sexta-feira, 7 de junho de 2024

O abstrato no futebol



Já disse aqui em outras ocasiões que sempre achei muito interessante a capacidade que o futebol tem, ou tinha, de fazer as pessoas comungarem com diversos conceitos que não estão escritos em lugar nenhum. É certo que o mundo se rebuscou um tanto e que já não se vê por aí tantas peladas com os gols marcados , por exemplo, com um par de chinelos. Mas essa é a imagem que eu sempre invoco e volto a lhes dizer a razão. Uma bola rasteira que passe entre eles não deixará dúvida de que se tratou de um gol. Ocorre que o futebol é infinitamente mais complexo do que isso. As bolas , em geral, saem do chão. Traçam linhas cruzadas. De modo que boa parte das vezes, estando num cenário desses, não é coisa fácil dizer o que foi e o que não foi gol. 

Mas é fato também que desde moleque o futebol incutiu no nosso imaginário um jeito de resolver questões dessa natureza que decretava e anulava gols. E as decisões por mais que causassem rebuliço desaguavam num consenso. E esse é o tipo de coisa que as tais orientações recentes trataram de violentar. Quando vieram com essa de decretar que bola na mão dentro da área sempre seria pênalti roubaram do futebol a capacidade que ele tinha de semear em nós esse modo quase instintivo de nos entendermos. Pra embasar essa tese ouso dizer que décadas atrás mesmo os lances mais clamorosamente polêmicos não causavam tanto balbúrdia quanto causam hoje. E os motivos são vários. 

Um deles certamente essa questão de que a maneira de ler o jogo era mais consensual. Some-se a isso o vício estabelecido de esmiuçar os lances atrás de algo que seja passível de contestação. É uma insanidade achar que uma imagem por si irá esclarecer tudo de fato. A quem duvida sugiro lembrar das vezes em que diante de uma delas se viu sem saber ao certo o que pensar a respeito. Aos que não acreditam que pesam sobre o futebol coisas impalpáveis, que pensem no tal do fair play. Tão invocado, tão santificado. Mas que jamais constou das regras do jogo. É um acordo implícito, meio na linha desse que se escondeu desde sempre em nós e ajudou a resolver os bafafás que se davam quando se disputava uma pelada com gols marcados por chinelos de dedo, como diria minha saudosa mãe. 

O futebol propõe questões complexas. Exige levar em conta temas abstratos. Mas ao que parece o andar do jogo vem sendo definido por idiotas da objetividade. Termo que, de tão preciso, vira e mexe faz questão de nos lembrar que continua atual. Pra não dizer renovado. E o futebol é inocente nisso tudo. Ele é só um produto gerado por quem o faz, por quem o interpreta. E os astros que aí estão se estivessem interessados em respeitá-lo não andariam fazendo ceras descaradas, não estariam fingindo contusões, tapas na cara, não estariam cercando árbitros com dedos em riste. 

Diante disso pedir que um adversário se revele um santo porque em determinado lance alguém se viu descaradamente prejudicado é algo que beira a malandragem. E tudo é tão sem pé nem cabeça, vejam vocês, que o árbitro, este senhor que deveria ter o poder de disciplinar os jogadores, fica de mãos atadas porque, afinal, fair play não é algo estabelecido na regra. Enfim, desde sempre pesou sobre o futebol algo que não está escrito em lugar nenhum mas que age sobre o jogo. E é preciso dizer também que houve desde sempre nas peladas de gols marcados com chinelos os espertos que forçavam a barra tentado fazer todo mundo enxergar um gol onde a maioria não via. 

Um comentário:

Anônimo disse...

Perfeito