Eram duas turmas de garotos, entre tantas que aqueles anos guardavam. Cada uma delas com um time pronto para encarar um "contra". Era assim que se denominava um embate que se desse com alguém que não estava entre os seus. Pois na maioria delas havia meninos suficientes para formar bem mais do que um esquadrão. Talvez o termo seja usado até hoje, não sei. Envelheci. Entre elas uma se destacava. Não só pelo futebol mas porque tinha a seu favor - e a favor de sua fama - um campinho singular. Ficava no terreno de uma obra temporariamente abandonada. O lugar havia sido escavado. Por isso, para alcançar o campo de jogo era preciso descer um barranco. E uma vez lá os candidatos a craque se viam cercados por altas paredes de terra. Soava como uma Bombonera feita de barro.
Um lugar intimidador, mas com boas traves, campo marcadinho, portanto, sedutor também. Coisa rara. Logo, a lista de desafiantes era imensa. O dono da casa era o Pirelli. Não lembro a razão, mas imagino que pelo fato de naqueles tempos o nome ser quase sinônimo de equipe bem sucedida graças a um time de voleibol que com suas conquistas se fez lendário. O dia do embate contra eles custou a chegar e deu frio na barriga da molecada. Era lugar pra se pisar miudinho. Outro detalhe era que o campinho que ficava na Rua Visconde do Rio Branco, quase na esquina com a Avenida Presidente Wilson, em São Vicente, onde hoje está o Edifício Ariane, sempre tinha torcida. Fato que por si faz aumentar a temperatura de qualquer jogo.
Quando o duelo se deu teve como destaques nosso centroavante, um cara alto, desengonçado e destemido. E um meio campista adversário, que era o fino. Jeito de moleque de rua, futebol de Lorde. Naquela tarde longínqua não teve chuva grossa nem fina, nem chuva de gols. O embate terminou em zero a zero. Esse mísero placar nascido para driblar os desavisados. Naquele dia aprendi que nem sempre a ausência de gols é sinônimo de pobreza. O que é verdade custou algumas divididas duras e metade da ponta do dedão direito. Barato. Andei lembrando disso tudo ao pensar na bola que não tem rolado e no atual interesse da meninada pelo jogo, que acredito já foi infinitamente maior.
Sou de uma época em que o futebol era, disparado, a brincadeira-mor da maioria dos garotos. E, dessa forma, cada um deles se fazia - se fez - legítimo para interpretá-lo. Afinal, o vivido e as divididas iam elucidando o peso de cada momento. O peso de ser condenado à sentença cruel de levar uma bola entre as pernas, a euforia de ser alçado à condição de herói depois de marcar um gol de longe vendo a bola entrar no ângulo. A descoberta empírica, crua, de que ninguém volta para casa igual depois de uma grande partida, seja profissional ou não. Nossa brincadeira-mor, antes de tudo, nos fazia descobrir o que pode provocar em alguém a simples possibilidade de uma vitória, ou derrota, com ares épicos. E tudo isso , mais do que me fazer compreender, me fez entender essa onipresença do futebol na nossa cultura, na nossa vida. Além do mais, depois de pisar numa Bombonera de barro como aquela seria um pecado se render à velha miopia que vira e mexe insiste em reduzir o jogo a vinte e dois sujeitos correndo atrás de uma bola.
* artigo escrito para o jornal " A Tribuna", Santos/SP
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