quinta-feira, 2 de abril de 2020

Ainda a saudade do mar




Se quiserem saber do mar, fui vê-lo.Ostentava a majestade de sempre. Em segredo tramei um sem fim de encontros para, quem sabe, abrandar essa saudade. Um deles imaginei de um jeito que até já tivemos. Dado pouco antes do amanhecer, quando a cidade  dorme mas uma  semi escuridão ainda o veste de mistério. No entanto, decidi pela obediência civil posto que a calmaria dele me soou, antes de outra coisa qualquer, compreensiva. Como se suas águas quisessem expressar  comunhão com estes dias singulares que nos vão sendo impostos. 

Sim, meus amigos, o mar descansava como se só cercado por homens fosse de alguma forma pleno. Havia por ali uns poucos a caminhar, e que eu também fiz questão de mirar de longe. Menos por receio e mais para preservar a aura sagrada do momento. Esperei até um instante em que um caminho solitário se abrisse no jardim da orla, o que se deu, talvez nem por acaso, quase aos pés da estátua de Vicente de Carvalho, o nosso poeta do mar. Notei por ali alguns, que preservando um costume, ou um tipo de entrega que é minha também, não andavam, não tinham o ar de quem tinha vindo para caminhar, apenas o miravam, imóveis, com o olhar cravado num ponto qualquer em direção à linha do horizonte. Ancorados no mar, náufragos em si mesmos. 

E, como sempre, havia neles a transcendência da contemplação. Um misto de confissão e devoção a insinuar que simplesmente mirar o mar pudesse iluminar, revelar algo além da própria paisagem. Como havia ali - ao mesmo tempo - a solidão espelhada num manto quase branco. As areias que uma manhã  mais ficaram sem ver os homens a desenhar sobre elas a velha dança de pés anônimos, ficaram sem ouvir o rufar dos tamboréus que sempre lhe foram tão íntimos. Era tudo ausência e amplidão. Nada de homens a surgir logo cedo para traçar linhas em sua tez granulada que por sua vez decretariam o universo de muitas diversões. Nada daquele burburinho que os homens inevitavelmente fazem nascer quando jogam. Nada. 

Nenhuma bola a quicar ou a desenhar no ar linhas improváveis, sempre capazes de atrair os olhares de distraídos interessados. E essa bem poderia ser uma lição destes dias. A beleza não está no " grand monde" do esporte mundial. A beleza está, ou esteve sempre, ali, à beira-mar, refletida nos homens ensaiando infinitamente movimentos de um jogo que aprenderam a ter para si. E que ao longo de tempo sempre encontraram nestas nossas margens atlânticas um solo fértil, capaz de mantê-los vivos. 

E de que será que falam todos eles agora? Sem poder contar, ou fantasiar, sobre as peripécias que andaram aprontando durante a pelada ou coisa que o valha. Quase todos sedentos de um triunfo qualquer. Neste momento, quando sinto minhas palavras nascerem envoltas em nostalgia e com um certo acento rococó inclusive, bem poderia ser uma lição destes dias também essa comprovação de que sonhar com uma bola nos pés é mais do que mirar todo o circo que disso se fez e que agora estancou. E a prova cabal é que a ausência da praia, essa ponte que nos leva ao mar, nos rouba parte da fantasia. 


* artigo escrito para o jornal " A Tribuna", Santos/SP

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