quinta-feira, 20 de outubro de 2022

Devaneio sobre a decisão



Era uma vez um articulista que vivia em desacordo com o tempo. Queria o que o andar da impressão não deixava. Vira e mexe acalentava desejos de escrever sobre os jogos de quarta que o inabalável deadline não permitia. A tecnologia podia ter dado conta de muita coisa, mas ainda não havia estreitado o espaço de tempo entre a entrega de um artigo e sua publicação a ponto de lhe saciar a vontade. E quanto maior o jogo, maior a obsessão. Não foram poucos os momentos em que saciou esse desejo escrevendo pelas beiradas. Driblando declarações que poderiam datar o texto e fazê-lo soar ultrapassado pela manhã. E aquele bendito Flamengo e Corinthians, sobre o qual toda a crônica já falava quando ele inconformado sentou para escrever, o faria levar tudo até às últimas consequências. Em desacordo total com a situação que o enredava resolveu ser fiel a rebeldia que nunca tinha deixado de cultivar. Tratou, então, de exercer o direito de imaginar o que o Maracanã veria poucas horas antes de seu texto amanhecer estampado na página da seção de esportes. 

Depois do jogo de ida, quando o time carioca deu a impressão de ter conseguido cozinhar o Corinthians e esfriar os ânimos da fiel torcida sempre inquieta e barulhenta, intuiu que o tão propalado favoritismo rubro-negro tinha se confirmado. Não deixou de levar em conta que  já tinha visto muito jornalista passar vergonha por ter abraçado cegamente o óbvio, quando o que havia se dado era o improvável. Isso na época em que uma coisa dessas marcava um jornalista pra sempre. Mas não conseguia enxergar o time corintiano atual capaz de, diante de um Maracanã lotado, encenar uma façanha dessa. Na Libertadores mesmo jogando em casa o time alvinegro tinha sido abatido por dois gols. Dessa vez tinha saído ileso. O time de Vitor Pereira podia ter se mostrado mais maduro. Mas ainda assim não seria para qualquer um encarar a maturidade desse time do Flamengo, farto em matéria de talento. 

Se não fosse a noite de Arrascaeta, poderia ser a de Everton Ribeiro. Se não fosse de nenhum dos dois poderia vir a ser de Gabigol, ou de Pedro. E esses nomes soavam desde sempre como antídotos eficientes contra essas surpresas que o jogo de bola costuma pregar. Seria preciso mais do que um Cássio, que costuma se agigantar nessas horas para calar o Maraca. Imaginou o time de Copas do Flamengo onipresente nas capas de jornal. Nas capas dos portais. Sorrindo, como quem diz: que venha a Libertadores. Mas não achou impossível que o Corinthians mesmo assim pudesse vir a fazer uma apresentação dessas da qual a torcida se orgulha. Cássio não iria tremer. Nem Renato Augusto. Enfim, mandou o ponto final. 

Respirou fundo. Clicou em cima do enviar. Levantou da cadeira. Tratou de cuidar das tarefas cotidianas porque a noite seria de decisão. Por um instante se deixou tomar por um certo receio de como tudo aquilo iria soar. Mas no segundo seguinte sorriu pra sala vazia certo de que mesmo se o enredo imaginado viesse a se revelar infinitamente distante do que  viria a acontecer estaria ali, estampada em poucas linhas, a prova de que nem a mais astuta mente até hoje se revelou capaz de antever o que pode um jogo de bola. E que quanto mais inesperado fosse o enredo mais estaria fortalecida essa verdade.  


* Artigo escrito para o jornal " A Tribuna", de Santos - publicado em 20/10/2022 

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