sexta-feira, 31 de outubro de 2008

O futebol e a memória

Faz tempo que ouvir que "o brasileiro tem memória curta" me causa certo mal estar. Não considero a frase verdadeira e acho pouco inteligente ajudá-la a se propagar. Afinal, quem é que mediu a memória de quem vive no estrangeiro pra chegar a essa conclusão?

E tem mais, sempre achei que há um mecanismo na memória que a faz funcionar em mais perfeita sintonia quando atrelada aos nossos sentimentos. É muito mais fácil guardar aquilo que nos tocou de maneira profunda.

Em geral - e para provar que não somos tão curtos assim - guardamos aquilo que nos emociona. Isso explica porque fulano é capaz de lembrar por décadas o resultado de um jogo, um gol, um trecho de um poema, uma jogada, as palavras de um amigo.

Há coisas que simplesmente se perdem e isso nada tem a ver com a memória. Talvez, esse raciocínio explique porque na semana que passou até ouvimos falar de Garrincha, que se estivesse vivo teria comemorado seus setenta e cinco anos. Há algo mais emocional no futebol do que as jogadas do nosso anjo de pernas tortas?

No entanto, não vi ninguém comemorar por aí o Dia da Criação do Futebol. É meu amigo, foi num dia 26 de outubro, o de 1863, que um grupo de ingleses se reuniu em uma taverna para criar a The Football Association, e com ela as tais dezessete regras que há muito tempo passaram a fazer parte das nossas vidas, e que continuam gerando discussões infinitas, por mais que um ex-árbitro tente nos convencer de que as benditas são claras. Turvas são nossas idéias.

Mais correto, então, seria dizer que o brasileiro tem o conhecimento curto. E aí, quem sabe, eu poderia até concordar, e mais do que isso, me incluir. Quantos no futuro lembrarão que certa vez Washington ergueu a mão e ludibriou o arqueiro do Palmeiras? Quantos lembrarão que o juiz deixou de dar aquele penalti escandaloso para o Santos na partida contra o Grêmio? Há detalhes da história que são feitos para se perder no tempo.

Outros, ao contrário, nascem perpétuos. Que corintiano apaixonado esquecerá como se deu a tal volta à primeira divisão? Emoção, meu amigo. Pura emoção. É o que eu digo. Um momento, que mais cedo ou mais tarde, me permitam tal previsão, estará estampado nas páginas de um livro. E poucas coisas ajudam tanto a nossa memória quanto um livro.

E não falo isso pra levar adiante aquela pompa de que quem lê é mais inteligente, tem memória melhor. Nada disso. Falo do livro como o baú do acontecido. Como um mundo de páginas onde a experiência humana se reflete. Como um universo singular onde podemos recordar ou tomar conhecimento de muita coisa que o homem foi capaz de criar.

Ontem, por sinal, foi o Dia nacional do livro. E o que me deixa feliz é que nos últimos tempos tenho tido a sensação de que o futebol anda cada vez mais presente nesse campo. E isso, um dia, quem sabe, será nosso trunfo para arejar a memória e rebater o argumento daqueles que ousarem dizer que o brasileiro é curto de conhecimento.

Seja como for, duvido que por esse mundo afora haja tanta gente com histórias para contar sobre o jogo de bola quanto nós.


* artigo escrito pra o jornal "A tribuna", Santos

quinta-feira, 23 de outubro de 2008

O juiz esta nu !

Vida de juiz nunca foi fácil e a modernidade a tornou pior. Mas não ache que a do torcedor melhorou. No começo a onipresença da TV criou o replay. Invento terrível e admirado. Depois dele nunca mais tivemos o prazer de ficar na arquibancada sem a sensação de estar perdendo alguma coisa.

Aí vieram as câmeras invertidas e suas posições estratégicas, capazes de dar nó na cabeça dos mais distraídos. Sem querer a torcida foi se entregando a essa ilusão de ficar cada vez mais próxima do jogo. Um vício pós-moderno que se alimentava de takes fechados. Um verdadeiro paraíso artificial que foi ganhando cada vez mais cor e definição, e convencendo o torcedor de que era ele que estava se tornando onipresente, quando na verdade corria o risco, cada vez maior, de se tornar um solitário.

Do sofá, ou da poltrona, passou a ser possível ver um senhor roendo unhas na geral, o jogador arrumando o calção na intermediária, o técnico aos berros na beirada do campo. Abençoado por esse olhar eletrônico, o torcedor passou a ver por trás do gol, de cima, de lado, no detalhe. Aos poucos as câmeras foram levando embora uma a uma cada dúvida. E quando o poder das lentes já não surtia efeito o jeito foi convocar o computador. Estava criado o tira-teima. E o juiz lá, sozinho, com seu apito e algumas poucas parafernálias.

Ninguém teve a sensibilidade de sacar que poderia não ser uma boa estratégia imunizar o futebol contra o olhar de cada um. Aos poucos, o nossa maneira de ver, a nossa interpretação, se reduziu a uma simples constatação. Afinal, o que dizer daquela imagem frisada no último domingo no Palestra Itália com a linha do gol exatamente no meio da bola? Como contestar esse e todos os outros flagrantes que temos visto por aí?

Nunca mais poderemos nos confortar achando que se não fosse um erro, um equívoco do juiz, o nosso time teria sido campeão. Nunca mais poderemos dizer que tudo não passou de uma calúnia contra o nosso zagueiro ou atacante. E não me venham com sentimentalismos, não me venham falar em intenções, provocações, sussurros imperceptíveis, porque os precisos juízes do STJD já não têm tempo para gastar com a insanidade de lances que não foram captados.

As transmissões atuais são como um édem oferecido aos torcedores. Um édem que os devotos do pay-per-view podem desfrutar melhor. E os juízes? Ora, os juízes podem padecer um pouco mais no purgatório, como na última rodada.

E se quiseres recordar a sensação de testemunhar uma partida de futebol com direito a interpretações e espaço para a teimosia, vá à várzea, à praia ou a uma pelada qualquer. O futebol profissional está vigiado, virou um Big-Brother, e é cada vez mais um espetáculo pra quem tem a virtude de se render à tecnologia, para quem basta, simplesmente, assistir.

O torcedor anda hipnotizado pelas lentes. Enquanto o juiz, bom, o juiz está nu!

quinta-feira, 16 de outubro de 2008

La garantía soy yo

Quando nos curaram do complexo de vira-lata sem querer nos deixaram vulneráveis à soberba. Para os que procuram explicação na história, quem sabe tudo não passe de uma doce vingança da Guerra do Paraguai, quando Brasil, Argentina e Uruguai se uniram para derrotar o time do ditador Solano Lopes.

Hoje, disputada na bola, a batalha teria outro desfecho já que nessas eliminatórias os brasileiros foram derrotados pelos paraguaios no estádio Defensores del Chaco, os argentinos não conseguiram vencê-los, mesmo tendo como palco o gramado do Monumental de Nuñez, e os uruguaios, de passado tão glorioso, tão pouco foram capazes de combater o nosso vizinho.

O novo herói dessas lutas, é um atacante, atende por Salvador Cabañas. E põe Salvador nisso! Contra a Colômbia, nossa adversária há poucas horas, um chute dele teve o poder de um canhão, garantiu a vitória.

E pensar que andávamos por aí, garbosos, a fazer chacota dos cavalos paraguaios, dos uísques paraguaios. Pudera. Nesse mundão de hoje, quem é capaz de dizer, ao certo, se se trata mesmo de mercadoria fina? Coisa quente!

Dias atrás o presidente do Flamengo jurava estar à frente de um time campeão, já pensava até em festa, mas descobriu de modo amargo que a equipe da Gávea não era tudo isso, ainda que incentivada por outras oitenta mil almas rubro-negras, e no Maraca.

Nós mesmos vimos uma vitória contra um Chile pintado em tamanho maior do que tinha. Um três a zero retumbante. Pensamos estar, então, com um esquadrão afinado.Verdadeiro ou falso? Bom, três dias depois não saímos do zero a zero com a Bolívia. Não teve gol. E o povo no Engenho vaiou.

Depois a seleção ensaiou um discurso de pouco caso com o primeiro lugar da tabela. Desconversou. Importante é garantir a classificação, estar na Copa, disseram. Falso. Seria até bom que fosse verdade, no entanto, pouco provável para um futebol que se acostumou a ser símbolo do que existe de melhor, e que de tão habituado a festas de gala vive cercado de saltos-altos.

Um por um fomos sendo infectados por esse vírus de nariz empinado, do qual só se salvam os que cultivam certos hábitos, como o de torcer por times humildes. Portuguesa Santista, Íbis. Vejam só como trataram o Cabañas na Libertadores. Ninguém o levava a sério. Como um gordinho ousava ser goleador? E lá ia o Cabañas fazendo caretas depois de marcar. Podem dizer que não será assim até o fim, que o time não vai resistir à pressão.

Mas ah! Como o Dunga queria estar lá, no topo. Seria um escudo perfeito contra todas as perguntas indigestas que um técnico da seleção nacional tem que driblar.

É, senhores, o Paraguai, das mercadorias pouco confiáveis, o paraíso dos produtos arrematados por preço baixo é, por hora, e até terminar o próximo verão, o líder das eliminatórias. Líder verdadeiro.

E Cabañas - aquele de quem os santistas se lembram muito bem - pode dizer, de peito estufado: “La garantía soy yo”.

sexta-feira, 10 de outubro de 2008

Arbítrio

A carta abaixo foi publicada no "Painel do Leitor" da "Folha", na última quarta-feira.


"Ao retornar de viagem ao exterior, onde tomei conhecimento da forma como foram feitas as eleições para o COB, quero expressar minha absoluta insatisfação pela maneira como o pleito se deu. O fato de eu ter sido incluído na chapa não significa que concorde com a maneira ilegítima como ocorreu a Assembléia Geral. Li que outras confederações também repudiaram as eleições e com elas solidarizo-me.Quero igualmente reiterar que sou contrário à candidatura do Rio de Janeiro (ou de qualquer outra cidade do Brasil) aos Jogos Olímpicos de 2016 por achar que nosso país tem problemas sociais gravíssimos a serem resolvidos antes de realizar evento de tamanha magnitude.Além disso, há que se notar que o TCU não aprovou as contas dos Jogos Pan-Americanos de 2007, e, sendo assim, emitir uma medida provisória que destina R$ 85 milhões a uma candidatura que certamente será derrotada é uma afronta ao povo."

ALBERTO MURRAY NETO , árbitro da Corte Arbitral do Esporte em Lausanne e membro do Comitê Olímpico Brasileiro (São Paulo, SP)

quinta-feira, 9 de outubro de 2008

A imagem ou a vida?

Na semana passada usei esse espaço para falar de algo diferente. Fiquei surpreso com o entusiasmo de algumas pessoas, que mais do que gostar do artigo, elogiaram o fato de eu ter escolhido um tema pouco comum. Por isso, seguirei deixando de lado coisas que têm me incomodado muito e que gostaria de dividir com os leitores, como o preço dos ingressos do Campeonato Brasileiro que, sorrateiramente, subiu seis vezes mais do que a inflação no último ano, ou a reeleição do presidente do Comitê Olímpico Brasileiro, Carlos Arthur Nuzman, que convocou uma assembléia às pressas, com presidentes de confederações entrando pelas portas dos fundos de um hotel no Rio de Janeiro. Coisa de deixar muita gente de cabelo em pé.

Mas o tema que escolhi, infelizmente, não poupará vocês dos arrepios. Falo de uma cena registrada no Parque Antártica durante a partida entre Palmeiras e Atlético Mineiro. Um torcedor, sem camisa, está sentado na mureta que separa a arquibancada do fosso que circunda boa parte do estádio. Seu olhar sugere embriaguez ou, melhor, aquele estado de total falta de reflexo que costuma acometer os que deixam de lado a quase ingênua sugestão dos anúncios de bebidas alcoólicas, o tal "beba com moderação".

Lá ele ficou durante um bom tempo, sob dezenas de olhares repletos de deboche ou descaso. Não por acaso aquele homem caiu. Uma queda assustadora, sem movimento algum que pudesse sugerir uma reação ao acontecido. Caiu e ficou, de rosto virado pro chão, cercado de alguns poucos curiosos. Saiu de cena numa maca. Carregado sem muita pressa. Sugerindo a falência das nossas regras e do nosso comportamento. Não houve quem o alertasse, não houve quem lhe sugerisse o perigo, não houve policial que o enquadrasse, não houve organizador que se preocupasse. Não houve nada, só um evidente final trágico.

E lá estava a lente de uma câmera de televisão, sugerindo que acreditar que a lei que impede a venda de bebidas alcoólicas nos estádios funciona - ou faz os torcedores se apresentarem nas arquibancadas de cara limpa - é algo tão sem fundamento quanto acreditar que iremos diminuir a miséria distribuindo nossas moedas por aí.Mas o que eu queria mesmo dizer, diz respeito a condição do cinegrafista.

Quantos momentos dramáticos você já não viu pela TV, sem nem mesmo se lembrar que ali estava um profissional da imagem, aceitando dividir riscos para revelar aos outros parte da realidade? Certa vez, cobrindo um grande rally, depois de andar doze quilômetros carregando equipamentos por uma estrada de terra, paramos pouco antes de uma curva. Pela primeira vez na história da competição alguém iria filmar um capotamento. Ninguém se machucou.

Mas os pilotos, claro, pediram ajuda. Descemos o barranco e fomos até lá dar uma força. Nosso cinegrafista, não. Um dos competidores não suportou a situação e disparou para o câmera, irado:

_ Larga essa porcaria.

A resposta foi seca e profissional:

_Você não é pago pra dirigir? Então, eu sou pago pra filmar.Faz o teu trabalho que eu faço o meu.

É preciso anos de estrada, e muita frieza, para lidar com situações assim. Às vezes, o sentimento fala mais alto, não tem jeito. Muito do que já vimos, só vimos porque alguém, em algum lugar, numa situação limite, foi capaz de lidar com isso.

Pense a respeito. Mas lembre que só um profissional da imagem pode ser absolvido por essa omissão.


* artigo escrito para o jornal "A Tribuna", Santos

quinta-feira, 2 de outubro de 2008

Fui na onda

Não se trata de ser radical. Longe disso. E aviso logo que seu estranhamento diante do tema que vou propor é prova cabal - em tamanho diretamente proporcional – de que o surfe, apesar de toda evolução, ainda está distante de ocupar no cenário esportivo o lugar que merece.

Acho que isso nem é de todo ruim. Uma consciência mais clara de tudo que ele pode proporcionar elevaria a população dentro da água à níveis ainda mais insuportáveis. Foi-se a era sem crowd.

Mas o mar ainda guarda um lugar todo especial para aqueles que se dispõem a cruzar a arrebentação. Um lugar onde o oceano se transforma num espetáculo poderoso e arrebatador, com enormes degraus de água desabando sobre si, criando um mundo de sons e espumas.

Muitos foram os momentos que me vi por lá e agradeci pelo simples fato de poder presenciar tudo aquilo tão de perto. Estar ali exige saber ler o horizonte. É preciso interpretar os sinais que chegam de alto-mar. O oceano nos impõe uma lição de humildade. Só é possível pensar tentar compreende-lo. Vence-lo, jamais. Usar a força é em vão.

Me entristece, mas não me admira, que uma cambada por aí transforme esse esporte em algo agressivo e sem alma. O surfe tem conceitos complexos, é tarefa exigente praticá-lo em sua plenitude. O que eu sei é que o mar guarda tesouros para quem o corteja.

Lembro de ressacas intimidadoras na Praia da Gonzaguinha, em São Vicente, com ondas tubulares e longas. Isso antes que enchessem a orla de pequenos piers e mudassem toda a geografia da baía. Tempos em que pegar jacaré era a grande curtição. Mais tarde vieram as pranchas de isopor, as clássicas Rio-Santos, a descoberta da grande e generosa Praia do Itararé, com o Cantão, a Feiticeira, o Curvão.

Só depois de muita conversa meu pai entrou na onda. Comprou pra gente uma prancha de verdade. Uma monoquilha de bordas grossas e amarelas, que uma namorada de um primo tinha desistido de usar. Era uma autêntica Kameha Meha. Obra do lendário Homero. E por muito tempo xodó meu e do meu irmão.

Diante de tamanho entusiasmo logo tivemos que arrumar outra.

Quem convive mais de perto comigo sabe da veneração que tenho pelo mar, e o surfe é uma maneira nobre de se integrar com ele. Pra mim não se trata exatamente de fazer manobras. Creio que quanto mais competitivo o esporte, mais mercantilista ele se torna. E isso é uma ameaça ao que o surfe tem de melhor, a tradição, a transcendência.

Uma tradição que faz parte da história de Santos, com Osmar Gonçalves, Jua Hafers, Thomaz Rittscher. Uma história, que vejo, está sendo preservada, com atitudes dignas e, ainda bem, constantes. Os pioneiros não se dispersaram e isso é muito bom.

O que me motivou a escrever esse artigo, uma verdadeira ode ao surfe, uma confissão, foi o fato de ter encontrado no último domingo, ali no Canto da Ilha Porchat, um pouco mais no fundo, uma turma de quarentões e cinquentões munida de longboards, dando risada, cantando entre uma onda e outra, lamentando a morte do Paul Newman.

Por um momento voltei no tempo e me enchi de saudade da época em que estar no mar era estar entre amigos.

Eu disse, eu disse, falar de surfe no país do futebol é estranho. Mas, tudo bem, é sempre bom confessar uma paixão.


* artigo escrito para o jornal "A Tribuna", Santos