Era domingo. Desses sem futebol. Um desses domingos sobre os quais, com bola rolando ou não, algo me diz que ainda falaremos por muito tempo. Afinal, a sensação é a de que temos atravessado dias que trazem consigo a perenidade das cicatrizes. Lavava eu a louça do almoço lembrando sei lá porque de ouvir muitas vezes o técnico Muricy Ramalho dizer que o tal ato lhe servia de terapia, que era um tipo de refúgio quando queria esquecer as coisas que andara vivendo à beira do gramado. Tá pensando o quê? Aqui é trabalho também !
Só sei que, de repente, a notícia que me chegava começou a fazer espuma na minha cabeça. Corintianos e palmeirenses juntos na mítica Avenida Paulista? Juntos, não. Lado a lado. Não! Do mesmo lado!!! Uma bolha maior de espuma ensaiou refletir minha imagem nas suas difusas cores de arco-íris. Meu semblante, pensei, naquele instante devia ter em si um ar de espanto. Divagava. O espanto de quem vislumbrava em meio a um pequeno mar de detergente uma das maiores rivalidades do nosso país se diluir por uma nobre causa.
E era justamente de cores que se tratava. Que força existia ali. Alvinegros e alviverdes, enfim, amalgamados. Quem diria. Solitariamente sorri, pensando em tudo o que poderia ser provocado quando quem sempre se dividiu de uma hora pra outra, num ato corajoso e improvável, resolve se deixar descobrir que existem coisas que devem ser postas acima de um jogo de bola. Muitas, aliás. Tá pra nascer o que nos impeça de sonhar. Algo há de resistir eternamente à possibilidade do caos. A recordação seguinte foi do Doutor Sócrates.
Era um início de madrugada e ele falava cheio de entusiasmo. Os olhos tinham aquele brilho peculiar que sempre brotava deles quando ele discursava, não sobre o que nós e nosso país éramos, mas sobre o que deveríamos e poderíamos ser. O Doutor tinha acabado de voltar de um evento na sede da Gaviões da Fiel. Onde tinha sido ouvido, não há dúvida, com uma atenção que seria dispensada a poucos. Vibrava com a força que tinha sentido ali. Ouvíamos tudo e, devo confessar, nos víamos obrigados a fazer ponderações. Não por não entender o que estava sendo dito mas por não conseguir esquecer tudo o que poderia se esconder atrás de uma torcida organizada. Fosse aquela ou qualquer outra.
Uma empolgação que eu sei rondou a cachola privilegiada do Doutor um bom tempo. Andou mexendo com os anseios de cidadão que ele cultivava. Enquanto isso na Paulista o ato terminava com a sordidez da realidade de sempre. Confronto com a Polícia, borrachada. Deixava no ar também a temeridade de qualquer aglomeração em virtude do que temos vivido. O risco sempre foi um preço. Mas nele resistia a beleza de um drible e dá até pra dizer, um sonho, do velho camisa oito que, dado a intuir um país melhor, talvez nunca tenha levado em conta que neste futuro que não lhe pertenceu estaríamos todos correndo atrás de vitórias que pensávamos já ter alcançado. E, muito menos, que um dia seriam tantos a fazer pouco caso da Democracia.
* artigo escrito para o jornal " A Tribuna", Santos/SP
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