindagem tecnológica e esse atraso nos comentários de arbitragem. E encerro tomando pra mim o que disse Telê em 1996 quando a Federação finalmente liberou os monitores. Disse ele: "Antes tarde do que nunca". E completou: "Aos poucos eles vão aceitando minhas ideias". Já eu não alimento essa esperança. Não tenho essa pretensão. 

quinta-feira, 11 de abril de 2024

Foi ou não foi?


Você é do tipo que confia ou não confia nos árbitro de futebol? Sempre lembro de um velho companheiro de redação que costumava pregar, em alta voz, que nós brasileiros temos o traço perverso de começar a duvidar do árbitro bem antes do jogo começar.  Sempre vinha com essa quando a arbitragem virava tema do papo. Impossível lhe tirar a razão. Mas duvido que sejamos os únicos a conviver com essa pulga atrás da orelha. Fato é que gato escaldado tem medo de água fria. E tá pra nascer entre nós quem não tenha vivido trauma do tipo. Os santistas que sonharam com o título brasileiro de 1995 que o digam. 

Mas acho que já estamos em um estágio que deveria causar preocupações ainda maiores. Estamos na era em que passou a ser realmente um desafio saber o que viria a ser um bom árbitro. Ainda que alguns gozem nitidamente de prestígio maior. Como goza, ou gozava, Raphael Claus. E talvez a culpa não seja exatamente deles. Mas de tudo que se andou fazendo com relação a arbitragem. O mais incrível é que quando a dita interpretação era levada em conta o consenso a respeito do que se apitava parecia maior. Mais aí algum iluminado insistiu que as coisas precisavam ser mais claras e que bola na mão era bola na mão. E do que soava óbvio se fez o caos. 

Então passamos a ouvir  que era preciso levar em conta as orientações mais recentes repassadas aos árbitros. E eis que as orientações passaram a rivalizar com as regras, ou a dar essa impressão. Agora o que não dá margem a dúvida é árbitro ruim. Se você tem alguma lembre do senhor que apitou o amistoso entre Espanha e Brasil dias atrás. Enfim, alimentando esse fogo eterno dos embates entre foi ou não foi está não só essa área nebulosa em que pairam todas as interpretações e também um sem fim de câmeras que podem, a depender do ângulo em que estão postas, nos convencer facilmente de uma coisa ou de outra. Não queria ser o anunciador dessa nada alvissareira realidade. E peço desculpas se por acaso ainda restar nesse mundo alguém que não tenha feito essa constatação. 

Eu ao menos já me peguei muitas vezes mudando de opinião na mais perfeita sintonia com as alternâncias de ângulos. E chega a me dar arrepios lembrar disso porque a partir daí é possível - acompanhado de imagens - criar a narrativa que se queira para um lance, um jogo. A final do Paulista mostrou bem isso com o tal pênalti marcado em Endrick . Não há de ser , creio, um fato isolado desta nossa era infinitamente tecnológica e dada a desafiar pontos de vista. Tento na medida do possível adequar meu modo de ver o futebol a todas as orientações que soam por aí com certo ar de pregação. Tenho dúvidas monstruosas a respeito de muitos lances analisados sem pestanejar pelos mais experientes interpretes do jogo. 

Na maior parte das vezes sofro mesmo é quando as mãos e braços insistem em entrar no jogo. Entendo que se trata de um esporte de contato, aceito os jogos de corpo, mas quando um braço entra em cena deslocando alguém minha mente ultrapassada tende ainda a achar que foi falta, que foi pênalti, que foi claro. Mas pode ser apenas uma falta de atualização da pouca inteligência nada artificial que me foi dada a carregar na cabeça. E que me faz pensar que está mais do que na hora de os comentaristas de arbitragem terem a elegância de darem seus vereditos só depois de resolvido o lance em campo. E aí sim opinarem se foi ou não foi. 

quinta-feira, 4 de abril de 2024

Sobre manipulações



Tivesse a derrocada do Botafogo no Campeonato Brasileiro do ano passado se dado de modo menos evidente, com lances desses cabeludos, polêmicos, talvez fosse mais fácil entender onde quer chegar o americano John Textor, dono da SAF que adquiriu o Botafogo há dois anos. Não é o caso, o time figurativamente se desintegrou depois de liderar o torneio a maior parte do tempo. Duas realidades tão díspares que eu também não tiraria a razão de quem viesse a desconfiar que a evolução meteórica do time carioca tivesse por trás algum método menos ortodoxo. Até porque somos livres para desconfiar, o que é infinitamente diferente de acusar sem provas. 

Textor literalmente tem se esforçado sobremaneira para colocar fogo no circo. De onde é possível concluir também que ou ele sabe verdadeiramente de coisas que ninguém sabe ou tem sido um inconsequente.  Entre as declarações que deu, me chamou  atenção ter dito que enviou o material  que tinha à CBF para em seguida dizer que tendo feito isso não saberia dizer exatamente quem o recebeu. E mais tarde imprudentemente apontou para clubes como o Fortaleza, o Palmeiras e o São Paulo. Todos bradando em uníssono que irão tomar as atitudes judiciais cabíveis. Quando riscou o primeiro fósforo apontou um suposto esquema de manipulação de resultados. 

Acusação que levou todo mundo a crer que teria se dado no universo em que o clube dele transita. Eis que o americano que fez fortuna na indústria do entretenimento, quando todos esperavam a bomba, veio com uma conversa de que o caso teria se dado em uma divisão menor, infinitamente menor. Intimado a apresentar as provas não o fez e acabou denunciado pela procuradoria -geral do Superior Tribunal de Justiça Desportiva. Ao descumprir a decisão  foi denunciado em artigo que prevê pena que pode ir de 90 a 360 dias de suspensão. É de se supor também que tendo colocado parte de sua fortuna no futebol brasileiro e dando de cara com indícios de que o mesmo estaria sendo manipulado decidiu que a melhor tática seria colocar a boca no trombone. 

Até onde entendi os relatórios que forneceram os dados para que Textor tomasse pra si o papel de acusador são frutos da tão falada inteligência artificial. Vai saber o que não daria pra afirmar cruzando dados a respeito de tudo o que acontece em campo. Impossível que como homem de negócios experiente que é não tenha notado o quanto tudo foi feito de modo a causar impacto. Se há manipulação outros clubes podem estar interessados em saber como ela anda se dando. Poderiam ser parceiros de ações coordenadas. O que me faz crer que Textor considera que forçar esse assunto na mídia seria, ao menos, parte da estratégia ideal. 

Como não nasci ontem e sou por natureza um sujeito desconfiado começo a acreditar que pode não ser apenas coincidência que tudo isso venha à tona justamente no momento em que uma CPI no Senado se prepara para investigar a fundo a manipulação de resultados no futebol brasileiro. A criação da comissão foi requerida pelo ex-jogador Romário, atualmente senador pelo PL do Rio, que por sua vez embasou o pedido em relatórios de uma empresa que analisa dados em tempo real  a fim de encontrar movimentações suspeitas em casas de apostas e que colocou sob suspeita 109 jogos do Brasileirão do ano passado. Resta saber como se comportará  John Textor até o próximo dia 15, quando será julgado no Superior Tribunal de Justiça Desportiva.

quinta-feira, 28 de março de 2024

A nobreza de ser grande

Raul Baretta/ Santos FC


Não faz muito tempo no meio de uma conversa sobre futebol com um amigo ele me fez uma pergunta dessas para as quais qualquer resposta não soa definitiva. É como aquela outra, tão ouvida por aí, que nos exige dizer se técnico ganha ou não ganha jogo. A questão era: um time deixa de ser grande?  E eu me peguei imaginando a figura de um nobre que depois de umas tantas bolas fora acaba por ficar só com o título, com a comenda, quando tudo o que o cerca já não se renova com ar de realeza e ele passa a viver das lembranças de um passado que o tempo vai fazendo cada vez mais distante.  Dando aqui um drible na lógica, diria que um clube pode continuar respeitado pelo que já representou mas no presente se apequenar.  

Talvez um bom viés para analisar isso seria enxergá-los pelo faturamento. Afinal, nenhum nobre seria tido como nobre com seu poder de compra sendo dilapidado dia após dia. Entre os quatro ditos grandes clubes paulistas há notadamente um recorte. Neste momento de um lado estão Corinthians e Santos. Do outro, Palmeiras e São Paulo. O time santista , entre tantos desafios, tem vivido sérios dilemas que passam justamente por sua capacidade de faturar. Já teve boas provas de que ela melhoraria sensivelmente se ele abraçasse a ideia de ir jogar fora da Vila mais famosa do mundo. Mas tem arroubos que são herança dos tempos em que ninguém duvidava de sua grandeza e podia sonhar em ter tudo o que os rivais conseguiram. Ter uma Arena, por exemplo. 

Mas a realidade recente mostra que hoje em dia querer construí-la à beira-mar o confinaria a um reino que talvez não venha a propiciar faturamento aos menos parecido com o de seus concorrentes. Mais ambicioso e digno de sua própria história seria construí-la, então, onde reinam os outros, na capital. Já o Corinthians que, todos sabem bem, anda com as finanças arruinadas nos remete a algum nobre perdulário desses que se negam a admitir que a realidade mudou.  No mínimo, diria que nos dois casos eles se fizeram, ou têm se tornado, realmente menores do que foram um dia. Se ainda são grandes é uma questão de ponto de vista, de perspectiva. 

Neste cenário ninguém renovou mais sua condição de nobre do que o Palmeiras. Não bastassem os títulos, que soam como comendas, há ainda o faturamento em constante evolução. E aí é possível dizer o que for. Que com esse recurso todo o time teria que brilhar mais, que tem por isso a obrigação de sempre encarar o Flamengo de igual pra igual. A torcida do Palmeiras poucas vezes na história pôde estar tão satisfeita. E ai de quem ousar dizer que o time do velho Parque Antártica não segue sendo um grande. E ainda que falte ao São Paulo uma trajetória recente farta de grandes títulos ele é o único dos outros três rivais alviverdes que pode lhe fazer frente a essa altura. 

Não só porque andou papando um título aqui, quebrando um tabu acolá, mas porque tem colocado pra girar a engrenagem que pode verdadeiramente fazer um clube ganhar outra estatura: a de ter numerosa torcida. E a torcida do São Paulo, que anda lotando o Morumbi jogo após jogo, deveria causar inveja a todos os que venham a ser assombrados por esse dilema de ser ou já não ser grande. Até porque isso remete a outra dessas perguntas cujas respostas a elas nunca soam definitivas, que é: poderá existir algum dia time grande sem uma grande e presente torcida? Não por acaso quando o Santos joga na capital, com estádio lotado, dá a impressão de revelar outra estatura. 

quinta-feira, 21 de março de 2024

A mais pura tradução do jogo

Vou dizer uma coisa pra vocês. Vivo há várias décadas cercado de gente que dedicou a vida a esmiuçar o jogo de bola. Gente com talento reconhecido para tal. O que faz com que eu me sinta um afortunado. E, claro, gosto também de desfiar minhas teorias a respeito, ainda que tenha pra mim que no ofício de apresentador que exerço deva me dedicar mais ao questionamento, a informar, a conduzir conversas situando fatos, colocando-os em seu mais preciso contexto. Mas tenho um apreço imenso pela maneira como o futebol é tratado quando afastado de ambientes ditos profissionais. Nos botequins, nas filas de supermercado. Ai daquele que por ventura se afastar dessa fonte. 

Uma imagem que me vem quando penso nisso é aquela "marra" que o Ronaldinho Gaúcho ficou famoso por usar, sabe? Falo aquela de olhar pra um lado e mandar a bola pro outro. Movimento simples, mas eficaz como poucos. E cuja maior virtude talvez esteja no fato de desconcertar o marcador. Enfim, buscar a tradução de uma imagem, de um lance, olhando pra onde ninguém estava olhando, driblando o olhar comum. O que quero dizer a vocês é que procurar a interpretação do jogo no meio campo do cotidiano é das coisas mais valiosas e mais prazerosas na minha modesta opinião. A alma das boas crônicas que, por este motivo, creio, seduzem tanto. Um jeito legítimo de traduzir o jogo com um viés deliciosamente cru e cruel,  que muitas vezes nem mesmo o mais refinado especialista consegue. 

Sem contar que muitas coisas interessantes ficam pelo caminho. Vejam o caso do Nova Iguaçu que vinha fazendo boas campanhas nas duas temporadas recentes e agora, depois de eliminar o Vasco, irá decidir o título do Campeonato Carioca com o poderoso Flamengo. Li, quase sem acreditar, que seu treinador, Carlos Vitor, está no clube há trinta e dois anos. Lá chegou depois que o atual vice-presidente, na época diretor de futebol, o viu jogando uma pelada nos idos de 1992. Cal, como é chamado, foi jogador por seis temporadas. Virou treinador. Passou  por todas as categorias de base do clube. A começar pelo sub12. Mais tarde foi incorporado à comissão técnica permanente. E aí está, colhendo os frutos dessa trajetória. Personagem que me fez lembrar do britânico, Alex Ferguson, que comandou o Manchester United, da Inglaterra, por longos vinte e sete anos.  

Mas mesmo com essa história singular pouca coisa li na mídia sobre Carlos Vitor, chamado carinhosamente por seus comandados de CalDiniz, ou CalDiola, em alusão a treinadores mais famosos e laureados que ele. E é assim, porque o olhar do jornalista também é treinado, como são os times. Somos todos preparados para executar o que se fez nossa tática. Por isso, adoro ouvir o que se diz por aí, digamos, despretensiosamente. Algo na linha do que ouvi  outro dia um senhor na feira contar em tom de segredo para o corintiano boa praça, vendedor de limão. Disse ele baixinho que, já garotão, tinha trocado de time. Veja só que confissão! Tinha deixado de ser são paulino para virar santista. E o corintiano, naquele tom cru e cruel dos papos informais, abriu um sorriso imenso e sentenciou: "Olha aí,  se livrou de uma eliminação no último domingo, mas não do sofrimento. Tá parecendo eu".

quinta-feira, 14 de março de 2024

O futebol do nosso jeito



Que o nosso futebol não prima pela plástica deixou de ser novidade faz tempo. Não sei se seria correto justificar essa realidade apontando uma pobreza técnica. Por falar nisso, acho interessante termos visto nos últimos tempos os times brasileiros sendo inundados de estrangeiros, em sua maioria sul-americanos, e quase nada ser dito sobre os efeitos colaterais que isso poderá produzir. É de se supor que com o futebol brasileiro fazendo valer sua supremacia financeira sobre os outros times do continente uma melhora substancial na qualidade do jogo venha a ocorrer. Alimento sobre a questão teorias mais profundas, que versam sobre os desdobramentos que isso pode ter no que chamamos de nosso jeito de jogar. 

Considero improvável que tudo isso se dê sem provocar uma certa fusão de estilos. Gostaria de acreditar que o futebol brasileiro é dono de uma personalidade forte, capaz de moldar tudo isso a seu modo. Mas não sei se é o caso. Ainda mais neste momento da história em que tanto se fala que se acabamos desse jeito é por ter deixado de lado nossa verdadeira escola de bola para seguir outras. Talvez o que possa ser dito sem medo de errar é que o jogo por aqui produz cada vez menos encantamento. E se há nessa constatação algo de técnico, há sem sombra de dúvida também algo que passa pela educação, pela civilidade. 

E aí vou me dar o direito de filosofar mais ainda dizendo que esse viés seria facilmente explicável ao aceitarmos que o futebol foi desde sempre o espelho da nossa sociedade. Hoje em dia a sensação que tenho é a de que essa falta de educação, de civilidade, salta aos olhos no nosso cotidiano. No trânsito cada vez mais agressivo, nos motoqueiros ignorando na cara dura as leis de trânsito, nas pessoas não fazendo a mínima questão de exercer a gentileza. Em última instância também é de uma cara de pau tremenda a cera que os goleiros andam desenhando em campo. Os artifícios todos pra se tirar proveito de certas situações de jogo. Uma realidade na qual o entrevero recente entre os dirigentes são paulinos e palmeirenses só se fez uma espécie de apogeu dessa falta total de respeito. 

Não bastasse as conversas sobre futebol de uns tempos pra cá terem se reduzido aos mandos e desmandos do VAR, agora se colocou no bafafá do jogo de bola  a falta de educação dos dirigentes. E por tudo o que temos visto sou levado a crer que no fundo, no fundo, eles até acabam por enxergar no que lamentamos uma oportunidade para ganharem voz, para ganharem mídia. E, em geral, esse tipo de comportamento, que não deveria existir, perversamente tem se derramado justamente sobre os clássicos, sobre os jogos mais importantes. 

Em outras palavras, acabam minando as páginas que deveriam ser as mais admiradas, as que deveriam proporcionar a quem gasta seu tempo e dinheiro esse tal encantamento que se faz cada vez mais raro. Uma semana atrás exatamente estava vendo o jogo do Vasco com o Água Santa que, em pleno estádio de São Januário, depois de levar dois gols tinha conseguido a virada aos quarenta e dois do segundo tempo, para em seguida ver o Vasco empatar nos acréscimos. Ou seja, o futebol ia mostrando ali sua veia cativante, surpreendente. Mas aí se estabelece uma enorme confusão. E fica lá o jogo de bola reduzido a algo de se lamentar. Como tem acontecido tantas vezes.   

quinta-feira, 7 de março de 2024

Duas cenas do nosso futebol

Foto: Vinicius Gentil/Olaria AC


Antes de chegarmos ao requinte desta nossa era do chamado futebol nutella muita água passou por debaixo da Ponte. Muito gente suou , arriscou as canelas e ficou pelo caminho literalmente para que alguns poucos hoje, com a bola nos pés, pudessem desfrutar do status de celebridade. Que como temos visto tem feito muitas vítimas. Mas o futebol resiste e duas páginas escritas na semana passada me fizeram crer que o futebol raiz ainda tem viço. Seja lá o que futebol raiz queira dizer. As duas foram, de certa forma, um drible na obviedade de que o jogo de bola só pode nos fazer feliz quando nos oferta a pseudo-anfetamina da vitória. 

Uma dessas páginas foi escrita no estádio Ulrico Mursa de tanta tradição, com a Portuguesa Santista voltando a fazer um jogo de torneio nacional depois de dezoito anos.  Espaço de tempo que sempre foi visto como suficiente pra que alguém tome juízo. Mas essa é outra questão. A outra página se deu no estádio da Rua Bariri, no Rio de Janeiro, campo do Olaria. Diga-se de passagem, dois estádios que honram a tradição permitindo que  o jogo de bola se desenrole em cenário que vai se fazendo cada vez mais raro: um gramado natural. Talvez seja exagero dizer que tanto a Briosa quanto o Olaria foram vitimados pelo regulamento estapafúrdio da Copa do Brasil.

Mas se reclamassem que tiveram de jogar sob a sombra da injustiça, não lhes tiraria a razão. Pra quem não sabe a primeira fase do torneio reza que o time melhor posicionado no ranking tenha o direito do empate. Posso imaginar que algum iluminado tenha levado em conta que conceder o direito a uma disputa por penaltis aos teoricamente mais fracos - e já donos do mando - poderia favorecer o anti-jogo por parte dos anfitriões. Seja como for, a meu ver, essa desigualdade aniquila a equidade. No caso do jogo do Olaria com o São Bernardo se viu o placar apontando zero a zero até os quarenta e sete do segundo tempo. Não é de se estranhar que precisando vencer o time da casa tenha se exposto mais no fim e levado o gol. Afinal, era a única saída. 



Em Ulrico Mursa o enredo do jogo foi outro. O Caxias fez um a zero pouco antes do final do primeiro tempo.  E diante disso normal que o segundo tempo tenha se desenrolado com muitas faltas, com os visitantes apostando em se defender mais do que atacar. E fazendo uso da enrolação que no futebol costuma se chamar de cera.  A Briosa e o Olaria acabaram eliminados. Ficou a sombra desse regulamento maluco provocado certamente pela falta de datas do nosso calendário futebolístico. 

Mas em Olaria nada foi motivo para colocar a torcida pra baixo. Mesmo sabendo do favoritismo do adversário, o dia de debutante do clube na Copa do Brasil agitou as ruas do bairro. Fez brilhar a história de um clube que tem cento e oito anos.  E quando o juiz apitou o fim da partida não se viu desânimo. Foram ouvidos aplausos. Não vi como se deu o final do jogo em Ulrico Mursa mas posso imaginar que , de certa forma, estavam as duas torcidas irmanadas na sensação de que o futuro pode lhes reservar boas alegrias. Momentos que só foram possíveis por causa das Copas que mantém os times ativos durante o segundo semestre. No caso do Olaria a Copa Rio. E no da Portuguesa Santista a Copa Paulista, vencida pelo clube pela primeira vez no ano passado. E que vão mostrando que nem só de nutella vive o nosso futebol.

quinta-feira, 29 de fevereiro de 2024

Retranqueiro: ser ou não ser?




Já tive a oportunidade de dizer aqui em outro momento que a retranca com o passar dos anos foi ganhando ares de maldita. Pode-se desfiar uma longa teoria a respeito. A minha tiro do modo como a tal foi sendo encarada ao longo dos anos. Ouso dizer que em outros tempos era vista como um dogma do futebol do qual não se ouvia falar mal.  Hoje em dia a coisa está longe de ser assim. Que o diga o laureado técnico Tite. A coisa tanto o cerca que dias atrás ele falou sobre o assunto. Na verdade rebateu com veemência que o queiram ver como retranqueiro. 

A coisa tem muitas nuances. Há retrancas que não anulam a vontade de gol de um time. Há outras que os reduzem a ela. Diante disso, talvez seja pertinente lembrar o que escreveu certa vez Fernando Pessoa. Afirmou o poeta que há arte até no fazer embrulhos. Não foi por acaso que o assunto veio à tona. O Flamengo de Tite nesta temporada anda fazendo gols em número considerável enquanto sua meta até a declaração citada tinha sofrido um único gol. Não me caem bem certos termos para definir a fixação de um time, ou de alguém, para com o setor defensivo. Chega a me dar arrepios ouvir alguém dizer que fulano fechou a casinha, ou que estacionou um ônibus na área pra evitar levar gols. Se não tens muita intimidade com o jogo não se espante. São coisas ouvidas quando não se tem dúvidas sobre ser ou não ser retranqueiro. 

Os argumentos de Tite para se descolar dessa condição foram fortes. Disse que carrega o estigma do gaúcho.  E isso por si só permitiria que desfiássemos outra longa teoria. Disse que saiu do Rio Grande do Sul fazendo três a zero no Grêmio de Ronaldinho. Disse que a história dele tem título com o Grêmio fazendo três a um no Corinthians entrando com bola e tudo no terceiro gol.  Lembrou ter sido campeão mundial de clubes diante do Chelsea criando oportunidades e - usando um termo muito boleiro - indo pra dentro. Embalado no assunto, recordou que pegou o Corinthians pra cair e que precisou ser competitivo com um time que tinha quatorze garotos. Que pegou o Palmeiras na mesma situação, ameaçado de rebaixamento e precisando de uma reformulação extraordinária. E que deu conta disso tudo. 

A mim não resta dúvida da sua capacidade profissional. Foi por mérito que ele agora tem nas mãos o melhor elenco do país. E quero crer que saberá tirar proveito disso. Estava coberto de razão quando disse que é preciso ter cuidado com os rótulos. Acho tudo muito pertinente. Mas devo dizer que quando falava do assunto com um amigo o senti um tanto impaciente. Não demorou muito e, enquanto eu ainda falava, ele me cortou bruscamente e disse: é eu sei, mas e as duas Copas que ele têm nas costas? Argumento afiadíssimo. E que me fez lembrar de Luigi Pirandello. O romancista italiano fez questão de alertar seus leitores , com veemência também, que a gente não é o que pensa que é, nós somos o que o mundo vê. 

O que, ao mesmo tempo, me deixou com a sensação de que este assunto é mesmo bom. Permitiu citar Pessoa e Pirandello num mesmo artigo! Que tabelinha essa! Tite não dirá jamais que a defesa é o cerne de sua estratégia. O que parece óbvio olhando a trajetória dele. Eu, de minha parte, vos digo que nada tenho contra a retranca. Por estilo, prefiro sempre a ofensividade. Só peço aos que decidiram a abraçar que a exerçam, mas com elegância, na medida do possível. Como, talvez, seja o caso de Tite.

quinta-feira, 22 de fevereiro de 2024

A voz do Doutor



Na última segunda Sócrates Brasileiro teria feito setenta anos. No meio de toda a saudade provocada pela data me peguei com a cabeça nas nuvens. Fiquei imaginando como seria se o Doutor estivesse aqui. E que vontade de que ele estivesse. O que me fez flertar com muitas dúvidas. Mas o que ao mesmo tempo provocou em mim uma certeza: a de que se o Magrão estivesse entre nós haveria festa. E das boas. Talvez fosse celebrada na paulistana Ria Livraria, na Vila Madalena, que o tempo tratou de fazer a mais legítima substituta da velha Mercearia São Pedro, onde tive o privilégio de passar muitas noites com esse lendário camisa oito cercado de amigos. E é daí que trago tal certeza. O Doutor adorava celebrar a vida, que acabou lhe sendo breve. 

Ele partiu. O país se dividiu. A democracia passou a ser atacada. A correr perigo. A democracia da qual ele, de certa forma, passou a ser sinônimo. A democracia que ele tratou de plantar com seus iguais no árido chão que sustenta nosso futebol. E foi disso tudo que as dúvidas que andei alimentando nasceram. Pois me peguei imaginando, não é de agora, como nosso velho Magrão teria encarado as últimas páginas da nossa história. O que teria dito. De que forma teria defendido sua maneira humana de encarar o mundo. A quantas andaria a paciência dele com esse nosso jogo de bola. O que diria dos livros sendo alterados em nome de novos ditames. Como teria seguido na sua brava resistência. 

Pra mim Sócrates é meio Belchior, dessas figuras que o tempo só vai agigantando. 

Sabendo do papel que o Doutor chamou para ele, não foram poucas as vezes em que me peguei admirando sua figura e pensando comigo em segredo que aquele cara devia ter voz, muita voz. Devia ser ouvido. Por isso pra mim havia ali, além do prazer da companhia, o alento de saber que o programa que fazíamos juntos cumpria essa função, como cumpria a revista na qual ele publicava seus artigos semanais. E era interessante notar como as pessoas paravam para ouvir o Magrão. Presenciei isso muitas vezes, mesmo estando na mesa de um bar onde todo mundo costuma falar ao mesmo tempo. Mas aí ele embalava num assunto qualquer e, aos poucos, as pessoas à sua volta iam prestando atenção, prestando atenção, até que em dado momento todos eram só ouvidos. E era possível notar, então, um quase silêncio pra lá de reverente. 

E isso quando ele tramava um papo qualquer, não quando ele sacava da memória uma história vivida nos gramados - ou em seus arredores - por esse mundão afora. Aí seria covardia. Seria fácil explicar qualquer encantamento. Entre os amantes do futebol bem jogado acho que tá pra nascer alguém que não gostaria de ter escutado uma história de bola contada por Sócrates Brasileiro, ainda mais em tom um tanto íntimo. O Doutor virou nome de prêmio social da revista France Football, nome de esplanada em Ribeirão Preto, cidade que fez dele. A data de seus setenta anos rendeu manchetes. Sua figura foi reverenciada. Partilhei a saudade com alguns de seus velhos amigos que me foram deixados de herança e hoje também são meus. E ao lembrar disso enquanto batucava estas linhas devo ter deixado escapar um sorriso porque meus devaneios acabaram por me convencer de que o Magrão segue na área e ainda tem voz.   


*Artigo escrito para o jornal "A Tribuna" , de Santos /SP

quinta-feira, 15 de fevereiro de 2024

O futebol é ilusão



Uma das coisas que mais me intrigam é porque mesmo tendo praticado tantos esportes quando garoto nunca pensei em fazer dele profissão. No cerne de tudo estava o divertimento, e só. Era assim quando acordava de madrugada para ir com um amigo de classe às aulas de remo. Foi assim quando a molecada descobriu o surfe e cedo ia em bando para a praia. Era assim nos tempos da natação. E tudo isso, claro, me veio depois de ter descoberto o prazer de jogar bola. Essa questão voltou à minha cabeça insistentemente quando comecei a trabalhar como repórter. Ia cobrir um treino e ficava , muitas vezes, curtindo uma inveja boa de quem estava ali trabalhando e ao mesmo tempo cuidando do corpo - e por tabela da cabeça. 

O vôlei foi dos esportes mais longevos na minha vida. Vieram os campeonatos, a possibilidade de disputar uma edição dos jogos abertos. Mas era como se tudo se encerrasse ali. Pensando bem pode haver uma explicação muito simples pra tudo isso: a ausência de um talento desses  que costumam mudar o destino das pessoas. Já contei aqui que a única vez que flertei com essa possibilidade foi depois de meu pai ter visto meus cotovelos inchados de tanto fazer defesas nas peladas que travávamos no chão duro da garagem do prédio em que morávamos. Deu-me uma bronca e em seguida me perguntou porque não ia jogar bola na praia. E avisou que se era assim iríamos arrumar um time - e consequentemente um campo - pra eu treinar. 

Foi uma das mais breves possibilidades da minha vida. No sábado, quando chegamos ao treino, enquanto meu pai conversava com o treinador e explicava a situação vi o garoto que jogava no gol fazer três defesas incríveis. E todo o devaneio a respeito de um caminho repleto de glórias como arqueiro evaporou. Andei lembrando disso tudo dias atrás adivinhem por que? Dei de cara com uma manchete, oras. Sim, estou obcecado por elas. A dita versava sobre a trajetória do atacante Yuri Mamute, que muito jovem foi alçado à essa condição tão perigosa de craque prestes a ser revelado para o mundo. Tinha dezesseis anos quando viu cair sobre ele esse fardo de ser uma grande promessa do nosso futebol. Com toda a tentação que realidades assim certamente escondem. 

E a vida seguiu com todos os requintes precoces que costumam por à prova uma maturidade que inexiste. Yuri foi convocado para umas das nossas seleções de base. Foi campeão. Laureado como o melhor jogador de um dos torneios mais prestigiosos do mundo na categoria. Coisas que deveriam bastar para tirar alguém do lugar comum. Mas apesar de tudo isso, ele diz com todas as letras que se desiludiu. Hoje cita as oportunidades que não teve, que o futebol ainda assim não lhe deu. No meio do caminho deu de cara com algo infinitamente mais presente no futebol do que o sucesso: a contusão. 

Foi parar no futebol grego, no Japão. Voltou ao Brasil. Hoje está no Joinville. Onde tem vivido a alegria de fazer gols. Essa coisa tão desejada e que em se tratando do jogo de bola sempre foi o melhor dos combustíveis. Consagrado, ou não, ter o esporte em nossas vidas, quero crer, já é um tipo de vitória. E que os que sonham com ele e não ficariam satisfeitos com algo menor do que a glória levem em conta o que ele tem de sublime, mas que levem em conta também o que ele tem de dor. E aí já não importa que seja verdadeira, ou não, a frase dita por Mamute que me fez de novo aqui escravo de uma manchete. A frase era: O futebol é ilusão. Mas qual de nós viveria sem ela?   

quinta-feira, 8 de fevereiro de 2024

A dúvida da dívida



Vou seguir nossa conversa partindo de uma manchete novamente. Boa demais para deixar passar sem uma reflexão. Creio que vocês irão entender. Já vimos de tudo no futebol. Times que não têm dinheiro fazendo contratações bombásticas. Time sendo campeão quando os balanços sugerem a bancarrota. Enfim, vigora no mundo da bola um quê de tudo é possível. E verdadeiramente é. Não fosse assim não teríamos visto como já vimos, e muito, times se impondo no cenário nacional com grandes títulos, grandes esquadrões, grandes faturamentos  e tudo isso virando pó pouco tempos depois. Qualquer semelhança com o Santos não terá sido mera coincidência. Um ciclo perverso que sempre jogou a favor do faturamento.

Costumo brincar com meus amigos, toda vez que damos de cara com algo nessa linha, dizendo o seguinte: quem gosta de futebol somos nós, eles gostam de dinheiro.  Veja, do ponto de vista dos negócios do mundo da bola tanto faz se um time está sendo montado ou desmontado. O que importa é o dinheiro girando, as comissões. Se puder desmontar e montar de novo, então, talvez seja melhor ainda. E se não fosse assim - com essa economia que desafia a lógica - as dívidas já teriam inviabilizado a história de praticamente todos os nossos clubes. Mas há sempre uma mão a lhes salvar, um mirabolante plano de refinanciamento bancado pelo governo - leia-se com a nossa grana -  cuja eficácia até aqui foi sempre uma espécie de naufrágio. Não há freios. 

Vivemos agora a era das SAFs.  Mas as manchetes, estas mesmo de onde tenho extraído o caldo da nossa prosa, estão fartas de exemplos que jogam na nossa cara que ser empresa nunca foi sinônimo de beatitude. Vira e mexe um balanço contábil estremece o mercado com rombos bilionários que experts em auditoria não conseguiram farejar.  Vai explicar. Por essas e outras costumo brincar com meus amigos dizendo também a eles que tenho a impressão que se um dia o mundo acabar poderá não ter sido em virtude de uma poderosa bomba, ou algo que o valha, mas por causa da economia com essa lógica absurda que passou a ser o cerne dela. 

Posso até admitir que muito foi feito no sentido de não deixar os cartolas impunes. Reconheço o empenho em se criar mecanismos que passassem a permitir que a lei fosse atrás deles e que passassem a responder com os patrimônios particulares uma vez constatada a falcatrua. A pergunta é: sabes de algum que no final das contas se viu na condição de ter de entregar o que tinha? Mas não digo que não andamos. O que digo é que até o final da semana passada duvidava, ou melhor, jamais imaginei que um dia daria de cara com uma manchete como aquela. Que dizia que o Bahia, graças a um aporte feito pelo seu agora parceiro grupo City, tinha quitado setenta e nove por cento das suas dívidas. Se quitarão estas para no futuro fazer outras é o que veremos. Afirmei aqui tempos atrás, que olhando a tabela do Brasileirão era possível ver que uma maneira diferente de gerir o futebol andava dando as caras e colocando entre os times ditos grandes outros mais modestos que outrora não teriam esse fôlego. Não apostaria que o mundo do futebol será saneado, mas sou obrigado a dar o braço a torcer que não esperava isso dele. 

quinta-feira, 1 de fevereiro de 2024

Andar com fé



Se tem uma coisa que me chamou a atenção nesse breve tempo em que deixamos de nos encontrar é como a tal Mega-Sena da virada vai ano após ano ganhando destaque nessa fronteira entre os anos. Dizem que sonhar não custa nada, mas sonhar com essas tais centenas de milhões de reais sem ter feito uma aposta não é sonho é sandice. Donde concluo que esse sonho tem seu preço. Aliás, que muitos topam pagar como podemos concluir pelo tamanho da bolada. Nossa realidade cruel, não dá pra negar, certamente contribui deveras pra esse quadro. A loteria , creio, cumpre o papel de uma espécie de último recurso em busca da felicidade ou, mais humildemente, em busca de uma vida digna. Por mais que nunca nos tenha faltado aviso de que a felicidade não se compra. 

Enfim, muito foi noticiado. O adeus ao velho lobo, Zagallo. O adeus ao cultuado Beckenbauer. A chegada de Dorival Júnior ao comando da Seleção Brasileira. Eu disse pra vocês que só acreditava na chegada de Ancelotti quando o visse de agasalho dando treino na Granja Comari, não disse? Essa sempre me pareceu uma cena difícil de se materializar. E pelo andar da carruagem jamais se materializará. Mas falando nas manchetes que ocuparam esta nossa lacuna, nenhuma me desafiou mais do que aquela que dizia que os brasileiros tinham gasto mais de 50 bilhões de reais em apostas on-line em 2023. Pensando bem não deveria, afinal, somos o povo que consagrou a aposta como uma espécie de fé. E que discorde aquele que nunca fez uma fézinha. 

E se digo que a notícia me desafiou é porque se trata de um número colossal. E talvez a maior parte das pessoas não tenha ideia do que ele representa. Como ainda não temos os números fechados de 2023 levemos em conta o exercício anterior. Em 2022 todas as loterias oficiais do país juntas foram responsáveis por uma arrecadação de 23,2 bilhões de reais. Menos da metade do faturamento das apostas on-line. E, vejam, foram números muito significativos  que representaram  a maior arrecadação da história. E justamente no ano em que a loteria pública brasileira completava sessenta anos de existência. Mais espantoso ainda se faz a realidade se levarmos em conta que até outro dia praticamente nem se falava em apostas on-line. 

Volto a insistir no papel que a nossa realidade social tem nisso tudo porque esse recorde histórico significou também um aumento de vinte e cinco por cento em relação ao ano anterior.  Um crescimento vertiginoso para algo tão estabelecido. E pensar que chegamos a esse cenário com todas essas empresas de apostas operando fora do nosso país. A regulamentação só agora está virando uma realidade e, ouso dizer, uma realidade ainda não totalmente estabelecida. Quase metade desse recorde histórico foi obra da Mega-Sena que em apenas um mês faturou mais do que o ECAD, nossa entidade responsável pela arrecadação e distribuição de direitos autorais de músicos e músicas. O que não deveria espantar já que somos um povo que gasta treze vezes mais com apostas lotéricas do que indo ao cinema. Mas por falar em música, não custa lembrar que quando Gilberto Gil canta que anda com fé, pois a fé não costuma falhar, está falando de algo mais transcendental do que uma aposta. Apostas, quase sempre, falham.

quinta-feira, 21 de dezembro de 2023

O Flu e outros campeões



A temporada terá chegado ao fim pra valer quando o Fluminense amanhã sair de cena. Por mais que o fim do Brasileirão deixe no ar um sentimento de circo sendo desmontado. E não resta dúvida de que o time de Fernando Diniz deu enorme contribuição para ela com seu inédito título da Libertadores e a boa vitória sobre o Al Ahly que lhe colocou na final do Mundial de Clubes. O jogo de bola nos dias atuais , infelizmente, nos impõe um exercício de humildade. Ou, melhor dizendo, nos obriga a nos encerrar na própria realidade. Confrontar o nosso futebol com o europeu, não é de hoje, pode revelar um abismo de difícil transposição. Sabemos disso, mas sabemos também que o jogo adora driblar a razão ou qualquer coisa que o valha e acabamos por alimentar - meio que por instinto - a possibilidade de ver o improvável.  

É bem capaz que você tenha ouvido muitas vezes pregadores não tricolores dizerem que Diniz precisava de um grande título para ancorá-lo. Pois agora ele o tem. O que talvez já não tenha é o cargo de treinador da Seleção Brasileira uma vez que a CBF neste momento teve seu presidente destituído pela justiça comum e o interventor em exercício corre contra o relógio para convocar eleições. Diante dessa realidade  o trato com Carlo Ancelotti, desde sempre de ares tão etéreos, pode ter evaporado, como se evaporou praticamente metade do tempo que se tinha para fazer nossa Seleção ser o outra na próxima Copa. A Diniz diria que, por mais que chegar lá ainda soe como reconhecimento,  a Seleção tem pouco a lhe oferecer neste momento. O que é ao mesmo tempo uma prova de que ela já não é o que foi um dia. 



Tratar de fazer a carreira em clubes ainda mais sólida é o que verdadeiramente pode lhe ampliar os horizontes. Cito o título conquistado mas sigo acreditando que a maior contribuição de Diniz segue  sendo a originalidade. Esse jeito que nos obriga a pensar o jogo. Insistir em ser diferente desde sempre guarda uma dose de coragem. E por falar na temporada, maduro, o Palmeiras soube fazê-la um tanto dele também. Talvez nem todos vejam valor nisso, mas considero títulos seguidos algo notável. E aí está o time da Academia de Futebol na nobre condição de bicampeão brasileiro. Se muitos argumentos o futebol trata de desfazer diria que a trajetória de Abel Ferreira nos faz ver que pode ser mesmo essencial manter um treinador.  Mas é fato que acreditaria mais nessa virtude tivesse o treinador vivido ao longo do tempo percalços desses que valem por uma frigideira. Não foi o caso. Abel, ainda que tenha se visto às voltas com momentos mais desafiadores esteve sempre escudado , se não pelos resultados, pelas conquistas que obteve. Tantas que lhe valeram como uma blindagem. 



E resultado, já que o assunto é a temporada, alcançou também o São Paulo, campeão da Copa do Brasil deste ano. Bater o Flamengo na final já teria sido de aplaudir.  Mas o tricolor assinado por Dorival Júnior chegou lá depois de ter deixado pelo caminho dois rivais gigantes: Palmeiras e Corinthians. O que seria justificativa para qualquer euforia. O alto número de lesões, é fato, talvez tenha nos impedido de ver o que poderia o elenco tricolor que muitas vezes em campo me pareceu se contentar com o domínio do jogo sem fazer muita questão do gol. Mas é só uma impressão. Está aí. Na condição de campeão.  E pelo visto de bem com a torcida que se encarregou de dar ao time do Morumbi uma média de público invejável. O que nunca será pouco.

sexta-feira, 15 de dezembro de 2023

O futuro santista



Não bastasse a vergonha do rebaixamento os santistas tiveram de lidar também com a vergonha por alguns não saberem lidar com essa condição. Vale dizer que isso não é exclusividade dos santistas. Historicamente os rebaixamentos têm deixado essa marca. Ainda estão frescas na minha memória a batalha campal que se deu no estádio Couto Pereira, por exemplo, no final da temporada de 2009 quando o time dono da casa caiu. O que se deu depois também não foi novidade. Multas e perdas de mandos de campo, que num primeiro momento soavam muito bem impostas, sendo descaradamente abrandadas até quase deixar de existir. Um rebaixamento pode não ser o fim do mundo mas que os santistas não se iludam. Ou achem que o exemplo de outros grandes clubes que caíram pode lhe servir. 

Não é bem assim. A musculatura financeira e social os distinguem. O rebaixamento do Corinthians, não custa lembrar, passado o impacto inicial virou praticamente um case de marketing para o clube. E, arrisco dizer, até para a crônica esportiva. Todos os jogos eram acompanhados com grande interesse. Mobilizavam um contingente considerável de torcedores que fizeram questão de acompanhar cada jogo onde quer que fosse. Não que eu duvide do que pode o torcedor santista. E quero lhe crer tão fiel quanto outros. Mas a realidade tem tudo para ser mais solitária. Uma vez que não deverá despertar todo esse interesse da mídia. Realidade que exigirá que o elegido para cuidar deste futuro santista tão incerto neste momento o pense com os pés no chão. 

Vejam. Respeitoso com o Santos seria não pensar em SAF. Afinal, que bom negócio pode ser feito quando uma das partes está nas cordas? Contratações badaladas que costumam fazer mais bem a imagem dos cartolas do que ao clube não virão ao caso. O inédito descenso não foi uma cena fácil. E chegou a pesaru sobre ela algo de fajuto. Essa palavra outrora tão usada mas que parece condenada a um eterno banco de reservas depois do advento do fake. Mas a mim fajuto soa mais preciso. Não duvido do sentimento de quem estava ali em campo. Mas conversei muito a respeito com outras pessoas. E a impressão que ficou é que, de certo modo, esse era um final tão previsível que mesmo a desolação dos atletas ainda no gramado diante do ocorrido soava esquisita, quase forçada. Pareceu uma reação não de quem é abatido mas de quem precisa se mostrar assim. É fato que uns devem ter sentido o momento mais do que outros. E também é possível que outros ainda tenham sofrido muito. O técnico Marcelo Fernandes certamente está entre eles. 

Em tempo algum se poderá dizer que o rebaixamento foi uma surpresa. Não, não houve clube no futebol brasileiro para quem situação como esta pareceu só uma questão de tempo. Os indícios da queda foram visíveis nas últimas temporadas. Mas o futebol tem lá seus caprichos e revestiu isso tudo de momentos que lidos com euforia e oportunismo fizeram a derrocada ser apontada como coisa de pessimistas. Um caldo fatal engrossado por seguidas administrações que nem perto do aceitável passaram. Nada pode ser mais triste do que chegar a esse momento e precisar reconhecer que ele foi merecido. E qualquer pessoa de bom senso diante de tudo o que se viu nesta temporada não irá discordar de tal veredito. Que o Santos volte o mais rápido possível a espelhar o brilho que a história lhe deu, infelizmente, não a história recente.    

 

quinta-feira, 7 de dezembro de 2023

O naufrágio botafoguense



O vivido pelo Botafogo é de uma complexidade Shakesperiana, como disse certa vez o genial Nelson Rodrigues a respeito da mais simples pelada. Gostei de ver dia desses o historiador, Luiz Antônio Simas, fazer uma muito pertinente observação a respeito da frase que, de tão precisa, ficou famosa quando se trata do time da estrela solitária. Tenho certeza de que o nobre leitor já a deve ter ouvido. É aquela que diz: Há coisas que só acontecem ao Botafogo. Uma tentativa de explicar o inexplicável. E como a história recente do Botafogo tem sido mais de percalços do que de glórias passou-se a ter a impressão de que ela foi cunhada para momentos tristes. Não é o caso. 

A frase original, do também genial, Paulo Mendes Campos, aliás, tinha cunho pessoal como cabe bem às crônicas. Dizia: Há coisas que só acontecem ao Botafogo e a mim.  Ou seja, como bem lembrou Simas, trata-se de uma ode ao triunfo não ao fracasso. A crônica intitulada " O Botafogo e eu" foi publicada três dias depois de o Botafogo conquistar o Campeonato Carioca de 1957 vencendo o Fluminense por seis a dois diante das quase cem mil pessoas que estavam no Maracanã. Cinco gols de Paulo Valentim, que terminou o torneio como artilheiro,  um de Garrincha. Isso diante de um Flu que tinha Castilho no gol, Telê, Escurinho. 

Na mesma crônica Mendes Campos diz que o Botafogo não se dá bem com os limites do sistema tático e diz que o time teria de ser como ele, dramaticamente inventado na hora. Vai saber o que seria capaz de livrar o Botafogo dessa sina de ser, digamos, tão original. E a essa altura uma vitória sobre o Internacional só tornaria a coisa ainda mais intrigante. O que temos acompanhando praticamente esgotou o arsenal do batalhão de comentaristas que dia a pós dia encara as trincheiras da crônica esportiva no afã de tentar traduzir o jogo de bola de alguma forma. Se não pelo viés da realidade, pelo imaginativo. Mas nem assim sobrou munição. 

Tanto que outro dia vi um ex-boleiro, agora comentarista, pedir licença para dizer que quando jogava e o time começava a viver coisa parecida o jeito era reunir o elenco e perguntar se alguém ali estava em dívida com coisas que pudessem ser ditas do além. E pediam pra que se um deles se considerasse nesta condição - mesmo sem ter de confessar isso ou falar a respeito - que desse um jeito de cuidar da questão. Nesse sentido é interessante notar que na mesma crônica encontramos  uma frase que diz o seguinte: O Botafogo põe a gravata e vai à macumba cuidar de seu destino. E na sequência, pra não deixar que tudo perca seu ar testemunhal, Mendes Campos tece esta maravilha: eu meto o calção de banho e vou à praia discutir com Deus. Lindo, não? 

Vejam, o futebol é tão dado a essas coisas que ainda no ano passado a diretoria de patrimônio do Vasco precisou vir a publico esclarecer que não passava de boato a notícia de que teria sido descoberto um sapo enterrado em São Januário durante a instalação do busto em homenagem a Roberto Dinamite. Uma história que remete aos anos 1930. Esse Botafogo talvez espelhe só o bom e velho futebol nos mostrando que ele é que é de outro mundo. Ou talvez, como também escreveu Mendes Campos, o Botafogo seja um menino perdido na poética dramaticidade do futebol.

quinta-feira, 30 de novembro de 2023

As pérolas e a vaia



Podem falar o que for mas o futebol é uma fonte inesgotável de divertimento. Nem sempre pelo que se dá entre as quatro linhas. Nos últimos dias, em meio a debacle da nossa Seleção, não faltaram bons exemplos do que digo. Lembremos algumas frases ditas no calor do momento, por exemplo. A de Gabriel Jesus dizendo que o gol não era o forte dele. Por mais que o futebol atual e seus esquemas táticos tenham ditado outras funções a um camisa nove não deixa de ser lapidar. Ou a dita pelo lateral Emerson Royal, classificando o esquema do treinador do escrete nacional de algo muito difícil de ser executado. E o cara joga em uma Liga famosa pela excelência técnica. Ou a de Mourinho sobre Ancelloti afirmando que só um louco deixa o Real Madrid. E a do Ancelotti ontem dizendo que concorda com o que disse o português. Boas demais, não? 

Outra coisa que me chamou a atenção: a vaia. Algo que a nossa Seleção parece ter despertado. E ouvida também ao fim do empate do Botafogo com o Santos. Vaias são sempre cruéis, não há dúvida. Não por acaso soaram pela primeira vez durante as execuções na Grécia antiga onde o espectador passou a usá-la quando achava que o que estava vendo não merecia aplausos. De onde é possível concluir que o torcedor brasileiro tem sido até  muito condescendente com o futebol que anda vendo. Em geral quando a vaia pinta na área o circo já pegou fogo. 

Prova disso é que uma das vezes em que um jogador conseguiu a façanha de transformar uma vaia em aplauso fez do momento uma página inesquecível. Caso de Julinho Botelho em maio de 1959, quando a Seleção Brasileira entrou em campo para comemorar a conquista da Copa no ano anterior e os alto falantes do Maracanã anunciaram que ele ocuparia o lugar de Garrincha barrado por estar acima do peso, dizem. A estrondosa vaia teria sido ouvida pelo ponta direita ainda no vestiário e ele ao ouvi-la teria prometido a Nilton Santos jogar muito. E jogou. Com dois minutos de jogo fez o primeiro gol do Brasil no amistoso contra a Inglaterra, deu passe para o segundo, seguiu brilhando e saiu de campo aplaudido de pé. Até hoje há quem diga que se tratou de uma das maiores apresentações individuais da história do nosso futebol. 

O que quase ninguém lembra é que Julinho, que tinha estado com a Seleção no Mundial anterior era pra estar também em 1958. Ocorre que depois de ir muito bem em 54 acabou negociado com a Fiorentina time com o qual conquistaria um inédito Campeonato Italiano. Naquela altura Julinho tinha fama e a experiência de três temporadas passadas na Europa. Teria ocupado o lugar de Garrincha. Isso mesmo! Pois o titular era Joel, do Flamengo. Talvez os mais novos nem acreditem. Mas não teço aqui uma peça de ficção. Julinho recusou o convite! Alegou que não seria justo jogar uma Copa no lugar de alguém que estava no Brasil. E, ao contrário do que se ouve muito por aí, durante a Copa os manda chuvas do elenco não pediram pra que Garrincha fosse escalado. 

Relatos em livros, como o de Ruy Castro, sustentam que no primeiro jogo era preciso um ponta que atuasse recuado. Não era o caso do Mané. E na segunda partida, por mais que tenha sido avisado que não deveria segurar a bola porque o tal de Stanley, o lateral inglês, era violento e desleal, Joel deu mole. Levou uma botinada e ficou às voltas com o departamento médico. E se Garrincha acabou escalado contra os temidos - e até favoritos  -soviéticos foi porque a estratégia brasileira era ser ofensivo desde o início. É, já não se ousa mais como antigamente. Mas a vaia e o aplauso continuam tendo rigorosamente a mesma alma. 

quinta-feira, 23 de novembro de 2023

Ah, moleque!



Depois de ter visto as cenas lamentáveis na arquibancada do Maracanã na terça vou preferir falar do que pode dar vida ao jogo de bola. A molecada. O futebol nos homens é uma outra coisa. É profissão. É um tudo ou nada. É um balé de movimentos premeditados. Algo que raramente se satisfaz com o ato de se divertir. Isso explica muito da graça cativante que se descortina quando damos de cara com algum moleque desafiando tudo isso. Já vimos tantos. Não esquecemos nunca a precocidade daquele que se fez o Rei. E que continua, até hoje, sendo  o mais novo a entrar em campo pela Seleção e a marcar um gol vestindo a camisa dela.  Chego a pensar que um dos segredos de Pelé foi justamente o de conseguir preservar em si a capacidade de jogar futebol como quem brinca. Persistiu nele algo de moleque. Algo que, olhando bem, o maior de todos os camisas dez deixava transparecer no sorriso. Uma aura que se renova agora na figura de Endrick que acaba de debutar na Seleção. 

A jóia palmeirense recém envolvida em polpuda transação irá se juntar a outros meninos, alguns já nem tão meninos assim, que o mercado se encarregou de levar pra longe de nós. Será uma questão de tempo para que outros sigam pela mesma trilha drenando do nosso futebol essa força capaz de lhe dar outra vida.  Os homens de negócio do mundo da bola, preocupados que estão com as cifras, não os buscam exatamente pelo que jogam. Os buscam pelo que podem vir a render. E nesse sentido quanto mais cedo melhor. Não tardará e  jogadores como o santista Marcos Leonardo seguirão pelo mesmo caminho. E assim vamos ficando cada vez mais sem esse combustível essencial da juventude. Imaginem o nosso futebol se Vini Jr estivesse aqui... Vitor Roque...Rodrygo. Um fluxo que não só não nos deixa remoçar como nos envelhece. 



A última janela de transações internacionais reforçou esse viés. Um sem fim de jogadores já bem rodados têm desembarcado aqui. E ainda que ostentem trajetórias de se admirar - o que está muito longe de ser o caso da maioria - de uma forma ou de outra fazem nosso futebol perder o viço. Se trata de uma equação inevitável. Só mesmo a inocência dos jovens para driblar o ar sério e modorrento que tanto insiste em ser a cara do nosso futebol atual. Quero crer que muitos por aí, como eu, andam saudosos de um sentimento que se perdeu. Aquela ansiedade boa que se sentia quando um jogo ia começar e trazíamos conosco a certeza de que lá estaria alguém que poderia nos deslumbrar. Lembro de viver muito essa sensação nos tempos do Zico. Como era bom poder esperar isso do futebol. 

Mas hoje  alguém começa a nos dar esse prazer e o tal do mercado logo aparece na área com sua mão impiedosa levando o talento pra um lugar em que nossa conexão com ele já não pode ser tão íntima. Sem dizer que na maior parte das vezes quando se fala de um jovem talento se fala também do cuidado que é preciso ter com ele. Que tem de ser colocado pra jogar com cuidado, que não se pode queimar etapas. Mas, estranhamente, ao mesmo tempo eles já assinaram contratos para amarrá-los, já viram as empresas esportivas lhes seduzirem com seu mundo de sonhos e suas chuteiras exclusivas. Tem de colocar é a molecada pra jogar. Ainda mais quando a juventude chega pedindo passagem.             

quinta-feira, 16 de novembro de 2023

Nosso Brasileirão surreal



O Botafogo tá na fogueira. Não há como mascarar essa verdade. A mim soou desde o início que tamanha frente era cruel demais de administrar. Tivesse o time botafoguense desenhado uma liderança normal a realidade seria outra. Mas a bola , a sorte e os gols de Tiquinho Soares o colocaram em total evidência. O fizeram desenhar o melhor primeiro turno da era dos pontos corridos. Impor aos que precisaram se contentar em persegui-lo uma distância que chegou a treze pontos. Algo que em dado momento soou gigante. E agora está aí deixando o pessoal da crônica com cara de quem não acredita no que vê.  Está pra nascer quem consiga explicar do que o futebol é capaz. Interpretar esse maluquice a que o time da estrela solitária tem condenado seus torcedores. 

O modo como começou o jogo contra o Vasco dias atrás. Valente, dando pinta de que poderia voltar a ser o que vinha sendo, que não sentiria a bigorna sobre as costas que acabou sendo o encontro  com o Palmeiras. O tipo de enredo que costuma minar qualquer confiança. Pra desespero dos que foram convencidos a sonhar com o título brasileiro desde praticamente o início a partir de agora, sob comando de Tiago Nunes, será torcer para que a realidade não venha realmente a ser tão perversa quanto a curva de aproveitamento sugere.  No momento em que escrevo ouço gente aqui afirmando que não se trata de uma questão técnica mas psicológica. Cheguei a crer que Lúcio Flávio ter sido alçado à condição de comandante atendendo ao clamor do elenco que via nele o cara pra tocar o barco um antídoto pra isso. Mas a tempestade se fez. 

Os capítulos que se seguiram ajudaram a manter a veia surreal de tudo o que estamos vendo se dar. O Bragantino que no momento em que passou a ser visto como sério candidato não conseguiu segurar a onda também. O Palmeiras que foi ao Maracanã renascido para encarar aquele que a história recente fez seu maior rival e de lá saiu fazendo o torcedor alviverde, tão acostumado a grandes conquistas, duvidar um tanto dessa alentadora sobrevida. Crença resgatada pouco depois na vitória sobre o Inter que lhe fez chegar a liderança.  Mas aproveitemos o caldo que a história vai nos dando. 

Na ausência do brilho técnico, de jogos memoráveis, de times que dão gosto de ver, já não podemos dizer que nosso futebol anda totalmente sem graça. Por mais que  essa graça tenha um quê da emoção que costuma nos ser oferecida num jogo de bingo. Daquelas que todos começam a se olhar quando vários jogadores estão esperando uma última pedra. Ou estaria exagerando? O que me leva a aceitar a afirmação feita dia desses pelo glorificado Carlo Ancelotti que - dizem - colocará em breve todo seu conhecimento a favor da Seleção Brasileira. Disse ele que ganhar é a única maneira para se avaliar um técnico. Que tenham isso em mente Abel Ferreira, Tite, Pedro Caixinha, e todos os que por ventura tenham condições de chegar lá. Ainda que eu creia que eles saibam de cor e acreditem cegamente nessa teoria.

Eu, de minha parte, acho que a coisa não é tão simples assim, mas sabidamente tenho perfil de quem enxerga tudo de forma mais complexa. Sou , por isso, instado a acreditar mais no que disse certa vez Frida Kahlo, ao sugerir uma fórmula para se tornar invencível. Rir. Isso mesmo, rir.  Disse ela: rir, não como os que sempre ganham. Mas como aqueles que não se rendem. O que me fez ver que esse pode ser um jeito bom de encarar as imensas decepções e glórias que este Brasileirão está prestes a ofertar. 


quinta-feira, 9 de novembro de 2023

O jeitinho argentino



Costumo brincar com meus amigos dizendo que se a Argentina tivesse vencido a Copa de 2014 muitos dos hermanos estariam em Copacabana comemorando até hoje. Se tivessem vencido a Libertadores no sábado idem. Gosto de imaginar a cena. Um tipo com jeitão portenho, uma já surrada camisa da seleção, pele vermelha do sol, deixando transparecer intimidade total com a praia e, claro, pronto pra falar de futebol com quem chegasse perto disposto a isso. É uma licença poética , mas que diz muito sobre do que são capazes. Algo que, de certa forma, elucida o jeito deles de torcer. Infinitamente mais vibrante do que o nosso. Tão vibrante que aos poucos foram me convencendo de que podem nos ensinar muito a respeito. 

E, olha, como costumo brincar também, venderam caro aquela Copa para os alemães. Não fosse o tal de Gotze achar aquele gol na prorrogação, sei não.  A recente decisão que fez deles campeões mundiais também foi um espelho disso. A França mesmo oscilando e não mantendo a pegada que tanto impressionou no início do Mundial  era páreo duro. E mesmo fazendo uso de todos os recursos possíveis, inclusindo aí um afiado Mbappé, acabou sucumbindo diante dos argentinos. Por essas e outras vejo neles algo que parece nos faltar faz tempo. Poderia dizer que é uma competitividade, mas não é só isso. É uma questão anímica. Um certo dom para dar alma às grandes batalhas e a certas páginas que o futebol desenha.  Fazendo muitas vezes, no meu modo de ver, essa coisa de dizer que somos o país de futebol soar prepotente. 

E talvez seja por isso que pra nós uma final contra um time argentino jamais soará como uma final qualquer. E isso nunca se reduzirá ao velho discurso da rivalidade que, como já disse, muitos exploraram sem pudor na ânsia de esquentar transmissões. Assim como costumamos dizer que esse ou aquele escrete argentino não anda com o time afinado como teve em outros tempos. Seja como for na hora em que a bola rola a garganta dá um nó porque sabemos que, seja como for, nada tornará a missão mais fácil. No mais, somos muito parecidos. Irmanados que estamos nesta nossa América. Ameaçados pela inflação. Desiludidos com a constatação de que nossos países poderiam muito mais. Igualados também pela sombra de uma certa extrema direita que nos torna outro tanto iguais. 

Sem contar que a final da Libertadores nos mostrou ainda uma outra semelhança: um certo despreparo para lidar com o futebol quando ele vira um grande evento. Mas bagunça na hora de decidir um título continental é coisa que manchou tempos atrás o futebol europeu também. Mas por estas bandas, não sei, a coisa se mistura a um certo descaso. Enfim, ficamos parecidos, inclusive, quando o futebol revela seu lado mais perverso, mais bárbaro. A essa altura pode soar descabida essa espécie de ode aos argentinos, depois de torcer para que a maneira de pensar o futebol defendida por Diniz triunfasse. E se triunfou justamente sobre eles, isso sem dúvida alguma amplificou a graça da coisa. E provou também que nos momentos em que o futebol revela seu lado nobre os argentinos podem muito. Disse Diniz horas depois do triunfo sobre o Boca - ao se vestir novamente de técnico da Seleção Brasileira - que talvez esteja na hora de admirar mais quem é bom do que quem ganha. Mas aí, nesse caso, lhes digo eu: não é pra tanto.