quinta-feira, 27 de março de 2014

A cartilha


Imbuída de boas intenções a FIFA publicou na sua revista eletrônica dias atrás uma matéria com dicas para os turistas que pretendem estar entre nós durante a Copa. De cara era possível notar que algo ali soava impreciso. O título "Brasil para principiantes" ia totalmente na contramão de uma das maiores definições que o nosso país recebeu ao longo da história, aquela de não ser um país para principiantes. E o maestro Tom Jobim, seu autor, ao tecê-la parece ter sido tão exato quanto foi na hora de criar a melodia de Garota de Ipanema. 

Prova disso é que se trata de uma definição cada dia mais pertinente. Afinal, quanto mais o tempo passa menos o Brasil é para principiantes. A cartilha com dez itens que acompanhava a matéria continha dicas valiosas, como uma relacionada ao trânsito. E a razão é simples, avisar alguém que neste país a faixa de pedestre é quase ilustrativa pode salvar muitas vidas. Por outro lado, dizer que em uma churrascaria " deve-se comer devagar porque as melhores carnes chegam no final", não é exatamente contar a verdade. 

Melhor seria dizer algo do tipo: resista às tentações menores, não se entregue aos pãezinhos de queijo, polentas fritas e afins, para não correr o risco de se encontrar entupido e sem disposição para saborear o que uma casa desse tipo tem de melhor. Experimente mesmo o açai, como está na cartilha. Se previne rugas como está lá eu não sei, mas posso garantir que o sabor é interessante e, sem dúvida, o fará se sentir bem alimentado. 

Sobre dizer que gostamos de cultivar o caos e que essa coisa de formar fila de um lado não existe, não é bem assim. Se você estiver em um shopping, quem sabe, mas estiver no metrô na hora do rush, quando não sobra espaço pra nada, melhor se encaixar na multidão e deixar a onda humana ditar o ritmo e o destino. Eu não deixaria de sugerir que assistam por aqui uma partida de futevôlei, uma pelada na praia. Experimentaria um chopp num boteco desses que, de tão procurados, te fazem beber na calçada. 

Quem sabe alongaria um pouco a estada para poder ver um jogo de futebol que fosse do Brasil, e não no Brasil. Mas não me arrisco a explicar a nossa relação com a pontualidade, nem nosso jeito de lidar com o corpo. Beijando todo mundo, adorando trajes mínimos nas praias, mas tendo total falta de modos pra lidar com um simples topless. Quem sabe nossos visitantes não descobrem algum prazer em fazer as coisas no último minuto. Não falo desse último minuto sacana de uma gente que se locupleta com o atraso. Falo de outra coisa. E pra finalizar, não acho que a filosofia dos brasileiros, como também está na cartilha, pode ser resumida com um "relaxa e aproveita". Eu a mudaria um pouco, diria: "relaxa, aproveita e não tente entender"

quinta-feira, 20 de março de 2014

Outros tempos



Dia desses numa conversa ouvi alguém dizer que ainda não percebemos o entusiasmo com a Copa porque ela não começou. A aposta de quem falava era que quando a bola rolar a gente vai entrar no clima. Mas a Copa parece tão perto, pensei comigo. A verdade é que ouvi o argumento sem contestar, ainda que ele tenha me provocado uma vontade imensa de retrucar. Disparar um: "Também pudera, se começar e continuarmos nesse clima, empolgante é que não vai ser, né?". 

Juro que não lembro como esse contágio se dava em outros tempos, em que momento exatamente nos entregávamos a ela. A impressão, no entanto, é a de que a essa hora uns trinta anos atrás, talvez menos, estaríamos tomados por alguma sensação mais viva. Claro, é preciso aí levar em conta o peso dos anos, não só no futebol, mas em nós. O passado era infinitamente de mais entrega e menos reflexão. Mas o papo mexeu comigo, tanto que vou batucando aqui e pensando que seria interessante sair por aí perguntando pra garotada se ela já anda, ou não anda, curtindo essa Copa de algum jeito. Me deu uma nostalgia. 

Será que eles se empolgam com um Neymar exatamente do mesmo jeito que em outros tempos eu e meus amigos nos empolgávamos com um Zico? Será que depois de assistir a um jogo da seleção ainda fazem dele motivo de uma longa conversa pra lá de animada? Será? Foram relatos feitos nesse clima que me tatuaram na memória detalhes como aquela levantadinha que o Éder deu na bola antes de disparar o chute pro gol no jogo contra a União Soviética em 82. Bom, não seria de estranhar se dissessem que tudo isso não tem mais nada a ver. Afinal, o Brasil agora é outro e a meninada também. 

Portanto, essa será  a Copa de um Brasil em que a várzea perdeu o vigor. Onde era uma vez o futebol jogado em ruas de terra, em campinhos desenhados a tinta óleo no asfalto áspero. Essa será a Copa do Brasil das ruas que se entupiram de carros. Do Brasil que ainda há pouco achamos que ia dar certo. A Copa do país onde a meninada anda curtindo mesmo é dar um rolêzinho. A Copa de um Brasil que não teve a capacidade de se vestir melhor para recebê-la e que estará longe de cumprir tudo o que prometeu em seu nome. Mas a Copa deve, sim, nos empolgar em breve. E, seja como for, deixemos a bola rolar que o mundo anda é pra frente.    

quarta-feira, 5 de março de 2014

Torcer contra


Não que este tenha sido o carnaval mais animado no Bar do Zé Ladrão. Nada para se preocupar. Estamos cansados de saber que não se faz mais carnaval como antigamente. Dessa vez não tivemos nem mesmo a tradicional marchinha especialmente composta para a ocasião. A última, por sinal, esteve longe de ser um primor de educação. Se grandes autores podem se dar o direito de justificar a falta de criação alegando um sempre mal compreendido bloqueio, por que não os bambas frequentadores de tão ilustre paradeiro? Mas tudo ia bem até um engraçadinho não resistir à tentação de mexer com o Zé e provocar um bate-boca merecedor de relato.

_ E aí Zé, vai comprar uma TV decente pra gente ver essa Copa?
_ É compra mesmo, e vê se compra também uns ingressos pra sortear. Quem sabe assim uns e outros aqui, com alma de Pacheco, não vão se distrair com a Copa por aí.
_Ih, ó o cara, tá azedo. O cara quando é azedo assim é do tipo que torce contra.

Foi a conta.

_ E se eu quiser torcer, qual o problema?
_Nenhum, você nasceu na Espanha mesmo não é?
_ Sou brasileiro igual você. Pra falar a verdade acho que sou mais que você.
_Mais que eu? Que papinho, hein?
_Eu torço pro país, você pro time do Felipão. E, detalhe, acha que é exemplo de cidadania.
_ E torcer contra ajuda no quê?
_ Eu por acaso disse que ajuda em alguma coisa?
_Ué, quem torce tem que ter um motivo.
_Motivo? Eu te dou um motivo.
_Ah! É?
_É, sim! Quer saber? Eu torço é pra o Brasil não ver mais PMs invadindo delegacia pra resgatar um sargento, como eu li esta semana que aconteceu lá no Acre. Acre também é Brasil, sabia?
_ Depois ainda diz que gosta de futebol.
_ Eu gosto sim, e acho que diante de tudo que a gente tem visto ser feito em nome dessa Copa, o nosso futebolzinho manchado de cada dia ficou até inocente.

A essa altura do embate o Seu Zé, que não nasceu ontem, foi logo dizendo de maneira sacana, em tom de aparte:

_ Ô vocês dois. Dá um tempo. Ó, os dois podem ficar tranquilos que eu vou comprar não é uma, não! Vou comprar duas televisões. E vou mandar colocar aqui ó, uma do lado da outra. Uma pra você, Bigode, ver a Copa. E outra pra ti, viu Raul? Só pra você ver os protestos. 

Mas o papo não esfriou.


_ Tô ligado. Você deve ser aquele tipo que acha que se o Brasil ganhar, pronto, se esconde tudo.
_ É, quer saber? Eu acho isso, sim. Não tenho a menor dúvida de que, se ganha, todo esse descalabro será amenizado.
_ Tu é muito politizado pro meu gosto.
_Olha, eu devo ser mesmo, e pra maioria também porque toda vez que falo que vou torcer contra alguém torce é o nariz.
_Então, já devia ter se ligado.
_ O Mané, quem devia ter se ligado é você. Se eu quiser torcer contra eu torço, tô no meu direito.

A essa altura a conversa entre os dois começava a intimidar a freguesia. Mas aí o seu Zé - com seus olhos de lince atrás do balcão - resolveu colocar ordem na casa.

_ Ê,ê ! Já chega! Isso aqui não é o STF pra vocês ficarem discutindo o Brasil. Respeita o Bar do Zé! Vamô bebê cerveja, vai!