quinta-feira, 22 de agosto de 2013

O futebol educa?

 A sedução do esporte profissional é incontestável. Quando digo esporte profissional falo no esporte de alto rendimento. O esporte praticado por atletas de ponta. Gente com calibre para sonhar em conquistar o mundo.A serviço dessa sedução não estão só os triunfos, existem também o mar de cifras que costuma acompanhar marcas e títulos, a fama, que não é sinônimo de fortuna mas que, boa parte das vezes, leva até ela.

Toda essa engrenagem tem papel fundamental para que os jovens se interessem por esse universo encantador. Mas esse fascínio não educa, não disciplina. E também não faz ninguém sentir de maneira plena seus benefícios físicos e mentais. Não se enganem, ninguém jamais descobrirá do que o esporte é capaz sentado em frente a um televisor. Trata-se de uma benção que ele reserva apenas aos praticantes.

Essa questão sempre me vem à cabeça quando vejo imagens como as registradas antes do jogo entre Flamengo e São Paulo, em Brasília, onde foi possível ver um torcedor, mesmo caído no chão, ser espancado por vários agressores que vestiam outras camisas. Isso sem falar nas incontáveis cenas de selvageria e má educação que podem ser vistas pelos estádios desse nosso país a cada rodada. Uma certa barbárie que se deixou sentir também nas reações à fotografia em que o atacante corintiano, Emerson, aparecia beijando, de leve, um amigo.

Que nenhum pai se engane, porque ao apresentar a seu filho o amor pelo futebol ao mesmo tempo lhe abre as portas para um universo cruel. Um universo de dicotomia. Um universo puramente sentimental mas que costuma fazer pouco de sentimentos finos. O futebol é bruto. É praticado por homens e não por freiras como nos fez questão de lembrar no último final de semana o técnico Osvaldo de Oliveira, do Botafogo, talvez o mais educado dos nossos treinadores.

E é por tudo isso que não deveríamos perdoar dívidas bilionárias de clubes de futebol. Tampouco devemos acreditar que eles, com suas administrações terríveis serão capazes de, a partir de agora, abrir espaço de maneira exemplar para esportes olímpicos. E é exatamente disso que tentarão nos convencer. Estejam certos. O plano levará o nome de Proforte. Lindo, não é?

Precisamos é gastar bilhões para que as pessoas tenham acesso a quadras. Para que não falte a alegria da presença de uma bola nem mesmo ( e principalmente) na mais distante das periferias. E porque se deixar seduzir é parte do jogo, não precisamos de estádios para alguns. Precisamos como sociedade, como país sede da próxima Copa e da próxima olímpiada, tirar alguma vitória dessa nossa condição. E ela seria mais provável se tivéssemos mais olhos para o esporte que educa do que para esse que só fascina e seduz.

sexta-feira, 16 de agosto de 2013

Eis a minha preferida de João do Rio !

Um mendigo original

Morreu trasanteontem, às 7 da tarde, de uma congestão, o meu particular amigo, o mendigo Justino Antônio.Era um homem considerável, sutil e sórdido, com uma rija organização cerebral que se estabelecia neste princípio perfeito: a sociedade tem de dar-me tudo quanto goza, sem abundância mais também sem o meu trabalho – princípio que não era socialista, mas era cumprido à risca pela prática rigorosa. A primeira vez que vi Justino Antônio num alfarrabista da Rua São José foi em dia de sábado. Tinha um fraque verde, as botas rotas, o cabelo empastado e uma barba de profeta, suja e cheia de lêndeas. Entrou, estendeu a mão ao alfarrabista.
– Hoje, não tem.
– Devo notar que há já dois sábados nada me dás.
– Não seja importuno. Já disse.
– Bem, não te zangues. Notei apenas porque a recusa não foi para sempre. Este cidadão, entretanto, vai ceder-me quinhentos réis.
- Eu!
– Está claro. Fica com esta despesinha a mais: quinhentos réis aos sábados. É melhor dar a um pobre do que tomar um chope. Peço, porém, para notares que não sou um mordedor, sou mendigo, esmolo, esmolo há vinte anos. Tens diante de ti um mendigo autêntico.
– E por que não trabalha?
– Porque é inútil.
Dei sorrindo a cédula. Justino não agradeceu, e quando o vimos pelas costas, o alfarrabista indignado prorrompeu contra o malandrim que com tamanho descaro arrancava os níqueis à algibeira alheia. Achei original Justino. Como mendigo era uma curiosa figura perdida em plena cidade, capaz de permitir um pouco de fantasia filosófica em torno de sua diogênica dignidade. Mas o mendigo desapareceu, e só um mês depois, ao sair de casa, encontrei-o à porta.
– Deves-me dois mil-réis de quatro sábados, e venho ver se me arranjas umas horas usadas. Estas estão em petição de miséria.
Fi-lo entrar, esperar à porta da saleta, forneci-lhe botas e dinheiro.
– E se me desses o almoço?
Mandei arranjar um prato farto, e com a gula de descrevê-lo, fui generoso.
– Vem para a mesa.
– A mesa e o talher são inutilidades. Não peço senão o que necessito no momento. Pode-se comer perfeitamente sem mesa e sem talher.
Sentou-se num degrau da escada e comeu gravemente o pratarraz. Depois pediu água, limpou as mãos nas calças e desceu.
– Espera aí, homem. Que diabo! Nem dizes obrigado.
– É inútil dizer obrigado. Só deste o que falta não te faria. E deste por vontade. Talvez fosse até por interesse. Deste-me as botas velhas como quem compra um livro novo. Conheço-te.
– Conheces-me?
– Não te enchas, vaidoso. Eu conheço toda a gente. Até para o mês.
– Queres um copo de vinho?
– Não. Costumo embriagar-me às quintas; hoje é segunda.
Confesso que o mendigo não me deixou uma impressão agradável. Mas era quanto possível novo, inédito, com a sua grosseria e as suas atitudes de Sócrates de ensinamentos. E diariamente lembrava a sua figura, a sua barba cheia de lêndeas... Uma vez vi-o na galeria da Câmara, na primeira fila, assistindo aos debates, e na mesma noite, entrando num teatro do Rocio, o empresário desolado disse-me:
– Ah! não imaginas a vazante! É tal que mandei entrar o Justino.
– Que Justino?
– Não conheces? Um mendigo, um tipo muito interessante, que gosta de teatro. Chega à bilheteira e diz: "Hoje não arranjei dinheiro. Posso entrar?" A primeira vez que me vieram contar a pilhéria achei tanta graça que consenti. Agora, quando arranja dez tostões compra a senha sem dizer palavra e entra. Quando não arranja repete a frase e entra. Um que mal faz?
Fui ver o curioso homem. Estava em pé em geral, prestando uma sinistra atenção às facécias de certo cômico.
– Justino, por que não te sentas?
– É inútil. Vejo bem de pé.
– Mas o empresário...
– Contento-me com a generosidade do empresário.
– Mas na Câmara estava sentado.
– Lá é a comunhão que paga.
Insisti no interrogatório, a falar da peça, dos atores, dos prazeres, da vida, do
Justino conservou-se mudo. No intervalo convidei-o a tomar uma soda, por não ser quinta-feira.
– Soda é inútil. Estás a aborrecer-me. Vai embora.
Outra qualquer pessoa ficaria indignadíssima. Eu curvei resignadamente a cabeça e acabei vexado.
A voz daquele homem, branca, fria, igual, no mesmo tom, era inexorável.
– É um tipo o teu espectador - disse ao empresário.
– Ah!... ninguém lhe arranca palavra. Sabes que nunca me disse obrigado?
Eu andava precisamente neste tempo a interrogar mendigos para um inquérito à vida da miséria urbana e alguns dos artigos já haviam aparecido. Dias depois, estando a comprar charutos, entra pela tabacaria adentro o homem estranho.
– Queres um charuto?
– Inútil. Só fumo às terças e aos domingos. Os charuteiros fornecem-me. Entrei para receber os meus dois mil-réis atrasados e para dizer que não te metas a escrever a meu respeito.
– Por quê?
– Porque abomino a minha pessoa em letra de forma, apesar de nunca a ter visto assim. Se fizeres a feia ação, sou forçado a brigar contigo, sempre que te encontrar.
A perspectiva de rolar na via pública com um mendigo não me sorria. Justino faria tudo quanto dissera. Depois era um fenômeno de hipnose. Estava inteiramente dominado, escravizado àquela figura esfingética da lama urbana, não tinha forças para resistir à sua calma e fria vontade. Oh! ouvir esse homem! Saber-lhe a vida!
Como certa vez entretanto, à 1 hora da manhã, atravessasse o equívoco e silencioso jardim do Rocio, vi uma altercação num banco. Era o tempo em que a polícia resolvera não deixar os vagabundos dormirem nos bancos. Na noite de luar, dois guardas civis batiam-se contra um vulto esquálido de grandes barbas. Acerquei-me. Era ele.
– Vamos, seu vagabundo.
– É inútil. Não vou.
– Vai à força!
– É inútil. Sabem o que é este banco para mim? A minha cama de verão há doze anos! De uma hora em diante, por direito de hábito, respeitam-na todos. Tenho visto passar muito guarda, muito suplente, muito delegado. Eles vão-se, eu fico. Nem tu, nem o suplente, nem o comissário, nem o delegado, nem o chefe serão capazes de me tirar esse direito. Moro neste banco há uma dúzia de anos. Boa-noite.
Os civis iam fazer uma violência. Tive de intervir, convencê-los, mostrar autoridade, enquanto Justino, recostado e impassível, dizia:
– Deixa. Eles levam-me, eu volto.
Afinal os guardas acederam, e Justino deitou-se completamente.
– Foi inútil. Não precisava. Mas eu sou teu amigo?
– Meu amigo?
– Certo. Nunca te pedi nada que te pudesse fazer falta e nunca te menti. Fica certo. Sou o teu melhor amigo, sou o melhor amigo de toda a gente.
– E não gostas de ninguém.
– Não é preciso gostar para ser amigo. Amigo é o que não sacrifica.
E desde então comecei a sacrificar-me voluntariamente por ele, a correr à polícia quando o sabia preso, a procurá-lo quando o não via e desesperado porque não aceitava mais de dois mil-réis da minha bolsa, e dizia, inexorável, a cada prova da minha simpatia:
– É inútil, inteiramente inútil!
Durante três anos dei-me com ele sem saber quantos anos tinha ou onde nascera. Nem isso. Apenas ao cabo de seis meses consegui saber que fumava aos domingos e às terças, embebedava-se às quintas, ia ao teatro às sextas e às segundas, e todo dia à Câmara. Nas noites de chuva dormia no chão! Numa hospedaria; em noites secas no seu banco. Nunca tomava banho, pedia pouco, e ao menor alarde de generosidade, limitava o alarde com o seu desolador: é inútil. Teria tido vida melhor? Fora rico, sábio? Amara? Odiara? Sofrera? Ninguém sabia! Um dia disse-lhe:
– A tua vida é exemplar. És o Buda contemporâneo da Avenida.
Ele respondeu:
– É um erro servir de exemplo. Vivo assim porque entendo viver assim. Condensei apenas os baixos instintos da cobiça, exploração, depravação, egoísmo em que se debatem os homens se na consciência de uma vontade que se restringe e por isso é forte. Numa sociedade em que os parasitas tripudiam - é inútil trabalhar. O trabalho é de resto inútil. Resolvi conduzir-me sem idéias, sem interesse, no meio do desencadear de interesses confessados e inconfessáveis. Sou uma espécie de imposto mínimo, e por isso nem sou malandro, nem mendigo, nem um homem como qualquer - porque não quero mais do que isso.
– E não amas?
– Nem a mim mesmo porque é inútil. Desses interesses encadeados resolvi, em lugar de explorar a caridade ou outro genêro de comércio, tirar a percentagem mínima, e daí o ter vivido sem esforço com todos os prazeres da sociedade, sem invejas e sem excessos, despercebido como o invísivel. Que fazes tu? Escreves? Tempo perdido com pretensões a tempo ganho. Que gozas tu? Teatros, jantares, festas em excesso nos melhores lugares. Eu gozo também quando tenho vontade, no dia de porcentagem no lugar que quero - o menor, o insignificante - os teatros e tudo quanto a cidade pode dar de interessante aos olhos. Apenas sem ser apontado e sem ter ódios.
– Que inteligência a tua!
– A verdadeira inteligência é a que se limita para evitar dissabores. Tu podes ter contrariedades. Eu nunca as tive. Nem as terei. Com o meu sistema, dispenso-me de sentir e de fingir, não preciso de ti nem de ninguém, retirando dos defeitos e das organizações más dos homens o subsídio da minha calma vida.
– É prodigioso.
– É um sistema, que serias incapaz de praticar, porque tu és como todos os outros, ambicioso e sensual.
Quando soube da sua morte corri ao necrotério a fazer-lhe o enterro. Não era possível. Justino tinha deixado um bilhete no bolso pedindo que o enterrassem na vala comum "a entrada geral do espetáculo dos vermes".
Saí desolado porque essa criatura fora a única que não me dera nem me tirara, e não chorara, e não sofrera e não gritara, amigo ideal de uma cidade inteira fazendo o que queria sem ir contra pessoa alguma, livre de nós como nós livres dele, a dez mil léguas de nós, posto que ao nosso lado.
E também com certa raiva - por que não dizê-lo? - porque o meu interesse fora apenas o desejo teimoso de descobrir um segredo que talvez não tivesse.
Enfim morreu. Ninguém sabia da sua vida, ninguém falou da sua morte. Um bem? Um mal?
Nem uma nem outra coisa, porque, afinal, na vida tudo é inteiramente inútil...

quinta-feira, 1 de agosto de 2013

Uma história de futebol

Tenho um tio, chamado Afonso, que é pra mim uma referência quando o assunto é futebol. Já faz tempo passou dos setenta e ainda tem bola suficiente pra garantir lugar num time de society onde boa parte dos jogadores têm pra lá de vinte anos menos do que ele, quicá trinta ou mais. Outro dia ele subiu a serra comigo e me contou uma história que faço questão de dividir com vocês. Exemplo puríssimo do que o jogo de bola pode significar na vida de alguém.

Morador da zona leste de São Paulo passou a vida envolvido com o futebol de várzea. Quando Julinho Botelho (ele mesmo, aquele que ao substituir Garrincha no Maracanã transformou vaias em aplausos fervorosos), seu vizinho ali nos arredores da antiga estação Carlos de Campos, já consagrado, decidiu fundar o Rio Branco, o time nasceu de uma fusão entre o Heróis Brasil e o Quarto Centenário. Este segundo fundado por um senhor que tempos depois deixou o bairro da Penha para ir morar no centro, onde tinha arrumado um emprego como zelador.E meu tio Afonso foi um dos que integraram o pequeno grupo que atravessou a cidade para ir até a nova casa dele buscar os equipamentos que eram usados pelo time. Seo Zé, sem pensar duas vezes, repassou a eles todo o fardamento para que o Quarto Centenário pudesse continuar.

Fato é que quando o União Rio Branco finalmente foi fazer o primeiro jogo de sua história, Julinho, que nessa época defendia o Palmeiras, havia indicado o time que deveria entrar em campo. Afonso, volante, estava lá. Mas para sua eterna desilusão a lista não foi respeitada. Chamado para jogar depois, tirou a camisa e a entregou. Se negou a um papel menor do que o que seu futebol honradamente tinha conquistado. E aí é que vem a parte bonita da história.

A essa altura eu já me encontrava entre a tristeza e a indignação com a trairagem. Eis que meu Tio Afonso começa a descrever a foto que foi tirada naquele dia. A foto que registraria para sempre o primeiro time do Rio Branco, que ano passado completou meio século. Afonso não estava lá. Mas a caixinha do massagista, que podia ser vista ao lado dos jogadores, era a caixinha do Quarto Centenário, com o escudo do time, que ele, Afonso, tinha ajudado a desenhar.

Vejam como é o futebol. O cara foi sacaneado. Viu tirarem dele uma chance que até hoje lhe causa dor mas, de repente, se sente vingado porque, afinal, a caixinha do massagista ali ao lado garantiria pra sempre a presença dele naquele dia inesquecível. O resto, bom resto é acidez dos homens que jamais irá causar surpresa a quem foi moldado na várzea. Além disso, basta alongar um pouco a conversa pra perceber que apesar de tudo as alegrias foram bem maiores que as tristezas na longa fieira dos dias vividos nos velhos campos de terra vermelha.