quarta-feira, 18 de março de 2020

Um salve à torcida



Eis que em muitos campos em que a bola ainda rolou nos últimos dias o torcedor precisou estar ausente. Motivo de força maior. Talvez seja o caso de  aproveitar o momento e fazer uma reflexão sobre a importância dele. Embora em matéria de esporte as casas cheias sejam nos dias atuais artigo raro. E mesmo quando enchem já não têm o vigor que tiveram um dia.  O  tempo passou e elas trataram de se adequar. Encolheram, deixando para trás uma parte da história em que os torcedores de futebol nas arquibancadas podiam ser contados aos montes, muitas vezes bem pra lá dos cem mil.  Dava  gosto de ver.  

Mas o torcedor sempre foi um maltratado apesar de ser, de certa forma, a alma do espetáculo. Aproveito a deixa que os fatos me dão porque faz tempo que se faz muita coisa em nome do futebol, por exemplo, que é a grande locomotiva do segmento, e quase nada pensando nele. E, é óbvio, existe um abismo entre o fazer em nome dele e para ele. Para o torcedor, então, há décadas não se faz nada, se é que um dia verdadeiramente se fez. Não à toa ele se afasta cada vez mais. O mínimo seria preservar o espírito do jogo. Não ter a cara de pau de  muitas vezes diante dele praticar esses esquemas mequetrefes cheios de toques de lado. 

A sensação que tenho, e não é de hoje, é que se nada for feito no futuro teremos algo muito parecido com o que acabamos de ver.  Não tardará e ao olhar para trás o que veremos será a  distância que nos separa do apogeu do jogo de bola aumentando. A prova  é que hoje em dia muita gente quando revê a imagem de um Morumbi abarrotado, fervilhando com um sem fim de bandeiras, acaba tomado por uma nostalgia de dar dó. 




Não duvido que o mercado com seu poder e fome gigantescos consiga viabilizar tudo sem depender de ter torcedores presentes ao local do jogo. A realidade que acabamos de ver é um vestígio dessa possibilidade. E se houve jogo foi antes de tudo para honrar contratos, ou não? Compreendo a necessidade, mas ela só torna mais claro o papel secundário do torcedor nessa engrenagem. Destratar aquele que ainda se entrega o ato de torcer in loco é destratar o próprio jogo.  Como cuidar de um de um seria cuidar do outro. 


Quando se impõe que só vê uma partida quem paga pra ver, ou quando se condena aqueles que não podem pagar uma tv a cabo a assistir semana após semana as partidas de um time que não é o dele - e é quase sempre o mesmo - passa a ser ingenuidade esperar que o futebol um dia volte a pulsar com um dia pulsou ou que volte a ter a importância cultural que despejou sobre ele toda essa majestade. 


Não fosse o mundo a nos avisar do perigo do coronavírus muito provavelmente ninguém por aqui teria tido o cuidado de não deixá-lo correr riscos. Afinal, o negócio da bola pode um dia  deixar de depender do torcedor mas até lá seu dinheiro suado seguirá sendo bem vindo. Gostaria muito de ver essa ausência forçada da torcida fazer de alguma forma cair a ficha. Escancarar que sem a torcida pode até dar pé, mas jamais será a mesma coisa. Enquanto isso vamos vendo se distanciar na fieira dos dias os estádios com mais de cem mil, os campos de várzea vencidos pela fome imobiliária, as peladas travadas nas ruas, o tremular de imensas bandeiras. 


* artigo escrito para o jornal " A Tribuna", Santos/SP

Nenhum comentário: