quinta-feira, 22 de fevereiro de 2024

A voz do Doutor



Na última segunda Sócrates Brasileiro teria feito setenta anos. No meio de toda a saudade provocada pela data me peguei com a cabeça nas nuvens. Fiquei imaginando como seria se o Doutor estivesse aqui. E que vontade de que ele estivesse. O que me fez flertar com muitas dúvidas. Mas o que ao mesmo tempo provocou em mim uma certeza: a de que se o Magrão estivesse entre nós haveria festa. E das boas. Talvez fosse celebrada na paulistana Ria Livraria, na Vila Madalena, que o tempo tratou de fazer a mais legítima substituta da velha Mercearia São Pedro, onde tive o privilégio de passar muitas noites com esse lendário camisa oito cercado de amigos. E é daí que trago tal certeza. O Doutor adorava celebrar a vida, que acabou lhe sendo breve. 

Ele partiu. O país se dividiu. A democracia passou a ser atacada. A correr perigo. A democracia da qual ele, de certa forma, passou a ser sinônimo. A democracia que ele tratou de plantar com seus iguais no árido chão que sustenta nosso futebol. E foi disso tudo que as dúvidas que andei alimentando nasceram. Pois me peguei imaginando, não é de agora, como nosso velho Magrão teria encarado as últimas páginas da nossa história. O que teria dito. De que forma teria defendido sua maneira humana de encarar o mundo. A quantas andaria a paciência dele com esse nosso jogo de bola. O que diria dos livros sendo alterados em nome de novos ditames. Como teria seguido na sua brava resistência. 

Pra mim Sócrates é meio Belchior, dessas figuras que o tempo só vai agigantando. 

Sabendo do papel que o Doutor chamou para ele, não foram poucas as vezes em que me peguei admirando sua figura e pensando comigo em segredo que aquele cara devia ter voz, muita voz. Devia ser ouvido. Por isso pra mim havia ali, além do prazer da companhia, o alento de saber que o programa que fazíamos juntos cumpria essa função, como cumpria a revista na qual ele publicava seus artigos semanais. E era interessante notar como as pessoas paravam para ouvir o Magrão. Presenciei isso muitas vezes, mesmo estando na mesa de um bar onde todo mundo costuma falar ao mesmo tempo. Mas aí ele embalava num assunto qualquer e, aos poucos, as pessoas à sua volta iam prestando atenção, prestando atenção, até que em dado momento todos eram só ouvidos. E era possível notar, então, um quase silêncio pra lá de reverente. 

E isso quando ele tramava um papo qualquer, não quando ele sacava da memória uma história vivida nos gramados - ou em seus arredores - por esse mundão afora. Aí seria covardia. Seria fácil explicar qualquer encantamento. Entre os amantes do futebol bem jogado acho que tá pra nascer alguém que não gostaria de ter escutado uma história de bola contada por Sócrates Brasileiro, ainda mais em tom um tanto íntimo. O Doutor virou nome de prêmio social da revista France Football, nome de esplanada em Ribeirão Preto, cidade que fez dele. A data de seus setenta anos rendeu manchetes. Sua figura foi reverenciada. Partilhei a saudade com alguns de seus velhos amigos que me foram deixados de herança e hoje também são meus. E ao lembrar disso enquanto batucava estas linhas devo ter deixado escapar um sorriso porque meus devaneios acabaram por me convencer de que o Magrão segue na área e ainda tem voz.   


*Artigo escrito para o jornal "A Tribuna" , de Santos /SP

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