quinta-feira, 24 de março de 2011

O Majestoso

O cara é frequentador de estádios, conhece muito bem as malandragens e os segredos das arquibancadas. Autêntico arquibaldo. Mas quando ficou sabendo que o próximo clássico entre São Paulo e Corinthians teria a Arena Barueri como cenário, arregalou os olhos e disse:

_Tá louco? Eu não vou. Não vai dar certo.

Eu, que acompanhava tudo a meia distância quis saber a razão. Por que alguém que já se dispôs a acompanhar o Corinthians em visitas que se insinuavam nada cordiais se negaria a assistir um jogo em uma Arena tão perto e com nível de conforto até acima da média? A resposta veio rápida:

_ Os acessos. Ali é tudo muito espremido pra sair e chegar.

Não acho e não quero acreditar que ouvia uma profecia, mas a cena retrata a realidade atual do clássico que um dia foi apelidado de "Majestoso" pelo jornalista Tomas Mazzoni. Pode não se tratar do confronto de histórico mais violento mas é de longe o mais aquecido, porque como se não bastassem as rusgas legítimas que passaram a ser alimentadas em campo desde o longínquo primeiro embate nos idos de 1936, nos últimos anos dirigentes de ambos os lados, e alguns jogadores também, têm feito o possível e o impossível para deixar claro o quanto uma vitória sobre o arquirival se tornou questão de honra.

Na história recente desse clássico a partida do dia 15 de fevereiro de 2009 tem papel importante. Foi pouco antes dela que a diretoria do São Paulo - amparada em solicitação dos responsáveis pela segurança - decidiu entregar aos rivais apenas dez por cento das entradas, deixando para trás a praxe de dividir a carga de ingressos. Andres Sanchez, presidente do Corinthians, jurou nunca mais jogar no Morumbi, e tem cumprido a promessa.

Ocorre que nos últimos tempos, alugar o Morumbi para shows se tornou uma ótima fonte de renda para o tricolor e, por essa razão, no próximo final de semana serão os integrantes da banda Iron Maiden, e não os atletas do time tricolor, os encarregados de ocupar aquele gramado.

Diante dessa situação só restou procurar um outro lugar para encarar o Corinthians. O Pacaembu, com o mando preservado e seus respectivos números de ingressos, talvez fosse a decisão mais acertada. Mas lógico que essa rivalidade incendiada, mais por vaidade do que por futebol, tornou essa saída inviável.

Pra ajudar, a partida será disputada no momento em que os corintianos gozam a felicidade de um tabu que já dura onze jogos. Coisas do futebol. Antes disso foi o Corinthians quem amargou um jejum daqueles. Entre 2003 e 2007 saiu de campo treze vezes sem o prazer de derrotar o rival.

Trata-se de dois grande times, com envergadura para figurar entre os maiores do mundo, e que não têm deixado o torcedor sem gols. Prova disso é que nesses últimos onze jogos, que construíram o tabu que o time do Parque São Jorge defende, apenas uma vez saíram de campo deixando pra trás um placar de zero a zero.

Dirão os sãopaulinos que isso só aconteceu porque naquele dia o juiz anulou um gol legítimo marcado por Adriano. Ele mesmo, o Imperador! Os corintianos, por sua vez, vão preferir lembrar do dia em que, jogando no Morumbi por obrigação, viram Ronaldo, o Fenômeno, dar o passe para o primeiro e depois marcar o segundo gol numa vitória por dois a zero que está prestes a completar um ano.

E pensar que o mítico título do Paulistão de 77 foi conquistado pelo Corinthians no Morumbi, hein? Não tenho nada contra essa rivalidade, apenas gostaria que ela fosse mais inteligente, e não acabasse transformada numa ameaçada velada à beleza do Majestoso.

quinta-feira, 17 de março de 2011

Vida, minha vida

Vida? Vida é essa água me batendo na cara antes das seis da manhã, avisando do dia que se aprontou e me espera muito além da porta do barraco porque o mundo é um cabra vexado que não espera ninguém, que não tem uma estação de nome sossego.

Se faz calor o sol não tarda a tirar o suor da pele da gente nesse ônibus lotado. Se frio faz, antes do primeiro passo se instala na nossa alma a sensação gelada de quem tem pouco. De quem tenta barrar o vento com roupa fina de tão gasta. Temperatura baixa que se entranha com facilidade entre os vãos das nossas calças puídas. Sofreguidão com destino certo: o batente.

A obrigação sem direito a bom dia ou boa tarde. Um cansaço que se abate sobre o corpo tal qual prestação que espera pagamento. A comida requentada tragada num canto. Trazida de longe. Comida cujo acompanhamento é um olhar espantado prum mundo muito além desse nosso, um mundo que passa a bordo dos carros, dos ternos, dos luxos fugazes de quase tudo que se compra com o dinheiro que a gente mesmo trabalhando a vida inteira não terá.

Como eu aqui, com os companheiros, não tenho nem sirene pra avisar que a jornada diária chegou ao fim, nem cartão de ponto, nem vale-refeição, nem registro. Entro e saio desse ofício meio marginal sem carteira, sem fundo, sem garantia. Mas somos gente, e gente do bem sempre que chega ao fim de alguma tarefa, mesmo por pura obrigação ou necessidade, sente no peito uma ponta de orgulho. Um gosto bom de ter cumprido um papel. Sentimento que ajuda a voltar pra multidão com alguma ilusão. E isso, acreditem, faz muita diferença.

Faz a gente se dissolver melhor na massa. Eu queria era contar pra mãe dessa vida que essa gente inventou aqui. Uma vida maluca em que se passa os dias sem plantar nada, sem ter horizonte pra olhar e, pior, sem nada pra colher depois de tanto esforço.

Na novela, que a mulher insiste em ver antes de dormir, há um resquício daquele mundo que a gente viu passar nesse transe diário de ir e voltar. Pistas de um mundo que o pessoal aqui ao redor não enxerga como nosso.

E se é dia de jogo, sempre dá pra lembrar com alguma felicidade da vida que existia quando, ainda menino, a gente sonhava que era a bola que nos daria outras possibilidades.

Depois é só um sonho doído. Uma noite que distrai e assusta esse meu corpo exausto, que já não vê madrugada, um tanto judiado por alguns tragos que não consigo abandonar. Um corpo ausente de grandes pecados, ausente da boêmia.

Lá no fundo é como se eu, de tão maduro, não conseguisse esquecer, nem por um só segundo, que antes das seis da manhã, um novo jorro de água voltará a jogar a vida na minha cara.



* inspirado nas " Cartas à mãe" de Henfil

quarta-feira, 16 de março de 2011

O mito do equilíbrio

Era dia desses que nos faz dizer verdades o que vivia quando me pus a digitar este artigo. Não digo verdades no sentido mais absoluto da palavra porque não alimento tal pretensão. Digo verdade como algo que de tão evidente, tão óbvio, se torna incômodo. Dou um exemplo.

Dias atrás o fato dos quatro grandes times paulistas terminarem uma rodada do torneio estadual com o mesmo número de pontos causou exaltação. A igualdade numérica tomou ares de grande acontecimento. Especialistas logo se puseram a vasculhar os arquivos com a intenção de esclarecer o quanto essa situação era mesmo singular.

Ora, se a atual edição do Campeonato Paulista tem alguma virtude não é essa, e sim a de dinamitar de uma vez o mito do equilíbrio. Em geral nas conversas que ouço sempre há a sugestão de que o equilíbrio poderia nos reservar um tipo de paraíso ludopédico, um nirvana daqueles em que cada partida se tornaria mágica. Pura balela.

Poderíamos ter vinte times com o mesmo número de pontos que estaríamos do mesmo modo cercados por esse marasmo que anda rondando o futebol não é de hoje. Tivéssemos vinte Gansos, um em cada time, aí sim a história poderia mudar muito e o paraíso ludopédico, enfim, talvez se apresentasse.

O Paulistão está nivelado não resta dúvida, o futebol está cada vez mais nivelado, mas a qualidade técnica está longe, muito longe de ser impressionante. Nada tem dado um grande caldo, nem mesmo os clássicos, nada. Esse pretenso equilíbrio não deveria ser tratado como algo importante e vou dizer porque. Porque depois da rodada do último final de semana estou convicto de que só o talento dos jovens é que tem salvado o Paulistão da modorra.

Não que eu não respeite o chute preciso de Marcos Assunção ou a técnica apurada de Rogério Ceni. Agora, quando começo a imaginar o torneio sem o estilo e a leveza de Neymar, sem a categoria de Paulo Henrique Ganso, ou sem o momento mágico e preciso de um Lucas, resta quase nada.

E já que é pra dizer verdades (ou seriam obviedades?). Quero registrar aqui que o Santos pode até não conseguir, ou não querer, convencer Muricy Ramalho a assumir o time da Vila Belmiro. Mas um clube que conseguiu montar um elenco como o do Santos, que alimenta as pretensões que o Santos alimenta, tem a obrigação de fazer o possível - e quem sabe até o impossível - para trazer o treinador que conquistou quatro dos últimos seis campeonatos brasileiros.

Muricy tem bem mais do que títulos pra justificar esse esforço. Pra usar uma palavra que costuma aparecer com certa constância no vocabulário do próprio Muricy, pode até não dar liga. Ao passo que não tentar seria desdenhar de uma oportunidade que não se tem todo dia.

O detalhe nesse caso, é que o Santos talvez não tenha trinta dias para gastar, esperando que o treinador cumpra sua espécie de "quarentena" que, aliás, parece ser de muito respeito com o futebol e com o ser humano que passa a vida se dedicando a ele.

quinta-feira, 10 de março de 2011

Futebol e carnaval

Toda vez que um carnaval chega ao fim eu me lembro da bela "Marcha da quarta feira de cinzas", música de Carlos Lyra. A versão que trago cravada na memória é interpretada por Vinicius e Toquinho. Obra de um lirismo absurdo. Pra mim uma prova contundente de que o saudosismo é capaz de produzir coisas maravilhosas, ao contrário do que costumam dizer os que fazem questão de se mostrar em total sintonia com a modernidade. Que fique claro, não é o meu caso. Tenho, aliás, sérias restrições no que diz respeito a modernidade.

É que nestes dias em que os desfiles de carnaval invadiram a grande mídia ouvi muita gente se deixar tomar por um certo saudosismo, o que reforçou a minha lembrança de tão sonora marchinha. Ouvi muita gente dizer por aí que o carnaval virou um grande negócio, que perdeu seu clima romântico, que já não é mais aquele.

E foi ouvindo tais observações, tais lamentos, que em dado momento a comparação com o futebol se fez inevitável. Uma similaridade que vai muito além dessas ricas campanhas para vender cerveja, que se alimentam nos dois casos de uma euforia muito parecida.

No futebol também tem sido assim. Há muita gente por aí saudosista, dizendo que o futebol não é mais aquele. Confesso que há muito tempo o carnaval deixou de ser sinônimo de diversão pra mim. Faz anos que me rendo apenas aos grandes truques de cena levados pra avenida, truques que jamais escapam da cobertura jornalística, justamente onde eu acabo sabendo deles. Foi o que aconteceu este ano com os integrantes daquela comissão de frente que subitamente perdiam suas cabeças. Achei o máximo. Grande sacada.

Seria muito bom se os homens da bola tomassem esse espírito emprestado e se esmerassem na tentativa de levar o jogo a outro patamar. Futebol não é carnaval dirão os puritanos. Realmente não é, mas e daí ? Vai me dizer que tudo já foi inventado em matéria de futebol ?

Partilho dessa ideia de que tanto no carnaval, quanto no futebol, existe algo que se perdeu. E acho triste essa encruzilhada atual em que os dois se encontram. Ambos nasceram sem dinheiro. Ambos ganharam o estrelato graças ao suor de gente simples que pensava, acima de tudo, em se divertir. Ambos tinham o improviso como dogma. Hoje não, no gramado ou na passarela quem cuida do show sabe muito bem que ele custou caro demais para ser colocado sob risco.

Apesar de tudo, arrisco dizer que o carnaval tem levado certa vantagem, afinal, nos seus grandes palcos continua se apresentando sempre com casa cheia. Não está exposto a um calendário canibal, ao menos até que um esperto qualquer cheio de dinheiro pra gastar não proponha fazer um desfile no meio do ano usando como maior argumento a flagrante ociosidade dos nossos sambódromos ao longo do ano.

Dirão os modernos que as cifras de um clássico ou a majestade de um desfile na Sapucaí nos dias atuais por si só provam a evolução do nosso futebol e do nosso carnaval. Compreendam, sempre tive certa dificuldade em acreditar que é preciso aceitar de tudo já que o mundo só anda pra frente.

O que sei é que enquanto os refrões de Carlinhos Lyra rondam minha cabeça dizendo que "ninguém mais ouve cantar canções/ ninguém passa mais brincando feliz/e nos corações/saudades e cinza foi o que restou", me recordo também dos versos de Caetano Veloso numa famosa canção que faz parte da trilha sonora do filme Tieta, aquela que diz "Futebol e carnaval/ Nada muda, é tudo escuro/Até onde eu me lembro/ Uma dor que é sempre igual".

Nos gramados ou nas passarelas, nós, brasileiros, estamos todos frente a frente com dois dos nossos maiores espelhos. E ainda bem que existe a arte para nos aclarar os sentidos.

quinta-feira, 3 de março de 2011

Futebol. Do que se trata?

Não podia perder a deixa que a CBF deu ao se defender no caso da máfia do apito. Não sei se vocês viram isso. Mas para se livrar da pena e, principalmente, pra não ter de abrir o cofre, a nossa poderosa Confederação fez questão de dizer verdades e inverdades.

Escreveu em sua defesa que esse papo de tratar o jogo de bola como paixão nacional é "slogan para vender cerveja", que "o futebol não tem interesse social relevante". E foi além. Fez questão de dizer também que o futebol contribui "para a desinformação do povo, já de si mal aparelhado intelectualmente". Desculpem, mas aí está a pura verdade. Em especial na constatação do "mal aparelhado intelectualmente". Já desdenhar da nossa paixão ludopédica foi afronta, jogo baixo. Inverdade. Como inverdade me parece ser duvidar do "interesse social relevante" desse tipo jogo.

Por exemplo, esta semana a Argentina revirou um pouco mais a sujeira da ditadura imposta naquele país. A figura central dela era o general Jorge Rafael Videla, que com outros réus irá responder por rapto, ocultação e troca de identidade de algumas dezenas de crianças. Para muitos Videla atingiu o auge do poder quando fez da Argentina a sede da Copa do Mundo de 1978. Mundial que terminou com a própria seleção do país conquistando a taça.

Pois um livro lançado três anos atrás - "A vergonha de todos" - relata o fervor popular pelo evento em meio a um regime de terror. Afirma, inclusive, que naquela fatídica partida em que os donos da casa venceram o Peru por seis a zero, tirando o Brasil do caminho, o general Videla fez questão de visitar o vestiário dos peruanos antes do jogo, acompanhado pelo secretário de Estado dos EUA, Henry Kissinger. No discurso teria versado sobre a solidariedade entre os dois povos.

Ora, fosse o futebol um jogo simples, incapaz de mexer com o imaginário de um povo, não creio que generais e ditadores ao longo da história teriam gasto tanto tempo com ele.

Mas sugiro aproveitar a deixa da CBF pra tentar colocar o futebol no seu devido lugar. Como diria um amigo, filósofo do tipo que costuma brilhar pra valer no calor terno das discussões travadas sobre a luz difusa dos botequins: O barato do futebol é que é o homem que está ali. O homem com todas as suas contradições e possibilidades.

Pobre daquele que não vê como o jogo nos vai na alma, como fez questão de lembrar com toda a graça possível, o iluminado Carlos Drummond. Sim, porque o futebol reduzido ao resultado é e será sempre menor, coisa de gente "mal aparelhada".

Há nas entrelinhas de qualquer jogo o embate do homem consigo mesmo. Dar-se por contente com a vitória é aceitar o mínimo. Querem nos fazer acreditar que os derrotados perdem o direito a alegria e devem aceitar com resignação o sarro adversário. Nada disso. É perfeitamente possível ver seu time derrotado e ser feliz.

De que adiantou Nelson Rodrigues nos alertar de que o futebol é a coisa mais importante entre as coisas desimportantes, se o mundo continua cheio de babacas dispostos a arrumar confusão e a matar em nome do futebol? Não existe crime passional quando se trata de futebol. Existe é ignorância.

Os derrotados de hoje serão os vitoriosos de amanhã. Veja, quem diria que o Corinthians sem Roberto Carlos, sem Jucilei, sem Ronaldo, seria imediatamente vitorioso? Vou além, sem medo. Anote aí: Na minha opinião Liedson tem sido muito mais surpreendente do que Ronaldinho Gaúcho.

Que surpresa há em ver um atleta que já foi alçado duas vezes à condição de melhor jogador do mundo conquistar uma Taça Guanabara? Conseguir dar um pouco de alma a um time? Vá lá, o gol de falta que levou o rubro-negro ao título foi bonito, mas esteve longe de ser improvável.

Improvável era apostar que o tal "levezinho" do Corinthians, dois anos mais velho que Ronaldinho, iria fazer o que temos visto nas últimas cinco rodadas. Concordo com o que ouvi outro dia. Liédson anda fazendo gol até quando erra. E isso é demais. Deixemos de lado o futebol levado ao extremo. Vamos curtir o acontecido com um olhar sereno. Vamos aproveitar a deixa que a própria CBF nos deu e nos render ao supremo barato do futebol que é o fato do homem estar ali, totalmente nu, com suas possibilidades e contradições.

Além do mais, se fossemos bem aparelhados intelectualmente escrever aqui que as derrotas futebolísticas não encerram nada seria desnecessário, e eu teria na mão um tema muito mais eloquente e grandioso para vos apresentar. Fazer o quê? O jogo da vida é feito de muitas bolas fora. Não dá pra negar.