quinta-feira, 21 de março de 2024

A mais pura tradução do jogo

Vou dizer uma coisa pra vocês. Vivo há várias décadas cercado de gente que dedicou a vida a esmiuçar o jogo de bola. Gente com talento reconhecido para tal. O que faz com que eu me sinta um afortunado. E, claro, gosto também de desfiar minhas teorias a respeito, ainda que tenha pra mim que no ofício de apresentador que exerço deva me dedicar mais ao questionamento, a informar, a conduzir conversas situando fatos, colocando-os em seu mais preciso contexto. Mas tenho um apreço imenso pela maneira como o futebol é tratado quando afastado de ambientes ditos profissionais. Nos botequins, nas filas de supermercado. Ai daquele que por ventura se afastar dessa fonte. 

Uma imagem que me vem quando penso nisso é aquela "marra" que o Ronaldinho Gaúcho ficou famoso por usar, sabe? Falo aquela de olhar pra um lado e mandar a bola pro outro. Movimento simples, mas eficaz como poucos. E cuja maior virtude talvez esteja no fato de desconcertar o marcador. Enfim, buscar a tradução de uma imagem, de um lance, olhando pra onde ninguém estava olhando, driblando o olhar comum. O que quero dizer a vocês é que procurar a interpretação do jogo no meio campo do cotidiano é das coisas mais valiosas e mais prazerosas na minha modesta opinião. A alma das boas crônicas que, por este motivo, creio, seduzem tanto. Um jeito legítimo de traduzir o jogo com um viés deliciosamente cru e cruel,  que muitas vezes nem mesmo o mais refinado especialista consegue. 

Sem contar que muitas coisas interessantes ficam pelo caminho. Vejam o caso do Nova Iguaçu que vinha fazendo boas campanhas nas duas temporadas recentes e agora, depois de eliminar o Vasco, irá decidir o título do Campeonato Carioca com o poderoso Flamengo. Li, quase sem acreditar, que seu treinador, Carlos Vitor, está no clube há trinta e dois anos. Lá chegou depois que o atual vice-presidente, na época diretor de futebol, o viu jogando uma pelada nos idos de 1992. Cal, como é chamado, foi jogador por seis temporadas. Virou treinador. Passou  por todas as categorias de base do clube. A começar pelo sub12. Mais tarde foi incorporado à comissão técnica permanente. E aí está, colhendo os frutos dessa trajetória. Personagem que me fez lembrar do britânico, Alex Ferguson, que comandou o Manchester United, da Inglaterra, por longos vinte e sete anos.  

Mas mesmo com essa história singular pouca coisa li na mídia sobre Carlos Vitor, chamado carinhosamente por seus comandados de CalDiniz, ou CalDiola, em alusão a treinadores mais famosos e laureados que ele. E é assim, porque o olhar do jornalista também é treinado, como são os times. Somos todos preparados para executar o que se fez nossa tática. Por isso, adoro ouvir o que se diz por aí, digamos, despretensiosamente. Algo na linha do que ouvi  outro dia um senhor na feira contar em tom de segredo para o corintiano boa praça, vendedor de limão. Disse ele baixinho que, já garotão, tinha trocado de time. Veja só que confissão! Tinha deixado de ser são paulino para virar santista. E o corintiano, naquele tom cru e cruel dos papos informais, abriu um sorriso imenso e sentenciou: "Olha aí,  se livrou de uma eliminação no último domingo, mas não do sofrimento. Tá parecendo eu".

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