Vida? Vida é essa água me batendo na cara antes das seis da manhã, avisando do dia que se aprontou e me espera muito além da porta do barraco porque o mundo é um cabra vexado que não espera ninguém, que não tem uma estação de nome sossego.
Se faz calor o sol não tarda a tirar o suor da pele da gente nesse ônibus lotado. Se frio faz, antes do primeiro passo se instala na nossa alma a sensação gelada de quem tem pouco. De quem tenta barrar o vento com roupa fina de tão gasta. Temperatura baixa que se entranha com facilidade entre os vãos das nossas calças puídas. Sofreguidão com destino certo: o batente.
A obrigação sem direito a bom dia ou boa tarde. Um cansaço que se abate sobre o corpo tal qual prestação que espera pagamento. A comida requentada tragada num canto. Trazida de longe. Comida cujo acompanhamento é um olhar espantado prum mundo muito além desse nosso, um mundo que passa a bordo dos carros, dos ternos, dos luxos fugazes de quase tudo que se compra com o dinheiro que a gente mesmo trabalhando a vida inteira não terá.
Como eu aqui, com os companheiros, não tenho nem sirene pra avisar que a jornada diária chegou ao fim, nem cartão de ponto, nem vale-refeição, nem registro. Entro e saio desse ofício meio marginal sem carteira, sem fundo, sem garantia. Mas somos gente, e gente do bem sempre que chega ao fim de alguma tarefa, mesmo por pura obrigação ou necessidade, sente no peito uma ponta de orgulho. Um gosto bom de ter cumprido um papel. Sentimento que ajuda a voltar pra multidão com alguma ilusão. E isso, acreditem, faz muita diferença.
Faz a gente se dissolver melhor na massa. Eu queria era contar pra mãe dessa vida que essa gente inventou aqui. Uma vida maluca em que se passa os dias sem plantar nada, sem ter horizonte pra olhar e, pior, sem nada pra colher depois de tanto esforço.
Na novela, que a mulher insiste em ver antes de dormir, há um resquício daquele mundo que a gente viu passar nesse transe diário de ir e voltar. Pistas de um mundo que o pessoal aqui ao redor não enxerga como nosso.
E se é dia de jogo, sempre dá pra lembrar com alguma felicidade da vida que existia quando, ainda menino, a gente sonhava que era a bola que nos daria outras possibilidades.
Depois é só um sonho doído. Uma noite que distrai e assusta esse meu corpo exausto, que já não vê madrugada, um tanto judiado por alguns tragos que não consigo abandonar. Um corpo ausente de grandes pecados, ausente da boêmia.
Lá no fundo é como se eu, de tão maduro, não conseguisse esquecer, nem por um só segundo, que antes das seis da manhã, um novo jorro de água voltará a jogar a vida na minha cara.
* inspirado nas " Cartas à mãe" de Henfil
quinta-feira, 17 de março de 2011
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