quinta-feira, 16 de março de 2023

Valeu, Romualdo !



Eu conheci isso aqui quando era tudo mato. É bem provável que em algum momento você tenha ouvido a frase que abre esse artigoOuvi muitas vezes. Confesso a vocês que evito usá-la. Sei que as pessoas não têm culpa alguma de terem vindo ao mundo depois de nós. Como evito usar uma outra, aquela sacada quando nos deparamos com alguém que vimos nascer. O famoso...te peguei no colo. Fiz essa abertura porque queria fazer uma homenagem e pra isso serei obrigado a relembrar um tempo em que ali nos arredores da Rua Quintino Bocaiuva, em São Vicente,  se não era tudo mato, era quase. A Quintino, hoje é uma via de tráfego impiedoso. Mas nos idos dos anos oitenta era uma rua larga de terra. Permitia que a fizéssemos de campinho para travar boas peladas. 

A bola, em geral, era uma dente de leite. As vezes, uma de capotão, que não tardava a ter seu couro corroído pelas pedras do que imaginávamos um gramado. Mas havia um senhor, dono da imobiliária que ficava do outro lado da linha do trem, na Marechal Deodoro, que mais de uma vez deu ao jogo de bola da molecada da minha rua um ar de gala. O senhor era ninguém menos do que o árbitro Romualdo Arpi Filho, falecido no último dia 04 , que não tardaria a viver seu auge profissional apitando uma final de Copa do Mundo. Da primeira vez que a coisa se deu, foi o Zé Carlos, que nunca mais vi, um moreno de pernas tortas que batia um bolão quem chegou botando pilha em todo mundo.  Depois da pelada, a meninada toda empoleirada no muro, ele fez o anúncio: Romualdo tinha prometido trazer uma bola. Imaginem só. Uma bola oficial. 

Entre o olhar cheio de brilho de uns e o olhar cheio de descrença de outros se passaram umas semanas.  Eis que um belo dia o Zé Carlos, que desde sempre tinha chamado pra ele a responsabilidade de sair batendo de porta em porta no início da tarde convocando a molecada pro jogo, trazia embaixo do braço a tal bola presenteada pelo Romualdo. Nunca uma pelada na Quintino tinha tido ar tão nobre.  A entrega tinha se dado em uma segunda-feira e Romualdo tinha dito que a bola era a que tinha sido usada no clássico do domingo. Houve, por esse motivo, quem tivesse sugerido que com uma bola daquela o melhor seria ir jogar na praia. A areia seria infinitamente menos agressiva àquela maravilha. E realmente a Quintino tinha pedra que não acabava mais. Não havia nem bola nem tampão do dedão que ficasse intacto. 

Não faz muito tempo tinha ligado para o Romualdo. Iríamos fazer um programa especial no final de ano e queria tê-lo como convidado. Com elegância me disse que preferia declinar. Considerava que seu tempo tinha passado. Tentei não apelar.  Não consegui. Antes de me despedir saquei as minhas memórias de moleque. Não teve jeito. Lembrando agora me alenta o fato de, ao menos, ter podido dividir com ele tais lembranças. Os mais velhos do que eu, os que viram tudo com mais mato do que eu, dizem que Romualdo, com seu corpo franzino, não teve vida fácil na várzea. Já não importa. Importa é deixar um obrigado a Romualdo por ter dado bola para aquela garotada que antes de receber o presente dele achava que era igual a todas as outras. 

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