quarta-feira, 15 de dezembro de 2021

O tempo passa, torcida brasileira

Abro estas linhas já pedindo desculpas pois o conteúdo das tais pode não passar de um efeito colateral da idade. Tomo a liberdade de florear assim o que de modo raso poderia muito bem ser chamado de coisa de ranzinza. Sei que a crônica esportiva dá o tom. Orienta o olhar do torcedor sobre as as tramas que se desenham nos gramados. Mas algumas questões ligadas ao universo do futebol ainda me intrigam. O número de gols que decreta uma goleada é uma delas. A esse respeito vou contar uma história rápida que vai esclarecer como trato a questão. 

Era eu um repórter novato, que um dia foi mandado à capital para cobrir a reta final de um Campeonato Paulista.  A missão era pesada.  Cobrir um Santos e Corinthians. Ter na mão um microfone da TV Globo. Fazer matéria pro Globo Esporte. Agora, mais pesado do que isso era a responsa de trabalhar com o velho Reynaldo Cabrera, simplesmente um dos cinegrafistas mais icônicos da TV brasileira. Uma lenda.  Cabelos brancos. Pra minha felicidade o homem gostou de mim. Gozava de um prestígio imenso. Nunca esqueci uma cena da equipe descendo na viatura da TV a avenida que liga a Doutor Arnaldo até os fundos do Pacaembu e o Cabrera de mão pra fora cumprimentando e sendo reverenciado por um mundo de gente que descia a avenida também em direção ao estádio. 

O jogo acabou com placar de três a um, que eu chamei de goleada. Um desavisado. No outro dia estava eu sentado na redação quando vejo o Cabrera apressado passar por ali. O cumprimentei, perguntei se estava tudo bem. Ele parou, disse que sim, abriu um sorriso e em seguida emendou: tudo em ordem, mas goleada é quando se tem três gols de diferença. Nunca esqueci. Recordo de ter conversado sobre o assunto muitos anos depois com o mestre Michel Laurence. Pra quem três a zero também era a conta. Há quem diga que é preciso quatro. Não duvido que o tempo tenha alargado essa conta. 

Como não me importo de ser um cara das antigas. Outra coisa que pode ser fruto da minha formação é um desacordo com a maneira atual de se tratar a nomenclatura das conquistas. Pra mim, bi ou tri, ou tetra têm de ser seguidos. Essa coisa do time ganhar um título anos atrás e depois voltar a ganhar novamente não merecia esse tratamento. Ganhar três campeonatos seguidos nunca será o mesmo que ganhar três campeonatos ao longo de alguns anos.  A impressão que tenho é que isso foi mudando ao longo dos tempos. Quando se lê, por exemplo, a respeito dos anos 1930 quando o Flamengo interrompeu a sequência de títulos cariocas do Fluminense, no ano seguinte quando o time das Laranjeiras voltou a ganhar ninguém rotulava a sequência como se fosse uma coisa só.  

O título da Seleção Brasileira no México, e toda a euforia que o cercou, me dá a impressão de ter contribuído muito pra essa mudança. Era, e é, o Tri. Não tem jeito. Mas pra mim um time que ganha espaçadamente não pode ser visto e nomeado - outro exemplo -  como o São Paulo da primeira década dos anos dois mil que conseguiu a façanha de conquistar o concorrido Brasileirão três vezes seguidas. Não se trata de diminuir o que alguns conseguiram, mas sim de reconhecer adequadamente o que fizeram outros. No fundo dois temas bons pra uma conversa entre amigos. No fundo, talvez também, só um jeito de perceber que o tempo passou.  



* Em homenagem à memória de Reynaldo Cabrera 


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