quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

Fred está no céu?



Seo Zé, estimado. Estava há tempos pra te escrever. Sentimento que arrefeceu um tanto quando dias atrás te encontrei varrendo a calçada já sem muito sinal daquele abatimento que te tirou o brilho dos olhos. E demorei também porque está longe de ser tarefa fácil escrever sobre perdas. Mas o detalhe crucial que me fez tomar vergonha na cara e pegar na pena pra valer foi ter dado de cara com uma foto aqui num dos meus jornais velhos. Uma foto do Papa Francisco todo sorridente segurando na mão um bem tratado papagaio. Aí a lembrança do nosso velho Fred foi imediata, inevitável. Será que o Vaticano tem licença pra ter papagaio? Nada contra Vossa santidade, que acho até simpática e além de seu tempo, o que é muito bom. Imagina o stress do bicho, ter de participar de uma cerimonia desse quilate, suportar o frenesi dos fiéis e dos fotógrafos.

Tenho visto que no melhor estilo argentino o Sumo Pontífice não tem fugido de  nenhuma dividida. E nesse pique outro dia teria insinuado que os animais têm alma. Tema cabeludo pros católicos que ao longo da história têm visto posições tão contraditórias a respeito desse assunto, fazendo até com que o embate em torno dele deixe transparecer um certo clima de FlaFlu. Mas segundo entendidos ao dizer que "o paraiso está aberto a todas as criaturas de Deus", o Papa não teria feito o que chamam de uma afirmação doutrinária. Desconfiado que sou, tendo em vista a quantidade de gente passeando com seus cães que tenho visto por aí , a proliferação das Pet Shops e esse sem fim de dejetos e saquinhos de plástico porcamente espalhados pelo caminho, sou levado a crer que pode ter se tratado de tema estudado, de viés populista. Seja como for, esse Francisco tem sido um sujeito tão pra frente que se um dia pisasse no Bar do Zé Ladrão, creio, ele o daria a absolvição. Ainda que não fosse por falta de pecados.

Com uma visita ilustre dessas quem sabe nós, os saudosos, pudéssemos lhe contar da dor que ficou depois que Fred, nosso velho papagaio se foi. Falar-lhe da tristeza das crianças. Do enredo que o tirou de nós, tão próprio dos homens. Onde já se viu? Tirar um bicho de onde ele viveu seus últimos vinte e tantos anos, usando como argumento a possibilidade de salvá-lo de maus tratos. Como se fosse fácil sobreviver a mais de duas décadas de sofrimento. Tenho certeza que Vossa Santidade partilharia do nosso desgosto ao saber que depois de todos os trâmites, de todas as liminares que o trouxeram de volta, todos ficaram bem, menos o pobre do Fred, que voltou acabrunhado, doente, necessitando de cuidados. E que sua morte foi justificada como resultado de uma intoxicação.  E não sei se delirei mas tenho a impressão de ter lido por aí que uma autoridade no assunto teria dito que o Fred nesse vai e vem teria conhecido uma papagaia lá nos domínios do Parque do Tietê pra onde foi levado e que dava claros sinais de que precisava reproduzir. Amar, talvez. Afinal, se aos bichos foi dado o céu, por que não a possibilidade de amar ?

 Zé, a história do Fred teve tudo do surrealismo que a gente vive. Desse cotidiano repleto de histórias bizarras. Mas a gente resiste. Prova disso foi dar de cara contigo naquela manhã e perceber teu ar renovado de quem usou a sabedoria que costuma se esconder nos cabelos brancos pra
tratar dessa dor. E vai que esse mundo maluco não faz o Papa pisar mesmo os velhos ladrilhos vermelhos do teu bar um dia. Aí você aproveita e se confessa. Será que o coração do Papa aguentaria? E usa essa deixa pra dizer pra ele também dessa injustiça de uns outros por aí andarem te acusando de comprometer a tranquilidade da zona oeste paulistana. Logo você que conseguiu o quase milagre de erguer um boteco de ambiente familiar. E, ó, se por acaso ele perguntar por mim, diz a verdade. Diz que faz tempo que não apareço. Que tenho dado o ar da graça apenas em esparsas manhãs  a caminho da feira. Diz que pelo menos por aí não tenho bebido nada. Ah! E não esquece de perguntar por onde andará nosso velho Fred agora. Estaria mesmo no céu? Se estiver, terá sido merecido.




* Para mais detalhes da história de Fred, ler o post "Luto no Bar do Zé Ladrão" 03/09/2014