Dentro de campo tudo parece envolvido por um imenso frenesi, menos o goleiro. A primeira impressão é que a posição o transforma num solitário. Um zagueiro pode ter vocação para a lateral, um volante jeitão pra jogar no meio e por aí vai. O goleiro, não, o goleiro tem de ser um predestinado. E nada parece ter o poder de livrá-lo dessa condição. Nem essa insistência moderna, mas nem tanto, de fazer com que os arqueiros usem os pés, troquem passes justamente ali onde tudo parece mais complicado. Diria que certas vocações são mais fáceis de se compreender, mas não parece o caso do sujeito que decide cuidar da meta. Condição, aliás, muito parecida com a daqueles que escolhem cuidar do apito. Seja como for fazer o que manda o coração nunca será descabido.
O que sei é que ninguém parece mais servo desse tipo de ordem do que esses dois tipos. Se os argumentos aqui não soarem convincentes apele às memórias de infância e lembre quantas não foram as vezes em que as peladas de infância deram aquela esfriada simplesmente porque ninguém queria pegar no gol. Uma memória que também pode ser vista ao avesso, lembrando como a pelada de repente ganhava em importância quando pintavam na área pelo menos dois dispostos a fazer o papel. E olha que eu sempre topei a parada. Voava na bola até quando o jogo se dava na garagem do prédio, desabando no chão duro. Certa vez, vendo meus cotovelos inchados de tanta imprudência e cansado de ver as advertências não causarem o mínimo efeito meu pai decretou: se quer pegar no gol vamos arrumar um lugar adequado pra você se quebrar.
Comprou pra mim um par de luvas e num sábado pela manhã me levou pra conversar com o treinador do glorioso Itararé. Enquanto o Seo Ary lhe contava meu breve passado ao homem cravei os olhos no garoto que estava jogando no gol. Em cinco minutos fez duas pontes de arrepiar que me convenceram de que o banco de reservas tinha tudo pra ser o meu destino. Tudo isso me veio na cabeça depois de ver o goleiro Sidão, do Vasco, ser eleito cinicamente pelos internautas como o craque da partida contra o Santos, depois de ter errado feio no primeiro dos três gols que levou do time adversário. Censurar o resultado exigiria uma decisão rápida e precisa que não veio. Exposto o arqueiro, vieram os pedidos de desculpas. Evidente ficou a crueldade das redes, não as do gol que em outros tempos ao balançar seriam as únicas anunciadoras dos castigos.
A parte louvável disso tudo foi a tranquilidade de Sidão pra lidar com a situação. Exibiu uma polidez de se tirar o chapéu. E olha que se tratou de uma saia justa daquelas que se tivesse sido tratada com destempero seria compreensível. Testemunha a constrangedora situação renovou em mim a sensação de que os goleiros, por natureza, estão mais aptos a lidar com os castigos, por mais injustos que sejam. Nunca vou esquecer do semblante triste do velho Barbosa, goleiro da Seleção Brasileira na Copa de 1950, lamentando carregar consigo o sentimento de cumprir uma pena que lhe soava eterna quando a maior pena imposta no país não podia passar dos trinta anos. Enfim, até a resignação nos goleiros tem um que de coragem.
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