quinta-feira, 9 de abril de 2020

O que realmente importa



A frase é das mais lembradas, desgastada até, entre as tantas que o dramaturgo, Nelson Rodrigues, cunhou com imensa maestria. É, inclusive, das mais citadas  no meio esportivo. Falo daquela que decretou certa vez que o futebol é a coisa mais importante dentre as coisas desimportantes. E os que, se dizendo apaixonados pelo jogo de bola, ao longo do tempo se recusaram a admitir a precisão do pensamento nela contido a essa altura tiveram bons motivos para mudar de opinião. Compreendo, era realidade não imaginada  ficarmos todos de uma hora para outra sem um mísero jogo de bola sequer para nos distrair. Mais desafiador que isso para o nosso "modus vivendi" só mesmo a notícia de que a novela das nove, que um dia foi das oito, iria sair de cena. 

Pode parecer cruel de minha parte, dado meu ofício, mas digo que o que a realidade nos impõe neste momento é tratar o futebol exatamente desse modo, desimportante. Pois há um número enorme de coisas verdadeiramente importantes para se cuidar. E a pressão para que a bola volte a rolar não será pequena. Desde sempre os cartolas foram bons nisso, em colocar quem manda no bolso. Não são pequenos comerciantes, se é que me faço entender. E não só a pressão não será pequena como certamente os homens da bola neste exato momento estão tramando e se mexendo para contar com a ajuda do governo, colocando na mesa o velho argumento de precisar equilibrar suas contas desequilibradas por natureza. 

Vejam, se na Inglaterra o cultuado Liverpool - cujo valor de mercado em nossa surrada moeda beira os cinquenta bilhões de reais - andou de olho em recursos de um fundo que tem como finalidade proteger trabalhadores durante a pandemia, e disso só desistiu depois de perceber que a intenção tinha pegado muito mal, imaginem vocês o que não pode se dar por aqui. É bom ficar atento. Principalmente porque o esporte se faz neste momento, como sempre, um espelho fiel da sociedade, onde os abastados terão seus trunfos enquanto aos menos favorecidos restará gritar na esperança de que algo seja feito por eles. Se neste momento o futebol se apresenta como um necessitado pensemos no que não andam vivendo então outras modalidades e seus atletas. 

No mais, se me perguntarem do mar vos digo. Apreciei vê-lo mudar de humor com a beleza ímpar com que sempre o fez. A tragar as areias, a invadir os canais. Como gostei de ver saltar a veia poética de Nelson Rodrigues, o homem que certo dia disse que se negava a acreditar que um político, nem mesmo o mais doce deles, tivesse senso moral. Se estava certo ou não os dias estão aí para desafiá-los. Não que eu tivesse dúvida a respeito da poesia em Nelson. Alegro-me pela constatação, e só. Como escreveu , Nilo Oliveira, sabiamente citado outro dia pelo amigo Marcelo Montenegro," o poeta é o que acerta de raspão - e o tempo se encarrega de colocar o alvo no lugar exato  onde o poeta supostamente errou". Palavras que soam ainda mais perfeitas nessa hora em que precisamos discutir o futebol como a coisa mais importante... dentre as coisas desimportantes

* artigo escrito para o jornal "A Tribuna", de Santos/SP

Um comentário:

André Braga disse...

Infelizmente o texto soa profético. Provavelmente, mais uma vez, de alguma forma o governo prestará socorro financeiro aos clubes. Aos ditos grandes, claro.