sexta-feira, 3 de setembro de 2021

Sobre homens e fantasmas



Há um fantasma que ronda inevitavelmente os que têm esse meu ofício. A possibilidade sempre presente de o tema escolhido caducar, ficar velho. Sem falar nas impossibilidades decretadas pelo espaço necessário entre o fechamento do jornal e o momento em que ele chega até suas mãos, ou sua tela. É pra lá de cruel saber que um jogo à noite dará o que falar, que seria material farto e quente para um encontro com o leitor pela manhã, mas o horário do fechamento não permite que se fale dele.  E assim está posto um jogo em que farejar um tema se revela tão desafiador quanto descrevê-lo com algum talento. 

Digo tudo isso para , de certa forma, justificar Pep Guardiola como personagem destas linhas. Talvez um feito dele como treinador não soasse tão perene quanto a postura dele sobre coisas que estão muito além do campo. E foi por causa delas que resolvi deixar de lado esse eterno dilema sobre o quanto um assunto pode se manter vivo. Não sei se viram mas dias atrás ao participar de um evento , digamos, de mercado, foi contundente. Disse não se interessar por outras formas de ganhar dinheiro que não seja com seu trabalho e arrematou o raciocínio dizendo que essa coisa de ganhar dinheiro dormindo não é c
om ele. 

E não foi só , se mostrou incomodado com os mecanismos sociais que insistentemente tem tornado os pobres cada vez mais pobres e os ricos cada vez mais ricos. Claro que tudo isso soou ainda mais contundente em razão do espaço em que essas coisas foram ditas. É fato que se ele não as tivesse dito um número infinitamente menor de pessoas teria ficado sabendo da tal palestra. Teria sido uma estratégia de desconstrução de quem a pensou? Talvez. Mas seja como for o tempo vai passando e Pep Guardiola vai se fazendo uma figura cada vez mais interessante.

Com uma sensibilidade rara para interpretar tudo que o cerca. Nesse mesmo evento reconheceu a importância do ego, normalmente tão mal dito. Ressaltou que as pessoas , seja em que área for, têm necessidade do reconhecimento. De alguma forma é a semente que provoca um trabalho bem feito. As medidas e os métodos são uma outra história. Podem colocar tudo a perder. Guardiola, pode parecer exagero eu sei, me parece a prova do quanto a formação de um homem é decisiva  na qualidade do seu jogo.  Se é que me entendem. 


Em futebol, especialmente, muitas vezes sem querer carregamos e alimentamos uma crença de que tudo se explica pelo talento, pelo dom. E não é bem assim. Há nesse catalão, um apuro, um comportamento que nos dá dá impressão de alguém, que mais do que qualquer outra coisa, quer é se ver desafiado. É isso que o move. Me deu essa impressão ao sair da Espanha para a Alemanha. Depois ao se transferir para o futebol inglês. E pelo que disse na tal palestra, pelos elogios ao futebol brasileiro, ao que tivemos de melhor, ao que sempre foi o espelho da excelência que um dia tivemos, que continua procurando novos horizontes. 


Deixou claro que dirigir uma seleção seria um jeito de ir além.  Ainda que tenha dito que as grandes seleções raramente terão um treinador de fora, deixou no ar que mesmo sabendo disso, ou considerando essa possibilidade, não é para ele algo distante. E não deve ser mesmo.  No fim fiquei com a nítida sensação de que trazer Guardiola para dirigir a seleção brasileira é infinitamente mais inviável pela mentalidade tacanha dos nossos cartolas do que outra coisa qualquer. 



* artigo escrito para o Jornal "A Tribuna", Santos /SP

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