Dias atrás recebi a notícia da morte de
Nicomedes Pacheco de Barros. Não sei porque no primeiro momento tentei encontrar uma
maneira de defini-lo, acho que talvez tenha sido o impacto da triste notícia que
tenha exigido de mim um lugar exato para guardá-lo a partir daquele instante. No
meu imaginário Nicomedes ficou meio como um homem do mar, meio como um homem de
praia. Um pouco herói, um pouco lenda. Na foto do acervo pessoal que
acompanhava a notícia de sua partida era possível vê-lo de sunga, e aos pés dele
uma areia um tanto suja, com dejetos, um copo de plástico. Digo isso porque
talvez minha admiração venha um pouco também dessa cumplicidade. Nicomedes,
como eu, imagino, também lamentava que o tempo tivesse maltratado tanto a velha
baía do Gonzaguinha. Em nossas memórias ela ainda é limpa, de águas
convidativas. Na dele infinitamente mais limpa do que na minha.
A morte de
Nicomedes é pra mim também uma ruptura entre o meu mundo e o dos meus avós que
no fim dos anos sessenta desceram a serra pra desfrutar até o fim de suas vidas
da tranquilidade que São Vicente ainda oferecia. Lembro bem de minha avó Lucila
entusiasmada a me contar do que aquele salva-vidas era capaz. Lembro de como
gostava de ver a ele e os amigos atravessando a Baía a nado, o que faziam
diariamente. Se a memória não me traí, uma dessas travessias certa vez acabou em
tragédia com uma embarcação vitimando um dos seus companheiros. Alguns anos
atrás estava remando com meu irmão naquelas águas, coisa que sempre gostamos de
fazer e demos de cara com Nicomedes. Foi a última vez que o vi no oceano. Ele
remava um stand-up e levava à frente uma garota muito jovem. Acenamos, passamos por eles. Em seguida, como não podia deixar de ser,
comentamos a cena, sem resistir à inevitável constatação: Nicomedes seguia inteirão.
Sua ligação com o mar carregarei como exemplo e
inspiração. Até onde pude acompanhar Nicomedes manteve um porte
elegante, invejável diria. Outro detalhe interessante é que
Nicomedes personificava a figura do bombeiro salva-vidas, cujas histórias de
bravura naquela minha época de menino eram conhecidas de todos, tão próximos que
pareciam estar da gente. Muito diferente desses salva-vidas que cruzo hoje pela
praia e, que mesmo levando adiante o nobre ofício, já não fazem parte do meu cotidiano. Como não tê-los na conta de heróis? Dizem que ao longo da vida
Nicomedes salvou mais de mil pessoas de ter o mar como ponto final. Em 2004,
gravei com ele para um programa da TV Cultura. Passamos momentos agradáveis. Pra
mim foi a vida de repórter me dando a chance de preservar um pouco do passado.
Naquele me dia me disse que tinha aceitado um dom já que o primeiro salvamento
tinha feito aos quinze anos sem conhecer nada sobre o assunto. Na metade da
década de cinquenta se encantou com as histórias que ouvia de nadadores do velho
mundo fazendo travessias desafiadoras. Movido por esse encanto realizou uma no
mesmo estilo entre Santos e São Vicente. No ano seguinte, 1955, uma outra, que
contou com a presença de estrangeiros. Um deles o português José Guerra, famoso
por pouco antes ter sucumbido à travessia do Canal da Mancha quando restavam
apenas dois quilômetros. Essa travessia de 1955 teve percurso de trinta quilômetros
entre Guarujá e São Vicente e foi vencida por Nicomedes, que nadou por mais de
dez horas com o corpo coberto de graxa, dessas usadas em máquinas mesmo.
Maneira encontrada para lidar com a temperatura baixa das águas.
Na minha
memória Nicomedes se mistura com as lembranças mais ancestrais. Aos jantares
com meus avós e meus pais no Hirondelle, aos "jacarés" que pegávamos quando o Gonzaguinha ainda não tinha piers e as ondas - vira e mexe - entravam pra valer arrebentando as calçadas, aos almoços de domingo no amplo salão do restaurante Gaudio, aos gritos de rachar da portuguesa que vendia bolinhos de bacalhau nas areias da praia. Naquele nosso encontro há mais de
uma década Nicomedes me contou que em matéria de natação também tinha sido
praticamente autodidata, tinha feito tudo meio na raça, apostando na
musculação, o que gerou muitas críticas na época. Ah! E no fim me
confidenciou que já não tinha mais a medalha da mítica travessia, penhorada
certa vez que o dinheiro ficou curto. Então, só me restou lhe dizer que a memória ninguém
rouba. A nossa, talvez, mas essa que teima em ficar por aí, ninguém
Nenhum comentário:
Postar um comentário