quarta-feira, 19 de setembro de 2018

Perdendo a cabeça



É difícil imaginar qualquer arte sem um mínimo de improvisação. E nem sonho que o futebol um dia volte a ter a alma do jazz, por exemplo, em que a improvisação lhe cumpre quase o papel de alma.  Não estranhe se digo que seria uma volta pois estou convencido de que o jogo de bola um dia foi exatamente isso. O que deve ter se dado para valer quando os espertos ainda não tinham visto nele uma mina de dinheiro. Mesmo depois disso o futebol não deixou dúvida de que tinha esse dom preservado. Ou alguém aí imagina que um Garrincha se dava ao trabalho de ensaiar seus dribles antes de aplicar os mesmos com cruel severidade. Os mais doutos talvez façam questão de me lembrar que o homem das pernas tortas  tinha consigo um repertório de dribles ate limitado, coisa com a qual estou inteiramente de acordo. Mas seria descabido afirmar que não era capaz de usar cada um deles com a riqueza que um músico como Miles Davis era capaz de tratar certos esquetes, dando-lhes uma aura de frescor e ineditismo. Renovando-os de tal forma que o público jamais se cansava deles e jamais ousaria interpretar os tais como mera repetição. 

Se já andamos dando de cara até com jogador que se recusa a comemorar um gol, o que estaria faltando?  Nunca me convenci do argumento, por exemplo, que justifica dar um cartão amarelo para o jogador que depois de viver um dos momentos mais esperados do futebol decide tirar a camisa. Claro, o patrocinador não quer numa hora dessas ser colocado para fora da festa. Ocorre que praticamente sempre que o autor de uma proeza dessa natureza é perseguido pelas lentes no instante seguinte, seja para uma foto ou para uma filmagem, está cercado pelos companheiros, todos vestidos,  o que de alguma forma garante a não exclusão de quem pagou para colocar a marca no uniforme. Se um dia todos eles resolvessem comemorar de torso nu a história mudaria de figura. Aliás, falta até hoje uma boa matéria com os jogadores explicando mais profundamente a simbologia desse ato de tirar a camisa.  


Quando no último sábado o jogador do Ceará Samuel Xavier pra comemorar um gol  foi em direção à sua torcida e ao dar de cara com o mascote do time cearense lhe roubou a cabeça da fantasia para extravasar toda sua alegria, por um momento imaginei que alguém tinha, enfim, conseguido driblar a caretice. Que ingenuidade a minha. O árbitro não tardou a mostrar-lhe o cartão amarelo.  Colocou o mascote em risco ? Ora, só se ele não pudesse ter a identidade revelada. Excluiu o patrocinador do momento? O árbitro diria depois, citando a regra, que ele cobriu a cabeça. Mas a regra deve ter sido pensada para casos em que se usa uma máscara. O que poderia virar manifestação política.  Em última instância o dono do apito puniu foi o improviso, tão raro, tão capaz de dar outro sentido às conquistas. De quebra diminuiu um pouco a chance de algo novo se dar aos olhos daqueles que insistem em assistir a um jogo de futebol. Estamos fadados, pelo visto, aos dedos apontados para o céu com olhar de súplica, aos dedões na boca imitando chupetas, àquele gesto de ninar ou, pior de tudo, aos coraçõezinhos esboçados com indicadores e polegares.  Resta torcer para que o futebol  vez ou outra faça a boleirada esquecer a regra, perder a cabeça.  

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