quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

O futebol e seus artistas


Há um pormenor que talvez sirva para provar que nem sempre tratamos o futebol como arte. Falo dessa insistência cotidiana para que técnicos e jogadores nos expliquem o que se passou em campo. Ora, arte não se explica. Quando a arte precisa de explicação é porque algo está errado. Outro dia mesmo li uma declaração de um autor respeitado dizendo que um poema, por exemplo, quando carece de explicação é porque não presta. Os mais amargos, com alguma razão, dirão que isso neste momento é conversa pra boi dormir pois foi-se o tempo em que nosso futebol podia - como fez o cineasta italiano Pasolini certa vez - ser chamado de poético.  Sendo arte, ou não, é fato que as entrevistas futebolísticas habitam o imaginário popular faz tempo como algo repetitivo e de muito pouca profundidade.  E talvez, por este motivo, sejam realmente a parte menos rica desse universo. 

Mas nós, que trabalhamos com isso, continuamos de ouvidos atentos, mesmo sabendo que a possibilidade de garimpar ali algum diamante é remota. Essa falta de riqueza ao longo do tempo também ajudou a perpetuar aquela velha questão: seriam as respostas todas iguais por que as perguntas são sempre as mesmas? Ou as perguntas são sempre as mesmas por que as respostas são sempre iguais? Vai saber. De minha parte aproveito pra dizer o seguinte: Se o futebol é, ou ainda pode ser chamado de arte, eu tenho lá minhas dúvidas. O que eu sei é que jornalista que é jornalista jamais deve se achar artista. Além do mais, é difícil acreditar que exista nesse mundo uma ocupação cuja beleza conseguiria sobreviver a essa necessidade imensa de se explicar dia após dia. 

Diante dessa dificuldade chega a ser perdoável que os envolvidos em tal tarefa se apeguem a certos chavões. Abrir mão deles exige malícia. Malandragem que Paulo Henrique Ganso, no calor da hora, não teve para explicar a derrota para o Corinthians. E justo num dia em que de artista ele não teve nada. Não duvido que tenha tido boa intenção, que tenha tentado enaltecer o lado "Chulapa" do Serginho. Mas deveria ter lembrado que o Serginho jamais teria saído de campo dizendo que se fosse o Almir Pernambuquinho no lugar dele a coisa seria bem diferente. Ganso precisa reencontrar seu futebol e, de quebra, nunca esquecer que em matéria de bola pra se fazer o papel de bom malandro é preciso ser artista.

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

O Majestoso e as majestades


Falou-se desse tal embate Majestoso desde o tempo em que ele não passava de uma possibilidade. Desde muito antes de o Corinthians carimbar a passagem para o fase de grupos. Um jogo que de tão grande nos fez olhar insistentemente para o horizonte. E, claro que ninguém jamais diria, por causa dele os jogos dos dois times no Campeonato Paulista passaram a ser... menores. Meros degraus que os separavam ou os aproximavam do grande embate. Enfim, fiquei com a impressão de que o Majestoso nunca foi tão majestoso. Mas fui obrigado a levar em conta também a possibilidade de que quando tudo em volta se empobrece é inevitável que as majestades sobressaiam. 

E por falar em majestades tenho acompanhado com certa indignação todo o esforço feito pela crônica esportiva para evidenciar o tamanho do talento de Neymar. Como se isso fosse preciso. Obviamente, nada contra Neymar que, em campo, aliás, tem feito tudo que se espera dele. Dias atrás, ao completar vinte e três anos, o brasileiro foi comparado ao português Cristiano Ronaldo. Ganhou de goleada, segundo um jornal espanhol, pois com esta idade o português tinha marcado meros 107 gols. Neymar 219. Não concordo com Parreira, mas existe situação em que o gol é um detalhe. E essa é uma delas.Cristiano Ronaldo vem jogando em alto nível há muitos anos. Recentemente, beirando os 30, viveu uma fase impressionante. Sem contar que não é qualquer destino que reserva ao seu dono três bolas de ouro. Mas não foi só isso. 

Nos últimos dias a mesma perversidade das comparações foi usada para dizer que Neymar, no Barça, já é maior do que Maradona. E dane-se que a passagem de Maradona pelo time catalão tenha sido marcada por problemas físicos. E, detalhe, não importa nem mesmo se o brasileiro precisou dez partidas a mais que o argentino para chegar a essa marca. Difícil seria Neymar fazer o que Maradona fez no modesto Napoli, quando além de dar ao clube italiano seus dois únicos títulos nacionais o fez encarar os principais times do país em pé de igualdade. Ou ainda, ganhar uma Copa aos 25, sendo dela, de longe, o principal protagonista. Detalhe que também não costuma ornar qualquer destino. Mas Neymar é esperto. E já teve bons motivos pra sacar que a vida não é prova de tiro curto, a vida é prova de fundo.

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

"Sê paciente; espera que a palavra amadureça
e se desprenda como um fruto ao passar
o vento que a mereça".

Eugénio de Andrade

Um Monet


quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

As traves


De todas as coisas que envolvem o futebol poucas invocam mais a nossa capacidade de improvisar do que a trave. Desde menino aprendemos a colocar lá, ao pé de uma linha de fundo muitas vezes invisível, dois pedaços de tijolos, dois chinelos, dois pequenos pedaços de pau, duas latas, duas pedras, seja o que for. E o resto fica por conta da imaginação. A partir daqueles dois pontos, dispostos a uma distância de alguns pés um do outro, tratamos de visualizar todo o resto. 

A linha reta das traves que vai desaguar no limite das forquilhas. O travessão. As três linhas que formam com o chão um retângulo que desperta infinitas possibilidades. E por mais que uma hora se descubra que as linhas imaginadas não estavam no mesmo lugar, já que um diz, convicto: foi gol! Enquanto o outro tão convicto quanto sentencia: foi por fora. Ainda assim, paira ali naquele ambiente uma suntuosa cumplicidade a respeito dessas linhas imaginárias. Linhas que só acabam  deslocadas por puro interesse. 

E como se sabe nessas traves improvisadas quando uma bola não se colocou por cima dela? Ora, não se sabe. O que se sabe, é que ao colocar ali, um tanto distantes, dois pedaços de tijolos, dois chinelos, dois pequenos pedaços de pau, duas pedras, duas latas, seja o que for, se provoca uma imaginação comum, capaz de apontar o quanto uma bola que se desprende do chão em sua trajetória está apta se ser declarada como provocadora de um gol. Ou eu era louco, ou era apenas um menino encantado com o jogo. Mas trago em mim a certeza de que como todos os outros ali sabia de cor  e com precisão pretensamente matemática cada uma daquelas medidas, cada uma daquelas linhas.

Trave mesmo, dessas com toda estatura e imponência das profissionais que decretam os limites de um gol sem deixar o mínimo espaço para a imaginação foi luxo que eu demorei a provar. Bem antes disso descobri uma com todos os ângulos e linhas à vista e ainda assim nascida do improviso. Fomos morar num prédio simples de três andares recém construído. Lá, entre o primeiro e o segundo blocos, perto do enorme quadro de luz, alguém deixou à mostra um encanamento que saia do chão e formava uma trave em miniatura. Linhas perfeitas a provocar nossa imaginação. 

Chumbada no chão, fixa, resistente, parecia um presente, que fez aquele pedaço de garagem diferente de todo o resto. Foi ali que descobri a emoção de fazer um gol com a bola batendo antes no travessão ou o delírio de marcar um gol mandando a bola no ângulo. Loucura! O futebol estava quase todo desvendado, quase. Até hoje não sei que função poderia ter aquele encanamento. Servir para prender bicicletas, talvez! O fato é que jamais encontrei uma atada ao lugar por um cadeado ou coisa que o valha. Aquele encanamento, desde sua descoberta esteve sempre a serviço da nossa imaginação, assim como os bancos da velha praça em frente ao colégio, cujas linhas víamos como traves perfeitas. 

E só não via quem não era menino ou quem não andava encantado pelo jogo de bola. Até hoje toda vez que passo por uma pelada dessas improvisadas e vejo os gols marcados assim, com dois chinelos, duas pedras, duas latas, dois tijolos, duas pedras, seja como for, algo em mim se renova. O futebol em mim se renova.