quarta-feira, 28 de novembro de 2018

O futebol é inocente

Há um texto de José Saramago intitulado O fator Deus. Nele o escritor português vai nos fazendo ver que quase todas as grandes atrocidades cometidas pelo homem foram feitas em nome do divino. E, no entanto, Deus está inocente, diz Saramago lá pelas tantas. O paralelo pode soar estranho, admito. Mas é que com o futebol se dá algo parecido. Em nome dele se comete absurdos imensos. E nos dois casos o universo de homens é infinitamente maior do que o daqueles que em nome de um, ou de outro, decretam a direção, o tom que terá a adoração. Em um estádio, por exemplo, uma imensa maioria se comporta de maneira minimamente civilizada, mas bastam uns poucos vândalos para dar outro rumo à história. 

Não se trata obviamente de querer que torcedores rivais se tratem por vossa excelência. Fato é  que nos dois universos os males que nos acometem dão a impressão de que andam aí desde sempre. Não há um mínimo sinal de evolução. No último final de semana o adiamento da partida decisiva da Copa Libertadores depois do ônibus com o time do Boca Juniors ter sido atacado por torcedores do River Plate na chegada ao estádio Monumental de Nuñez, em Buenos Aires, foi tido como uma vergonha mundial. Assim o classificou um dos principais jornais argentinos. Era a final mais importante do continente. O impacto foi enorme. Mas atos semelhantes acontecem quase rotineiramente. Não era preciso pensar muito pra se chegar à conclusão de que, depois do ocorrido na capital argentina, não havia mais condição de jogo. 

Mas a decisão do adiamento demorou uma eternidade para ser tomada. Desde o princípio  me convenci que depois daquilo seria impossível voltar a existir uma condição plena de igualdade entre os dois times. É como se nas atitudes em nome de Deus ou do futebol certos valores se fossem anulados. Ou melhor, é como se nesse contexto valores da maior grandeza tivessem seus sentidos diluídos permitindo que outros, muito menos nobres, lhes tomem o lugar. Ou quando se vê um garoto desferir um tapa na cara do adversário, como se viu em uma das semifinais da Copa do Brasil sub20, não estamos assistindo uma prova clara disso?  

Digo mais, não faz muito tempo se falou aos quatro ventos que nosso futebol, enfim, não toleraria mais os insultos dos jogadores aos árbitros. Coisa que se fez tão comum, tão trivial. Num primeiro momento dá pra dizer que o comportamento mudou um pouco. Os avisos foram constantes, mas visivelmente estamos de volta ao comportamento de antes.  E esse é só um pequeno sintoma. Sei que não falta por aí gente que acredita, sempre acreditou, piamente, que o futebol é uma guerra. Outro dia mesmo ouvi isso dito por um treinador consagrado. 

Talvez ele se defenda dizendo que era só uma figura de linguagem. Sou até capaz de entender, desde que na hora de orientar seus jogadores nos vestiários ele os lembrem de que a guerra jamais legitimará indecências. Esse lado impiedoso, cego, ausente de valores exposto pelo futebol me incomoda cada vez mais. Por outro lado, nunca deixei de estar ciente, como diz um sábio amigo, de que o grande barato do jogo de bola é o homem por trás o jogo. E isso explica todo o caos do mundo e dos gramados. Do alto dos meus pecados minha fé me diz , que apesar dos pesares, como sugeriu Saramago a respeito de Deus, o futebol também segue lá inocente de todos os atos cometidos insanamente em seu nome.

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