quinta-feira, 31 de outubro de 2019

Carta ao Tio Nelson



Estava há tempos para escrever ao senhor. A estima continua a de sempre, diria até que o que tenho visto se dar no nosso  jogo de bola a tem feito maior. Escrever isso me exige certa coragem pois sabendo de seu gênio ácido talvez me diga que ficou desapontado porque não esperava que eu, depois de velho, virasse um bajulador. É que o senhor não faz ideia de como a coisa anda. Aquela beleza insuportável que o senhor usava para descrever certos lances - como aquele do Rivellino pra cima do Alcir num jogo entre o seu Fluminense e o Vasco - é coisa que praticamente não existe mais. Adorei reler  outro dia aquela coisa de que o gol é anterior a si mesmo, que nasce muito antes da finalização pra rede. E os míticos gols de falta? Viraram mosca branca. E quando damos de cara com um é muitas vezes sem aquela trajetória improvável que instintivamente nos fazia unir as mãos como quem ensaia uma oração. 

Outro dia o Zenon foi ao programa, com seu estilo incomparável. É bonito vê-lo até hoje tão vaidoso do futebol que jogava. Orgulhoso de um dia ter envergado uma camisa dez. Mas tenho lembrado muito do senhor principalmente por causa da chegada do tal árbitro de vídeo.  Um calvário infinitamente maior do que a burrice do VT que o senhor identificou tão bem.  Vou me convencendo de que o melhor mesmo sobre o futebol é não vê-lo por inteiro. E é aí que sua lembrança e saudade crescem. Fico lembrando que sua visão não era assim nenhuma maravilha. 

Agora se enxerga tudo. E, creia, quando a câmera em si não basta o sujeito vai lá, dá um toque na tela e saca , como num passe de mágica, um efeito chamado lupa. E eu lhe pergunto, onde já se viu querer ver o futebol com lupa? Isso só podia redundar na mais incômoda das cegueiras. Aproveito pra dizer também que ando relendo umas coisas do seu irmão. Acho uma injustiça que quase ninguém se lembre que o Maracanã carrega o nome dele. Ainda mais agora que o Flamengo o tem feito pulsar lindamente.  Por falar no Mário,  nos últimos meses já reli umas dez vezes a crônica em que descreve o Telê. Sabe, o tempo passou e hoje em dia quando se fala nele é só como o técnico  que levou o São Paulo a conquistar o mundo ou sobre o homem por trás da mítica seleção de 82. Quase nunca sobre o jogador que se garantiu em campo ao lado de gigantes. 

Aí a gente pega o que se escreve sobre o jogo de bola, a gente presta atenção no que andam dizendo dele e acaba com qualquer dúvida. O discurso sobre o futebol virou algo que flerta com científico. Bate uma tristeza.  Mas tio, é isso, não tem como não sentir saudade de quem a gente gosta. Dava tudo pra saber como é que o senhor traduziria esse tal de Jorge Jesus ou o Ganso que anda pagando de xerife lá no seu  Fluminense. E nem vou falar da seleção que tá que é um desquite só com o povão. 

Veja só, essa é outra palavra do seu tempo que quase não ouço mais: Povão! Acho que um dia, bem lá pra frente , um jogador qualquer terá um ataque de sinceridade como o Carille do Corinthians ensaiou outro dia e dirá que jogar esses amistosos com a Seleção era algo insuportável. Ter de viajar para Cingapura, jogar em estádios de futebol americano, ouvir o discurso messiânico do Tite. Mas só uma coisa une o tempo que foi teu e esse agora, a capacidade humana de suportar o cotidiano com doses mínimas de sinceridade.

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