É raro publicar aqui coisas dos outros. Mas como o tema me despertou muito interesse não resisti.De tudo que li, vi e ouvi por aí a respeito dessa discussão em torno das biografias citaria dois artigos. Um deles escrito por Eugênio Bucci. Um artigo que fala sobre o viés da grana nesse bafafá. Como finalizou o próprio Bucci " Quando mercado e democracia entram em choque, a segunda deve prevalecer". O outro artigo foi escrito pelo professor de História Social da Arte, Francisco Alambert. Os dois seguem abaixo para quem se interessar.
Sorry Sigmund
Freud proibiu um ex-paciente de biografá-lo porque, para o psicanalista, a ‘verdade biográfica’ não existia. Ainda bem que outros ignoraram o veto
Francisco Alambert - O Estado de S. Paulo
O professor e pesquisador Paulo de Abreu Bruno, da Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP) da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), foi preso durante o protesto do dia 15 no centro do Rio de Janeiro, enquanto filmava o conflito entre policiais e manifestantes. A filmagem é parte de um projeto de pesquisa, mas ainda assim ele foi enquadrado na Lei 12.850/2013, caracterizado como participante de atos contra o patrimônio público, roubo, incêndio e formação de quadrilha – todos considerados crimes inafiançáveis.
Biblioteca do Congresso/NYT
Não explicou. A história não é só de um
indivíduo, mas de uma época
Concomitantemente a esse fato arbitrário, um grupo ironicamente autointitulado Procure Saber tem dado o que falar, justamente reivindicando o direito de não deixar ninguém saber nada que eles mesmos não queiram que seja sabido, a partir da defesa da proibição de textos que eles mesmos não autorizem. Saber sobre alguém deveria ser, dizem eles, um ato criminalizável, e a vida de um sujeito público pertence a ele como qualquer outra propriedade privada.
O tema, portanto, é urgente e eminentemente histórico – tanto naquilo que revela de nossa época (que confronta superexposição com o desejo de controlar, mesmo por censura, tudo aquilo que se expõe o tempo todo) quanto propriamente historiográfico, uma vez que a biografia, o estudo histórico e crítico do papel do indivíduo na constituição da sociedade e de sua época, é um dos gêneros históricos mais tradicionais. No mundo ocidental, ele começa com Platão e Xenofonte escrevendo sobre a vida de Sócrates e vai, já no período romano, a Plutarco (com sua Vidas Paralelas) ou Suetônio (com os modelares estudos literário-políticos Sobre os Homens Ilustres e A Vida dos Doze Césares), chegando à Idade Média com A Vida de Dante, de Boccaccio.
Mas a questão atual não diz respeito a justificar a existência da biografia como gênero histórico. Essa discussão, aliás, é cheia de interpretações, refutações e distintas posições que vão do desprezo à apologia. A questão atual, do ponto de vista da história, diz respeito a como entender o que é "vida pública" numa época em que a sociedade desenvolveu uma verdadeira obsessão por essa vida e pela sua legitimidade.
A questão é pois o que significa "público" e o que é de interesse histórico e, portanto, de interesse da comunidade. Basicamente, o que define a figura pública não é sua "visibilidade" ou "fama", mas o fato de que ao longo de sua trajetória essa figura (que pode ser "importante" ou "medíocre", tanto faz) deixa rastros, documentos, que por causa da significância dessa trajetória dentro da trajetória histórica de uma comunidade ganha sentido e pode ser narrada, estudada, explicada e interpretada. Nesse caso, o sujeito é "sintoma" de seu tempo tanto quanto é "sintoma" desse tempo o desejo de saber sobre esse sujeito (o tema é muito bem discutido no livro organizado pela psicanalista Fani Hisgail Biografia: Sintoma da Cultura).
Como bem definiu o historiador francês Jacques diz Le Goff em sua biografia de São Luis, o indivíduo "se constrói a si mesmo e constrói sua época tanto quanto é construído por ela. E essa construção é feita de acasos, hesitações, escolhas". Foi exatamente dentro desses princípios que o historiador Paulo Cesar de Araújo escreveu sua excelente biografia de Roberto Carlos, que deu início a essa síndrome atual de nossos poderosos-famosos em criminalizar a história – não a deles exatamente, mas de sua (e nossa) época. A proibição de circulação de um livro válido como esse é uma arbitrariedade do indivíduo contra a história da qual ele é parte.
Certa vez Freud recusou o pedido de um ex-paciente de biografá-lo. Ele argumentava que a "verdade biográfica" não existia. Nenhum historiador contemporâneo sério diria o contrário. Pois não se trata de buscar a "verdade", que em história é sempre falível e precária, mas de procurar explicar um tempo, estabelecendo uma narrativa documentada sobre um objeto que se considera válido como testemunho. E são os historiadores que decidem isso.
Felizmente, o desejo do indivíduo Freud não foi respeitado, e graças a esse "desrespeito" podemos ler as biografias dele feitas por Ernest Jones ou por Peter Gay (biografias aliás muito diferentes entre si e em suas "verdades") e assim aprender a pensar melhor sobre a psicanálise, sobre a sociedade vienense, sobre a ciência, sobre a cultura, sobre o significado dos corpos, da subjetividade, dos desejos. Enfim, sobre tudo aquilo do qual, direta ou indiretamente, somos parte. Quando se prendem professores com câmeras ou se censuram historiadores com suas pesquisas, é contra o direito à cultura e ao autoconhecimento que se está agindo.
FRANCISCO ALAMBERT É PROFESSOR DE HISTÓRIA SOCIAL DA ARTE E HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA DA USP
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Minha vida, meu negócio - EUGENIO BUCCI
REVISTA ÉPOCA
A barulheira gerou um fio de esperança. A reação exaltada contra as declarações de Caetano Veloso, Gilberto Gil, Chico Buarque, para quem os livros biográficos só podem ser publicados mediante autorização dos biografados, foi finalmente ouvida na Câmara dos Deputados. Na semana passada, parlamentares prometeram acelerar a aprovação do projeto de lei que altera o Código Civil para impedir a censura às biografias. Quando tudo parecia sem saída, quando até Chico Buarque, Gil e Caetano, símbolos da causa democrática, cerraram fileiras contra a liberdade de expressão, eis que desponta uma centelha no fim do longo túnel. Depois da treva, uma luz (ao fim da tempestade). Às vezes, a esperança é a última que nasce.
Se os deputados cumprirão a palavra, bem, isso é outra história (outras biografias). Mas uma esperança nasceu. Falta agora nascer a clareza. É realmente incrível. Falou-se tanto, escreveu-se tanto, bateu-se tanto em tantos por tantas semanas, e o entendimento sobre o que está em jogo ainda é tão pouco. A gritaria toda, que ajudou a quebrar a inércia pétrea do Congresso Nacional (ao menos é o que esperamos), não nos trouxe compreensão sobre o verdadeiro impasse.
Não estamos às voltas com forças do mal, que pretendem restaurar a ditadura militar no Brasil. Sim, há quem queira isso.
Mas Caetano, para tomar um exemplo, não é censor nem reacionário. Ele é um democrata, como seus amigos. O problema é que ele defende outra lógica - e essa lógica entra em choque com a democracia. E é sobre isso que deveríamos pensar.
Desde que o inglês John Milton, ainda no século XVII, afirmou o direito fundamental do cidadão de publicar o que bem entender, sem ter de pedir licença ao poder, a livre circulação do pensamento se tornou um dos alicerces das sociedades livres. Primeiro, cada um expressa o que julgar necessário. Depois, apenas depois, responderá pelos excessos que cometer. Acontece que, de uns tempos para cá, o mundo começou a ficar esquisito. Há, hoje, legislações restritivas em toda parte, até no Reino Unido e na França. Não sabemos resolver a contradição entre os direitos fundamentais dos cidadãos, como o direito à informação e à liberdade de expressão, e outros direitos, como à privacidade, que a lei assegura também a todos - e vale dinheiro. A privacidade tem valor econômico. Aí é que está o ponto-chave – e o ponto chato, pois os artistas no Brasil adoram fingir que não pensam no vil metal.
Os ídolos do cancioneiro popular, esses poetas que escreveram as trilhas sonoras de nossa parca existência, não são inimigos da ordem democrática. São gente boa. Apenas estão defendendo o deles. Eles não lutam exatamente pelo resguardo, pelo recolhimento, pelo segredo íntimo. Não se mobilizam pela privacidade neutra, mas pelo direito de ganhar dinheiro quando suas intimidades se tornam públicas. Eis o ponto-chave - e chato.
Nada de errado com isso. Trata-se de um direito deles. Um direito, aliás, de qualquer um, seja pop star, cantor, jogador de futebol ou dona de casa. Se alguém quer transformar sua biografia em entretenimento de massa e faturar com isso, tem o direito de fazê-lo. Reality shows, programas de auditório e revistas de fofoca vivem da exploração das intimidades, assim como, recentemente, começaram também a viver disso as campanhas eleitorais e as igrejas que oferecem milagres pela televisão. Intimidades luxuriantes ou degradantes valem ouro e podem ser compradas pelo ouro.
Ora, se é assim, então, raciocina o advogado da celebridade, por que um reles jornalista pode querer ganhar o dele em cima dos lances encantadores, inspiradores, traumáticos e fascinantes de meu cliente? O ponto é realmente chato.
Para um astro do showbusiness, e principalmente para o advogado dele, os lances de sua vida são parte da obra. Ele vende mais ou menos CDs, atrai mais ou menos fãs para os seus shows, à medida que faça isso ou aquilo na vida privada. Se a cantora anuncia que se casará com outra mulher, agrega um novo "market share" a sua estratégia comercial. Aí, se revelarem que o matrimônio gay foi um jogo de aparência, o faturamento despenca. A receita bruta do cantor romântico depende da exposição estratégica de sua privacidade. A arte também tem seus modelos de negócio.
Estamos vendo de perto, enfim, a contradição entre mercado e democracia. Para faturar mais com suas biografias, algo legítimo, nossos grandes poetas pensaram que poderiam suprimir o direito à informação de todos os demais. Aí é que não deu pé. Quando mercado e democracia entram em choque, a segunda deve prevalecer.
A barulheira gerou um fio de esperança. A reação exaltada contra as declarações de Caetano Veloso, Gilberto Gil, Chico Buarque, para quem os livros biográficos só podem ser publicados mediante autorização dos biografados, foi finalmente ouvida na Câmara dos Deputados. Na semana passada, parlamentares prometeram acelerar a aprovação do projeto de lei que altera o Código Civil para impedir a censura às biografias. Quando tudo parecia sem saída, quando até Chico Buarque, Gil e Caetano, símbolos da causa democrática, cerraram fileiras contra a liberdade de expressão, eis que desponta uma centelha no fim do longo túnel. Depois da treva, uma luz (ao fim da tempestade). Às vezes, a esperança é a última que nasce.
Se os deputados cumprirão a palavra, bem, isso é outra história (outras biografias). Mas uma esperança nasceu. Falta agora nascer a clareza. É realmente incrível. Falou-se tanto, escreveu-se tanto, bateu-se tanto em tantos por tantas semanas, e o entendimento sobre o que está em jogo ainda é tão pouco. A gritaria toda, que ajudou a quebrar a inércia pétrea do Congresso Nacional (ao menos é o que esperamos), não nos trouxe compreensão sobre o verdadeiro impasse.
Não estamos às voltas com forças do mal, que pretendem restaurar a ditadura militar no Brasil. Sim, há quem queira isso.
Mas Caetano, para tomar um exemplo, não é censor nem reacionário. Ele é um democrata, como seus amigos. O problema é que ele defende outra lógica - e essa lógica entra em choque com a democracia. E é sobre isso que deveríamos pensar.
Desde que o inglês John Milton, ainda no século XVII, afirmou o direito fundamental do cidadão de publicar o que bem entender, sem ter de pedir licença ao poder, a livre circulação do pensamento se tornou um dos alicerces das sociedades livres. Primeiro, cada um expressa o que julgar necessário. Depois, apenas depois, responderá pelos excessos que cometer. Acontece que, de uns tempos para cá, o mundo começou a ficar esquisito. Há, hoje, legislações restritivas em toda parte, até no Reino Unido e na França. Não sabemos resolver a contradição entre os direitos fundamentais dos cidadãos, como o direito à informação e à liberdade de expressão, e outros direitos, como à privacidade, que a lei assegura também a todos - e vale dinheiro. A privacidade tem valor econômico. Aí é que está o ponto-chave – e o ponto chato, pois os artistas no Brasil adoram fingir que não pensam no vil metal.
Os ídolos do cancioneiro popular, esses poetas que escreveram as trilhas sonoras de nossa parca existência, não são inimigos da ordem democrática. São gente boa. Apenas estão defendendo o deles. Eles não lutam exatamente pelo resguardo, pelo recolhimento, pelo segredo íntimo. Não se mobilizam pela privacidade neutra, mas pelo direito de ganhar dinheiro quando suas intimidades se tornam públicas. Eis o ponto-chave - e chato.
Nada de errado com isso. Trata-se de um direito deles. Um direito, aliás, de qualquer um, seja pop star, cantor, jogador de futebol ou dona de casa. Se alguém quer transformar sua biografia em entretenimento de massa e faturar com isso, tem o direito de fazê-lo. Reality shows, programas de auditório e revistas de fofoca vivem da exploração das intimidades, assim como, recentemente, começaram também a viver disso as campanhas eleitorais e as igrejas que oferecem milagres pela televisão. Intimidades luxuriantes ou degradantes valem ouro e podem ser compradas pelo ouro.
Ora, se é assim, então, raciocina o advogado da celebridade, por que um reles jornalista pode querer ganhar o dele em cima dos lances encantadores, inspiradores, traumáticos e fascinantes de meu cliente? O ponto é realmente chato.
Para um astro do showbusiness, e principalmente para o advogado dele, os lances de sua vida são parte da obra. Ele vende mais ou menos CDs, atrai mais ou menos fãs para os seus shows, à medida que faça isso ou aquilo na vida privada. Se a cantora anuncia que se casará com outra mulher, agrega um novo "market share" a sua estratégia comercial. Aí, se revelarem que o matrimônio gay foi um jogo de aparência, o faturamento despenca. A receita bruta do cantor romântico depende da exposição estratégica de sua privacidade. A arte também tem seus modelos de negócio.
Estamos vendo de perto, enfim, a contradição entre mercado e democracia. Para faturar mais com suas biografias, algo legítimo, nossos grandes poetas pensaram que poderiam suprimir o direito à informação de todos os demais. Aí é que não deu pé. Quando mercado e democracia entram em choque, a segunda deve prevalecer.
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