Há o futebol estabelecido e há o futebol que nos vai na alma, como sugeriu com sabedoria certa vez um dos nossos maiores poetas. O estabelecido anda daquele jeito. E sua realidade mordaz tem sido assunto aqui neste espaço, mesmo porque sem uma ligação com a mais pura realidade cotidiana sem alma acaba ficando a crônica. O que o futuro reserva ao jogo de bola saberemos só quando o cronômetro que solfeja a história andar. Mas do passado já sabemos quais são os frutos. E não são poucos. Há ainda por aí uma geração para a qual o jogo de bola, não é exagero, veio a ser motivo de vida. E não estou falando de nomes como o lendário goleiro italiano Buffon ou do baiano Magno Alves. Os dois já bem pra lá de quarentões e atuando. Falo de gente, digamos, com histórias comuns , ou quase.
Gente como meu estimado Tio Afonso, o boleiro-mor da família. Um boa praça que, entre idas e vindas, e muito preparo de um pasto de berinjela destinado ao pós -jogo, não pensa em aposentadoria. Esteve em campo, dando aquela distribuída na meiúca, do alto de seus oitenta e dois e anda encarando a fisioterapia com disciplina de dar inveja, convencido de que o joelho vai parar de reclamar dessa insistência. Até infiltração já encarou pra ter condição de atuar. E se digo que temo pelo futuro do jogo é por estar convencido de que é a prática que alimentou desde sempre tudo isso. E pelo que vejo ela vai , ainda que aos poucos, esmorecendo. Já não há espaço. Na maior parte das vezes a bola rola em campos de society.
O barato de jogar num campo de verdade, com suas dimensões desafiadoras, vai virando coisa pra iniciados. Mas abençoado seja o society, a praia, e os terrenos baldios ainda não encampados por construtoras que, seja como for, ainda nos fazem acreditar que o futebol seguirá arrebanhando novos adeptos e ajudando a manter os antigos. Essa vontade de render homenagem aos resistentes me veio depois de ter dado de cara com a notícia de que no Suriname uma figura singular havia se tornado o jogador mais velho a atuar profissionalmente. Não sei se viram essa.
Ronnie Brunswijk, aos sessenta anos e cento e noventa e oito dias, vestiu a camisa do Inter Moengo Tapoe, pela Liga da Concacaf. À parte o que a história pode conter de vaidade trata-se de uma pérola. Ainda que o tal seja o Presidente e dono do clube poderia ter ficado de fora. Mesmo porque não se tratou de uma apresentação honrosa. O time dele foi goleado por seis a zero. É fato que se trata de um sujeito para lá de controverso. Foi segurança de um ditador que governou o país, chegou ser condenado na Holanda por tráfico de cocaína e no final do jogo em questão apareceu distribuindo dinheiro no vestiário adversário. Vai entender.
De qualquer forma por um instante fui convencido de que se trata de um desses casos em que o futebol não sai da pessoa. Seja como for em matéria de amor pelo futebol sou muito mais o meu tio cuja história é, além de tudo, infinitamente menos controversa. Do ponto de vista da coordenação motora jogar bola esconde uma complexidade considerável. Em outras palavras, machuca mesmo. Por isso quis render tributo, jogar alguma luz sobre a paixão que o cerca e ainda faz muito pelo futebol. Já que pelo viés oficial ele tem honrado pouco os apaixonados por ele.
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