quarta-feira, 18 de outubro de 2023

Do que é feito o futebol



Era uma tarde chuvosa. Dessas que costumam deixar a cidade mais silenciosa e por isso a algazarra se fez ainda mais fácil de notar. Foi o árbitro apitar o final do clássico contra o Palmeiras e os gritos ecoaram por todos os cantos. Nem todos politicamente corretos, mas deixando transparecer sentimentos desses que costumam ficar presos na garganta. Uma euforia dessas que a gente costuma ver quando um time conquista um título. Fato é que que naquela tarde os santistas, talvez sem perceber, podem ter sido brindados com sensação tão valiosa quanto. Afinal, vai saber do que é feito o futebol. Cansamos de ouvir por aí muitas vezes que ganhar um clássico é como ganhar um campeonato. Pode não se tratar só de figura de linguagem. 

Mas é dessa essência do jogo que quero falar. Quatro rodadas atrás, ou mais precisamente antes de Marcelo Fernandes assumir o comando técnico, o Santos era um time sem alma.  E isso, ouso dizer, era mais assustador do que a falta de resultados. E em matéria de futebol faz tempo que os insucessos são instintivamente relacionados com a falta de dinheiro. Na temporada que estamos acompanhando mesmo, Flamengo e Palmeiras são cobrados e vistos com indignação porque apesar do astronômico faturamento não brilham, não vencem. Por isso Marcelo Fernandes representa neste momento também um triunfo sobre todo esse discurso. Conseguir fazer pairar no ar a possibilidade de que o futebol a essa altura não esteja subjugado a grana é muita coisa. 

Só ele saberá a receita exata na qual apostou. Mas sou levado a crer que nela deve haver ingredientes como paixão ao ofício, determinação, confiança e mais um sem fim de coisas que jamais irão constar em planilhas contábeis. Lembro bem de ver o zagueiro Marcelo Fernandes em campo. Na época eu era um repórter em início de carreira mas que vivia colado no time santista. Se eu escrevesse aqui que era um craque estaria carregando na tinta. Mas Marcelo sempre foi em campo o que é hoje. Um cara que vibra, que dá a vida pelo time, que jogava pro time. E que soube desde sempre que o futebol é feito de outras coisas que não exatamente o requinte. Arrisco dizer mais, talvez tenha desenhado uma trajetória que o convenceu desses valores ao suar na várzea e mais tarde ter ido viver o futebol nem sempre em times fartos de glamour. 

Que os santistas não se iludam. O Bragantino será adversário dos mais duros. O internacional idem. E nisso está a beleza do que tem sido visto. Tempos atrás o Santos estaria entrando em campo já um pouco batido. Não é mais o caso. E tão importante quanto isso é não esquecer, sejam quais forem as alegrias que o destino reserve aos santistas, que o clube foi levado até à beira do abismo por quem o comanda. Há maneiras e maneiras de perder um jogo. O Santos andava perdendo da mais lastimável. E blindado aqui dessas euforias que podem se revelar traiçoeiras eu vos digo que se Marcelo Fernandes e aqueles que com ele chegaram - o experiente preparador físico, Carlito Macedo - conseguirem fazer o Santos seguir onde sempre esteve terão feito um trabalho memorável. Poderão legitimamente comemorar como quem ganha um título. E mesmo sem vaga na Libertadores, ou seja lá o que for, sou levado a acreditar que estarão felizes, se sentindo cumpridores do dever porque no fundo sabem, nunca esqueceram, do que é feito o futebol.

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