quarta-feira, 19 de fevereiro de 2020

Um romântico ao avesso


Pra ser franco quando eu era moleque o mundo da bola não ia muito longe. Quando o comparo com o de hoje, povoado por uma molecada mais interessada nos grandes clubes da Europa, percebo que ele era mesmo pequeno como eu, como cada guri que dividia comigo e com os amigos as emoções de uma pelada.  Em certos momentos até encolhia, sua fronteira não passava do bairro. Isso quando não se limitava à rua de trás, que na verdade não era bem a de trás, era meio a do lado, onde reinava um esquadrão que se apresentava sempre com uma mistura fatal de malandragem e habilidade. 

Vencê-lo pela habilidade era até possível, difícil era equilibrar a malandragem. Lidar com a intimidação quando a coisa esquentava. Mas se digo que era um mundo acanhado é por pura licença poética,  talvez melhor fosse defini-lo como do tamanho do nosso país, no máximo um mundo sul-americano. O que, convenhamos, é imenso. Dos craques que estavam do outro lado do oceano desfrutávamos mesmo quando chegava uma Copa do Mundo. E esse encontro só reforçava o deleite que tínhamos com ela. 

Fora disso, em matéria de futebol gringo o que dava pra dizer que pintava na área era um ou outro lance ou notícia dos fora de série, cujo talento nunca encontrou fronteiras. Cruyff, Beckenbauer e quem mais tivesse bola para figurar nesse panteão. Um moleque que gostava de jogar no gol como eu, quando fazia uma boa defesa, tirava um sarro do adversário gritando nomes como Valdir Peres, Leão e, no meu caso, principalmente, Manga! Ele na época mostrava o que sabia envergando a camisa do Inter, de Porto Alegre. Um mundo que chegava ao sul, mas quase nunca ao Norte. E isso talvez dê uma boa ideia dos limites daquele nosso mundo futebolístico de outrora. E se na linha estivesse, fatalmente se ouviria os nomes de Zico, Falcão, Zé Sergio e, caso o moleque fosse meio metido, até um Pelé. Nome que não se devia falar em vão e que quando usei, juro, foi pra tirar onda. 

Mas se você acha que estou falando tudo isso pra cair naquele lugar comum vertendo lamentos pela molecada atual se derreter por um Barcelona ou por um bonitão qualquer desses que frequenta a Premier League está enganado. Tenho aqui um drible muito bem guardado pra lhe dar. Condenar a  molecada ao nosso futebol a essa altura seria castigo dos grandes. E digo mais, o problema não é só saber jogar bola, não. Tenho a impressão de que os nossos jogadores já não lhe seduzem, nem mesmo quando banhados na luz dourada das glórias. O que diz muito.

Posso estar errado, prometo ficar atento e farei questão de dar testemunho se dia desses encontrar por aí um moleque querendo ser um Gabigol e não um De Bruyne. Vou dar uma reparada quando passar perto de um bate bola. Mas jamais vou desistir de tentar mostrar para os que verdadeiramente ocuparão o futuro a beleza de se torcer para a minha estimada Portuguesa Santista, ou apontar aos de agora a beleza clássica que se esconde por trás de um jogo do Juventus, da Mooca. 

Aos incomodados com esse desfile de camisas gringas que passamos a ver por aí digo: nunca será pecado gostar do que é bonito. Que eles se deleitem com o véu de fantasia que se derrama sobre as jogadas de Cristiano Ronaldo e companhia, mas que um dia  voltem a descobrir a ansiedade e a curtição de esperar um jogo contra o time da rua de trás.


* artigo escrito para o jornal " A Tribuna", Santos /SP

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