De todas as coisas que envolvem o futebol
poucas invocam mais a nossa capacidade de improvisar do que a trave. Desde
menino aprendemos a colocar lá, ao pé de uma linha de fundo muitas vezes
invisível, dois pedaços de tijolos, dois chinelos, dois pequenos pedaços de pau,
duas latas, duas pedras, seja o que for. E o resto fica por conta da imaginação.
A partir daqueles dois pontos, dispostos a uma distância de alguns pés um do
outro, tratamos de visualizar todo o resto.
A linha reta das traves que vai
desaguar no limite das forquilhas. O travessão. As três linhas que formam com o
chão um retângulo que desperta infinitas possibilidades. E por mais que uma hora
se descubra que as linhas imaginadas não estavam no mesmo lugar, já que um diz,
convicto: foi gol! Enquanto o outro tão convicto quanto sentencia: foi por fora.
Ainda assim, paira ali naquele ambiente uma suntuosa cumplicidade a respeito
dessas linhas imaginárias. Linhas que só acabam deslocadas por puro interesse.
E como se sabe nessas traves improvisadas quando uma bola não se colocou por
cima dela? Ora, não se sabe. O que se sabe, é que ao colocar ali, um tanto
distantes, dois pedaços de tijolos, dois chinelos, dois pequenos pedaços de pau,
duas pedras, duas latas, seja o que for, se provoca uma imaginação comum, capaz
de apontar o quanto uma bola que se desprende do chão em sua trajetória está
apta se ser declarada como provocadora de um gol. Ou eu era louco, ou era apenas
um menino encantado com o jogo. Mas trago em mim a certeza de que como todos os
outros ali sabia de cor e com precisão pretensamente matemática
cada uma daquelas medidas, cada uma daquelas linhas.
Trave mesmo, dessas com toda
estatura e imponência das profissionais que decretam os limites de um gol sem
deixar o mínimo espaço para a imaginação foi luxo que eu demorei a provar. Bem
antes disso descobri uma com todos os ângulos e linhas à vista e ainda assim
nascida do improviso. Fomos morar num prédio simples de três andares recém
construído. Lá, entre o primeiro e o segundo blocos, perto do enorme quadro de
luz, alguém deixou à mostra um encanamento que saia do chão e formava uma trave
em miniatura. Linhas perfeitas a provocar nossa imaginação.
Chumbada no chão,
fixa, resistente, parecia um presente, que fez aquele pedaço de garagem
diferente de todo o resto. Foi ali que descobri a emoção de fazer um gol com a
bola batendo antes no travessão ou o delírio de marcar um gol mandando a bola no
ângulo. Loucura! O futebol estava quase todo desvendado, quase. Até hoje não sei
que função poderia ter aquele encanamento. Servir para prender bicicletas,
talvez! O fato é que jamais encontrei uma atada ao lugar por um cadeado ou coisa
que o valha. Aquele encanamento, desde sua descoberta esteve sempre a serviço da
nossa imaginação, assim como os bancos da velha praça em frente ao colégio,
cujas linhas víamos como traves perfeitas.
E só não via quem não era menino ou
quem não andava encantado pelo jogo de bola. Até hoje toda vez que passo por uma
pelada dessas improvisadas e vejo os gols marcados assim, com dois chinelos,
duas pedras, duas latas, dois tijolos, duas pedras, seja como for, algo em mim
se renova. O futebol em mim se renova.
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