terça-feira, 27 de janeiro de 2009

Meu Brasil brasileiro

A canoa corre silenciosa pelo rio. O caminho dela é traçado pelas beiradas, porque o que a leva adiante não é exatamente uma remada, o que a leva adiante é um longo remo que, mais do que açoitar as águas busca o fundo. É assim, com a sabedoria dos que levam a vida sem pressa, que o canoeiro transforma força em impulso e lentamente se impõe sobre a correnteza decidida a tomar o rumo contrário.

O rio de Contas, onde navegamos, nasce na distante Chapada Diamantina, e ali parece disparar, como alguém, que depois de uma longa viagem, apressa os passos ao ver tão perto o sonhado destino. Em seu caso o mar. Sentado perto da proa da canoa, tento me integrar a tudo isso, ajudando com um outro remo, venerando a maravilhosa paisagem que nos cerca, e provocando rápidas conversas. Com elas descubro que se tem uma coisa que preocupa um canoeiro, essa coisa é o “buzano”, uma lesma que habita aquelas paragens, e é conhecida entre esses homens como o “cupim da água”. Uma vez instalado no casco o bicho é capaz de acabar com a madeira da embarcação.

Não pensem que me ocupei de toda essa descrição só para diverti-los, nada disso. Queria que vocês dividissem comigo a surpresa com o rumo que a conversa tomou. Paulo, canoeiro, como seus dois irmãos, envaidecido, passou a me contar que um de seus filhos era bom de bola. A pequena cidade da Bahia, em que ele nasceu e por poucos dias me acolhia, nem tem um time de futebol dignamente estabelecido. Mas é impossível passar um dia por lá sem ver uma pelada - daquelas de responsa - sendo travada nas areias.

Paulo me contou orgulhoso também que, Rodolfo, o filho, é cabeça-de-área, como ele. E como ele, carrega a fama de jogador viril. Ele me conta ainda que de tão bom, Rodolfo já foi sondado por um olheiro que tem boas relações em São Paulo e que prometeu colocá-lo no Guarani. A condição pra isso é que é o detalhe. O tal “olheiro” disse que a coisa só iria adiante se ele conseguisse alterar a data de nascimento do garoto. Rodolfo tem 16, mas teria que “ficar” com 14.

Quero acreditar que por ingenuidade - ou por incapacidade de imaginar tudo que a simples troca de uma data poderia acarretar - Paulo me contou que chegou até mesmo a ir ao cartório onde o menino foi registrado com a intenção de fazer o sugerido pelo olheiro. Disse mais, disse que talvez a saída fosse passar a usar os documentos de um irmão mais novo.

Tímido, sugeri apenas que ele não aceitasse a condição porque os problemas futuros poderiam destruir o menino, principalmente, psicologicamente.

Nos dias que se seguiram, em conversas já nem tão despretensiosas assim, descobri que naquela bucólica cidade do sul da Bahia casos de jogadores que partem atrás de um sonho usando a carteira de identidade de um irmão mais novo estão longe de ser novidade.

Nesses dias descobri, orgulhoso, lugares da minha terra onde uma beleza monumental parece ser o princípio de tudo. Às vezes, os descobri entre alguns estrangeiros, que vieram de lugares muito mais distantes do que eu.

O que eles talvez não tenham visto é que o Brasil é o Brasil em qualquer lugar.

segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

Futebol na medida

De todas as coisas que penso sobre o mundo da bola a que mais me faz encontrar adversários é a intolerância que cultivo com os exageros cometidos em nome da paixão pelo futebol. Passei os últimos dias na companhia de um estimado amigo espanhol que, a certa altura, se mostrou perplexo com o fato dos brasileiros praticamente exigirem que qualquer pessoa tenha um time pra torcer.

E olha que Javier está longe de ser alguém que não dá bola para o assunto. Acompanha os fatos que envolvem o Real Madrid, time da cidade em que vive, mas sem deixar de levar em conta que o clube merengue carrega consigo a mácula de ser historicamente ligado ao Franquismo.

Se fosse pra torcer mesmo, diz ele, talvez escolhesse o Celta de Vigo, onde passou boa parte da infância, ou pela Real Sociedad, da cidade de San Sebastian, onde nasceu. No nosso longo papo sobre essas coisas sem boa medida, ele citou, inclusive, o Atletic de Bilbao que até hoje só contrata jogadores bascos, ainda que tenham nascido em uma das três províncias que ficam do lado francês.

Aproveitei para contar a ele algumas histórias, tendo como única intenção esclarecer a quantas anda a relação dos brasileiros com o futebol. Uma delas era sobre um amigo corintiano que toda vez que o filho precisava passar por uma experiência desagradável, como tomar um injeção, por exemplo, tratava de levar junto um distintivo do maior rival.

E outra, sobre um também corintiano, que morando próximo do Parque Antártica, foi praticamente obrigado a frequentar o clube com o filho pequeno. Mas desde sempre disse ao menino que estavam indo ao Corinthians. Um dia o inevitável aconteceu, e o filho disparou:

_ Pai, aqui não é o Corinthians?

E ele, já precavido, dissimulou:

_ Era, mas agora o Corinthians mudou!

As duas estratégias surtiram efeito. E a velha geração conseguiu forjar mais dois corintianos convictos. Quando digo ao amigo espanhol que a coisa mais comum por aqui é ver pais, tios, irmãos, comprarem, logo nos primeiros dias, um uniforme do time do coração para vestir o recém-nascido, ou nascida, sua expressão de espanto fica maior ainda.

Sempre acreditei que muita coisa ruim que vivemos no futebol se deve ao fato de termos deixado que ele ganhasse importância maior do que deveria ou merecia. Javier concorda. Não se trata de ser rabugento, mas que mal pode haver em ter um filho que não optou por se emocionar com o nosso time?

Quem perde a graça de torcer junto, pode muito bem descobrir a graça de torcer contra. E bom senso e boa medida nunca fizeram mal a ninguém, muito menos ao futebol.


* artigo escrito pra o jornal " A tribuna", Santos

sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

2009 !



" Que seja um ano repleto de saúde...
de idéias...de paz...de realizações...de sonhos. "



A todos que passaram e passam por aqui.
Em especial, aos assíduos, e aos que
deixaram a visita registrada em votos cordiais.

Eis o novo

Que grande oportunidade me dá esta folha. Encontrá-los neste dia tão cheio de significado, pouco depois de vermos um outro ano passar a fazer parte do passado. Sejamos exigentes nesse ano que chega. Não exigente de modo mesquinho, como quem pretende organizar, sejamos exigentes com o humano. Vamos exigir outros atos sobre nossos campos, sobre essas arenas verdes com as quais, em breve, voltaremos a gastar horas dos nossos nobres domingos.

Artilheiros, temos muitos, brucutus e pernas-de-pau nem se fala.Temos técnicos durões, disciplinadores, jogadores bons vivants, astros enamorados, bad-boys enrascados. Isso tudo temos aos montes. Mas não deve ser pouco o que queremos tirar desse ano novo. Nele não deve nos bastar um drible abusado, um lindo lançamento longo ou um golaço, isso tudo já temos. Agora, qual terá sido o grande gesto a que tivemos direito depois de tantas rodadas? Teremos tido direito a um? Só um, um de verdade?

Não falo dessas encenações amestradas. Falo de gestos capazes de tocar o próximo. Falo de gestos grandiosos. Não de casos de gases em vestiários, da reeleição de cartolas obtusos se gabando de suas semi-eternidades. Não falo de homens finamente vestidos pra receber um prêmio a mais, ou um prêmio único, ou um primeiro e último.

Que neste ano que chega tenhamos diante de nossos olhos atos dignos para levar com a gente futuro adentro, que sejamos testemunhas de atos nobres dentro de campo e, mais ainda, fora dele. Veja, a vida jamais se resumiu às quatros linhas.

Mesmo as promessas que nascem com esses dias não devem ser modestas. Levar uma vida mais saudável, se alimentar melhor, fazer as pazes com alguém, emagrecer. Essa, aliás, hoje, parece feita sob medida para o fenômeno, Ronaldo. Porque pior do que estar pesado é ser cobrado, lembrado dessas coisas.

O poeta chileno, Pablo Neruda, morreu em 1973, mas deixou um poema chamado “Celebração”, em que se imagina vivendo o reveilon de 1999 para 2000, e um dos seus versos diz : “este número imenso que custou tanto tempo/tantos anos e dias em pacotes”.

É isso, 2009 custou mais tempo ainda, não é justo que queiramos tirar pouco dele. Aos que hoje vão à praia jogar bola, aos que brindarão entre amigos, aos que tirarão o dia para não fazer nada, a todos, não deve bastar chegar ao gol. É preciso querer chegar lá da maneira mais digna, mais humana, mais brilhante possível. E tudo o que precisamos pra isso é um tempo novinho em folha.

Eis o novo. Aí está!



* artigo publicado no jornal "A Tribuna", Santos em 01/01/2009