quinta-feira, 26 de março de 2020

Saudades do mar ( ou Crônica do dia em que o mundo parou)


Praia do Sangava

O mar tem em minha história pessoal papel dos mais importantes. Não fosse ele acredito que até minha relação com o esporte seria outra. Por exemplo, a primeira imagem que trago comigo depois de ter descoberto o surfe não é de uma manobra, nem de uma onda. É a de sentir minhas narinas tomadas por um ar  impregnado de sal. Em meio a uma imensidão de espumas brancas, tentando chegar a algum lugar, envolvido por uma água de tom verde, que esse meu mar infelizmente foi perdendo ao longo do tempo. Uma memória que tinha tudo para ser de pânico mas que eu trago comigo como se tivesse sido uma benção suave. Depois o que veio foi uma comunhão com ele que eu não canso de renovar.  

Antes disso tinha andado me divertindo em outros recortes das mesmas águas, fazendo aulas de remo que eram ministradas na sede náutica do Clube Tumiaru, que ficava no bairro do Japuí, no caminho da Praia Grande. Um envolvimento que poderia ter sido mais duradouro não fosse a dificuldade pra chegar lá naquele tempo. Nada a ver com o fato de o professor - Ari - também ser na época meu professor de matemática, nem com a exigência de uma grande disciplina. Quem pensava em chegar e ir logo desfrutando do prazer de remar se dava mal, caia logo na real.

As aulas, que iniciavam antes das seis da manhã, começavam com os pretensos remadores tendo de dar conta de um sem fim de cuidados que a embarcação exigia para, na sequência, encarar uma dose de ginástica capaz de deixar pelo caminho qualquer um que não tivesse realmente disposto. Mas a sensação do barco com quatro remadores deslizando na flor da água, numa cadência sinfônica e quase silenciosa nunca esqueci. Como jamais esqueci que em uma das aulas passamos por baixo da Ponte do Mar Pequeno no exato instante em que ela estava sendo  inaugurada. Lembro bem do estampido dos rojões bem perto dos nossos ouvidos. Curioso, fui ver a data em que o fato se deu. Dezembro de 1981. Eu tinha acabado de completar quatorze anos. 

Houve também um tempo em minha vida em que a grande diversão era mergulhar, praticar apneia, curtição que fez o destino de muitos dos meus domingos ser a praia do Sangava, onde chegávamos de manhãzinha e só saíamos de cena quase junto com o sol.  O tempo passou. E, mesmo mais distante, o mar segue sendo para mim como uma igreja. Queria ter aprendido mais. Até hoje pouco sei dos ventos. Gostaria muito de saber já que é um jeito de entender seus humores.  Mas o mar, modestamente, aprendi a ler. Com a humildade que se deve dispensar ao tentar compreender as coisas indomáveis. 

Não faz muito tempo ouvi o navegador, Amyr Klink, fazer uma observação que tem a ver com tudo isso. Disse ele que uma coisa é gostar do mar e outra, infinitamente diferente, gostar de praia. Olhando para mim hoje vejo que viver nestas margens atlânticas me fez gostar dos dois, ainda que ciente do quão o mar é mais profundo. E se divido com vocês tudo isso justo quando os dias nos roubaram o circo esportivo e vieram nos impor esse quase flagelo é porque até agora nada mexeu mais comigo do que ver essa nossa praia sem viva alma.

* artigo escrito para o jornal " A Tribuna", de Santos/SP

quarta-feira, 18 de março de 2020

Um salve à torcida



Eis que em muitos campos em que a bola ainda rolou nos últimos dias o torcedor precisou estar ausente. Motivo de força maior. Talvez seja o caso de  aproveitar o momento e fazer uma reflexão sobre a importância dele. Embora em matéria de esporte as casas cheias sejam nos dias atuais artigo raro. E mesmo quando enchem já não têm o vigor que tiveram um dia.  O  tempo passou e elas trataram de se adequar. Encolheram, deixando para trás uma parte da história em que os torcedores de futebol nas arquibancadas podiam ser contados aos montes, muitas vezes bem pra lá dos cem mil.  Dava  gosto de ver.  

Mas o torcedor sempre foi um maltratado apesar de ser, de certa forma, a alma do espetáculo. Aproveito a deixa que os fatos me dão porque faz tempo que se faz muita coisa em nome do futebol, por exemplo, que é a grande locomotiva do segmento, e quase nada pensando nele. E, é óbvio, existe um abismo entre o fazer em nome dele e para ele. Para o torcedor, então, há décadas não se faz nada, se é que um dia verdadeiramente se fez. Não à toa ele se afasta cada vez mais. O mínimo seria preservar o espírito do jogo. Não ter a cara de pau de  muitas vezes diante dele praticar esses esquemas mequetrefes cheios de toques de lado. 

A sensação que tenho, e não é de hoje, é que se nada for feito no futuro teremos algo muito parecido com o que acabamos de ver.  Não tardará e ao olhar para trás o que veremos será a  distância que nos separa do apogeu do jogo de bola aumentando. A prova  é que hoje em dia muita gente quando revê a imagem de um Morumbi abarrotado, fervilhando com um sem fim de bandeiras, acaba tomado por uma nostalgia de dar dó. 




Não duvido que o mercado com seu poder e fome gigantescos consiga viabilizar tudo sem depender de ter torcedores presentes ao local do jogo. A realidade que acabamos de ver é um vestígio dessa possibilidade. E se houve jogo foi antes de tudo para honrar contratos, ou não? Compreendo a necessidade, mas ela só torna mais claro o papel secundário do torcedor nessa engrenagem. Destratar aquele que ainda se entrega o ato de torcer in loco é destratar o próprio jogo.  Como cuidar de um de um seria cuidar do outro. 


Quando se impõe que só vê uma partida quem paga pra ver, ou quando se condena aqueles que não podem pagar uma tv a cabo a assistir semana após semana as partidas de um time que não é o dele - e é quase sempre o mesmo - passa a ser ingenuidade esperar que o futebol um dia volte a pulsar com um dia pulsou ou que volte a ter a importância cultural que despejou sobre ele toda essa majestade. 


Não fosse o mundo a nos avisar do perigo do coronavírus muito provavelmente ninguém por aqui teria tido o cuidado de não deixá-lo correr riscos. Afinal, o negócio da bola pode um dia  deixar de depender do torcedor mas até lá seu dinheiro suado seguirá sendo bem vindo. Gostaria muito de ver essa ausência forçada da torcida fazer de alguma forma cair a ficha. Escancarar que sem a torcida pode até dar pé, mas jamais será a mesma coisa. Enquanto isso vamos vendo se distanciar na fieira dos dias os estádios com mais de cem mil, os campos de várzea vencidos pela fome imobiliária, as peladas travadas nas ruas, o tremular de imensas bandeiras. 


* artigo escrito para o jornal " A Tribuna", Santos/SP

segunda-feira, 16 de março de 2020

Da série..." das antigas"









quinta-feira, 12 de março de 2020

A Seleção, a torcida e o coronavírus



Há uma melancolia a rondar nossa seleção. Sei que até o momento de sentar na cadeira na Sala de Imprensa da CBF na última sexta-feira o técnico Tite deve ter tido muito trabalho. Alimentado muitos dilemas.  É do jogo. Mas para além do grande serviço que a fase do Flamengo tem prestado ao futebol brasileiro gostei de vê-la ajudar também a dar um brilho diferente ao escrete nacional. Horas antes da convocação pipocavam manchetes falando a respeito da expectativa que cercava os jogadores rubro-negros. Não era para menos. E vou dizer que entre os muitos rubro-negros tidos como candidatos praticamente todos eram merecedores de uma vaga. Mas ter lá Gabigol, Bruno Henrique e Everton Ribeiro tá de bom tamanho. Duvidava até que Tite viria com essa dose, pra ser sincero. 

Claramente há uma questão mercadológica nas convocações sobre a qual ninguém fala. Além do mais a opção por um jogador envolvido com grandes competições, inserido num centro onde a exigência técnica é infinitamente maior, servirá sempre como um grande argumento a favor dos que atuam no exterior. Um calendário menos surreal, sem conflitos de datas - como a CBF promete - seria fundamental e teria inevitavelmente como efeito colateral testar a ousadia de quem dirige a seleção. 

Na minha visão quando se atravessa um momento como o atual, de uma relação totalmente fria entre os torcedores e a seleção, contar com jogadores que atuam por aqui  dá a impressão de uma certa aproximação. Cria-se um apelo. Quando o time comandado por Tite entrar em campo para encarar a Bolívia, no Recife, e enfim der o primeiro passo à singular Copa do Qatar, estará envolvido por uma áurea diferente. Mas sabe-se lá quando isso vai acontecer pois o coronavírus já adiou o início dos jogos. O nome Eliminatórias bastaria para dar peso ao momento , mas há outro desafio nesse contexto, pessoal.  

Para Tite a sequência do trabalho, que temos visto ir da unanimidade à desconfiança, pode ganhar ares de redenção. Não foi por acaso que durante a entrevista coletiva pós-convocação o treinador  fez questão de se comparar a ele mesmo à frente do escrete e dizer que está ciente de que a melhor seleção brasileira que vimos com ele foi justamente a das Eliminatórias passadas. O que significa dizer que espera ver, no mínimo,  o time com aquela pegada. Não me entendam mal, não penso em loucuras. Apenas na possibilidade de tirar algum proveito do que o futebol brasileiro  anda oferecendo e assim, quem sabe, alterar um pouco essa realidade opaca. 

Caso o coronavírus permita  - e tomara que permita - não tardará e voltaremos a dar de cara com uma desgastada Copa América. E, se nada de relevante acontecer, com essa relação entre seleção e torcida mais desgastada ainda. Um adiamento pode mudar muita coisa. E também não custa lembrar que convocar é uma coisa colocar alguém para jogar, outra, bem diferente. 


* artigo escrito para o jornal "A Tribuna", Santos/SP

quinta-feira, 5 de março de 2020

O futebol não tem cura

                                       


Em matéria de futebol sou um cético absoluto. Não falo do jogo jogado. Falo das engrenagens que o movem. Pra dar uma ideia do tamanho do meu ceticismo sou o tipo que torce o nariz toda vez que ouve alguém tratar com entusiasmo a administração flamenguista. Apontada aqui e ali como exemplo. Mas sobre ela pesa um entusiasmo que considero não combinar com um clube cuja dívida no ano passado passou de 382 para 501 milhões. Pode existir um sem fim de argumentos para dizer o contrário e uma fieira de títulos para servir de amparo. Os rubro negros que me perdoem, andam surfando uma onda incrível. E eu posso ser um cético incorrigível mas não sou de cortar o barato de ninguém. 

Se escrevo é por saber que o que vai nestas linhas não terá esse poder. Pois uma coisa é o que se dá entre as quatro linhas, outra o que se passa além delas. Nos corredores do Câmara, do Senado, em restaurantes caros, nos escritórios de Federações, nos gabinetes das Confederações e nas salas de mega empresários. Um mundo ao qual o torcedor de verdade não pertence. A eles é dado o circo e ponto. 

A verdade é que ao longo dos últimos anos vimos um sem fim de projetos. Todos acobertando no ventre a possibilidade de refinanciamentos generosos para as dívidas dos clubes. Iniciativas que não deram certo e que estiveram longe de serem honradas pela maior parte deles. Agora outro projeto está a caminho.  Semana passada o Presidente da Câmara, Rodrigo Maia,  cumprindo agenda na Espanha, esteve com o homem forte da Liga Espanhola para tratar do assunto.  O país ibérico pode ter experiência a respeito mas está longe de ser um exemplo. Promulgou uma lei no final dos anos noventa que obrigava os clubes com saldo patrimonial líquido negativo a se tornarem Sociedades Anônimas Esportivas. Condição que os gigantes Real e Barcelona conseguiram driblar, como conseguiram driblar altos impostos por terem se mantido como associações. Atualmente, três décadas depois o que se vê por lá são denúncias de sonegação fiscal, corrupção, dívidas gigantescas dos clubes com a União.  

Fiz questão de ouvir o advogado Rodrigo Monteiro de Castro, que redigiu  o projeto que está no Senado. Em breve, depois do retorno de Rodrigo Maia o tema  deve esquentar.  Sobre o projeto aprovado em regime de urgência na Câmara, portanto, sem passar pelas Comissões Temáticas, Monteiro de Castro diz que houve algum avanço. Nas primeiras versões, consideradas  por ele vergonhosas, aspectos importantes caíram mas ainda há problemas seríssimos, que podem facilitar a adoção de medidas drásticas pelos clubes, à conta do Estado e dos credores privados, sem a imposição de contrapartidas estruturais relacionadas à governança e ao controle dos atos dos dirigentes e, principalmente, sem a mudança dos centros de poder. 

No Senado uns querem Romário, desafeto da CBF, como relator, o que está longe de ser unanimidade. À parte toda pressão externa noticiou-se que o Presidente do Senado  só levará o tema a plenário  quando houver consenso em relação ao modeloComo bom cético digo que é coisa que só acredito vendo. E olhe lá. Mas mesmo os que não são céticos sabem que em se tratando de futebol quem está ganhando nunca vê razão pra mudar.  E quem está ganhando desde sempre é quem decide a questão.


* artigo escrito para o jornal "A Tribuna", Santos/SP