sexta-feira, 20 de outubro de 2017

Futebol, substantivo masculino


O amigo Celso Unzelte deu a dica ontem no Cartão Verde. Sabemos que o título do livro acima é muito apropriado. O tratamento dispensado ao futebol feminino está longe de ser condizente com sua importância, com sua história repleta de superação. Dias atrás vivi essa realidade ao ter uma dificuldade imensa para conseguir as imagens da final do Campeonato Paulista. Tínhamos a intenção de exibir as tais no Jornal da Cultura. Vejam! A final do Campeonato Paulista! Trata-se de uma invisibilidade que dribla até os mais comprometidos com a causa. Prova disso é termos deixado passar ontem, sem o tratamento devido, a notícia da vitória do time feminino do Corinthians/Audax sobre o Cerro Porteño, por três a zero, no Paraguai. Triunfo que valeu a vaga na grande final do torneio. A decisão, aliás, será no sábado, às nove e quinze da noite, contra o Colo Colo, do Chile, em Assunção.  Aos interessados o lançamento do livro será nesta sexta-feira, entre 19h30 e 21h30 na sala de vídeo do Departamento de História, a FFLCH, da USP, dentro da Cidade Universitária, com direito a bate-papo sobre o tema. E escrevendo agora me veio a lembrança de um texto do Tom Zé que também fala da invisibilidade das mulheres, mas no caso a das animadoras de torcida, não exatamente das jogadoras. Mas é algo de tamanha sensibilidade que faço questão de deixar aqui para a apreciação de vocês. Espero que não tarde o dia em que a imprensa passe a ser mais justa com as conquistas e com  o trabalho do nosso futebol feminino.




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As mulheres invisíveis do futebol - Tom Zé




Quando o cumprimento é dado ao lado esquerdo das arquibancadas, rapidamente as moças que agora lhes ficam à frente se acocoram. É a vez de as outras se levantarem. O esquema é rápido, sincronizado. Mais vistoso, impossível. Mas os jogadores não passam recibo: faz de conta que não existe mulher nenhuma nas imediações.  

A televisão, que filma o ritual dos craques, não pode varrê-las da cena; mas, tacitamente, não estão lá. É o apagão do feminino. Às vezes o sol as torra, nos campos diurnos de Campinas ou Rio Preto. Mas agora, que começa a fazer frio, dá vontade de chamar a campanha do agasalho, em socorro das pobres criaturas, vestidas de quase nada no gelo da noite paulista. Rádio, televisão, jogadores, comentaristas, repórteres de campo, ninguém lhes autentica a presença. Não são nem estão. 

Nunca vi jogador, torcedor, gente de imprensa sorrir pra elas, reconhecer-lhes a atuação comemorativa. Não há denotação que as torne – apesar de mulheres, não é, neguinhos? – partícipes da espécie humana. Elas lembram Ulisses apresentando-se a Polifemo: "Meu nome é Ninguém". São párias hindus, intocáveis, hansenianas, portadoras de maleita, erisipela e contágios. Nada indica que possam ter a mínima pretensão à semelhança concedida pela divindade – semelhança cuja primazia, pensando bem, foi concedida a Adão. 

 Agora, as moças começaram a usar uma peruca vermelha sensacional. Mas o estigma não arreda pé. Ninguém as vê, nem com os cabelos em fogo. A televisão dá closes em belas e feras: tá aqui um moço simpático, ali um velho sem dente, um torcedor mordendo o lábio, um japonês tocando samba. O diabo. Mas a individualização do close, essa caridade de um segundo, não as contempla. Se eu tivesse poder, faria uma campanha para convertê-las em gente como você e eu, leitor. No campo, beijaria a mão de cada uma. Ou faria uma canção pra elas. 


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