quinta-feira, 26 de março de 2009

Uma torcida só

Faz quase dez anos.

Estava nas numeradas do Morumbi acompanhando um clássico entre São Paulo e Corinthians. De repente, um torcedor à minha frente se levantou e começou a trocar insultos com um torcedor rival que estava no outro setor. Distante.

Entre eles uma imponente grade de ferro.

Minha primeira reação foi de espanto total. Não percebi nada, nenhum gesto que pudesse desencadear aquilo tudo. Talvez os dois tivessem trocado olhares antes daquele instante, se provocado, e isso tenha sido o suficiente. Cheguei a pensar que aquilo não passava de uma brincadeira grotesca.

Mas, pouco a pouco, eles foram se aproximando da grade.

E as ofensas aumentando, deixando todo mundo ao redor constrangido com aquela cena bizarra. Não demorou muito estavam cuspindo um no outro. Bradando palavrões cabeludos. Bárbaros. Tinham esquecido totalmente o futebol, não tinham mais o menor interesse pelo que se passava no gramado. Acredito que se não tivessem separados pela tal grade de ferro teriam trocado socos e ponta-pés até que um deles perdesse a consciência e deixasse de ser capaz de levar adiante aquela agressividade.

Essas palavras, confesso, me incomodam.

Não gosto de mal dizer o futebol, por causa dele já testemunhei muitas cenas encantadoras. Cenas que me emocionaram, que me levaram às lágrimas. Lágrimas e encantamentos que precisei dissimular porque não é isso que se espera ver estampado no rosto de um repórter esportivo.

Como dizia Gandolim - e não falo de nenhum ex-jogador, falo de um comediante italiano - o repórter deve ser dotado da fibra robusta dos carteiros.

Mas o que me faz perder a esperança é a constatação de que as boas coisas estão longe de contagiar tanto quanto a hostilidade desses infelizes que frequentam os estádios. Ao passo que uns poucos ignorantes são capazes de colocar a vida milhares em risco.

Veja. Qualquer cidadão de bem jamais pensou em desafiar a polícia. Não é o caso desses vândalos. As fardas e cassetetes não lhes intimidam. São homens, e até meninos, que partem para cima dos policiais sem o menor temor, trocam socos com eles cheios de desprezo pela autoridade. Estão escancaradamente conscientes de que os estádios viraram terra de ninguém.

Não, não se trata de um fenômeno nacional.

E não esqueço de uma partida da Libertadores entre São Paulo e River Plate. Lembro de ver um argentino enorme, com um pedaço de madeira arrancado dos bancos do Morumbi nas mãos, vestindo uma camisa 10, partindo pra cima de dois ou três policiais armados de escudos. Creiam, ele colocou os três pra correr. E provavelmente contou a façanha cheio de orgulho para seus colegas baderneiros na volta aos arredores de Nuñes.

Nem em sonho sou capaz de acreditar que esses doentes possam ser domesticados com carteirinhas.

Eles fizeram os estádios virarem a própria ameaça. Pode haver coisa mais triste, mais limitada, do que um jogo de uma torcida só? Mais triste do que isso, só pensar que o dia em que esses animais não tiverem mais um adversário na arquibancada, ainda assim estarão por aí. Marcando brigas pela internet, tramando emboscadas em estações de Metrô. Ameaçando nossos filhos, ameaçando qualquer um que ainda tenha coragem de vestir a camisa de um time de futebol, ameaçando qualquer um que tenha a coragem de desfraldar uma bandeira.

A violência deles há tempos reduziu times de futebol a argumentos de guerra. Uma guerra onde só perdem os torcedores de bem.

Jamais seremos uma torcida só, graças a esses outros.


* artigo escrito para o jornal " A tribuna", Santos

quinta-feira, 19 de março de 2009

O menino

Não há coisa mais bonita no futebol do que um menino. E o futebol voltou a ter um menino. Neymar. Guri, dono de um corpo franzino. Há tempos tratado com o cuidado que, normalmente, só se dispensa aos nobres. Está fazendo o maior sucesso.

Também pudera, o que ele traz consigo é precioso. E de tão precioso faz os olhos dos mercadores brilharem. Jamais haverá marmanjo - por mais talentoso que seja - capaz de fazer o que ele fez no primeiro dia em que vestiu a camisa de titular do time profissional do Santos. E por uma razão simples, o futebol dos marmanjos não exala pureza. Aos amadurecidos não é dado esse dom.

Não é à toa que toda jogada genial, toda pedalada, toda criação inusitada, usando a bola como meio de expressão, sempre soa como molecagem. E o efeito disso revigora. É só sentir como os comentários que partem da boca dos adoradores do time da Vila Belmiro, nos últimos dias, nos chegam cheios de vibração, de vida. Puro efeito colateral de toda boa energia contida nessa meninice talentosa solta no gramado. E isso justamente na semana que antecede um clássico contra o arqui-rival. O que mais os santistas precisam pra sonhar com um domingo daqueles?

O resto é o imaginário viajando no tempo, incontrolável. Num exercício de buscar no passado outros momentos em que o futebol foi sacudido por um menino. Os mais novos encontram Robinho. Os mais velhos, afortunados, tiram dos melhores arquivos da memória, os dias longínquos em que um outro menino, Pelé, lhes causava essa mesma sensação. Bonito, bonito.

Mas, Neymar, saiba desde já, que poucas coisas nesse mundo são tão ameaçadas quanto a beleza. Não creia em histórias de Reis, muito menos na bajulação das manchetes que irão lhe cortejar dia após dia. Esqueça essas comparações com outros jogadores, elas só valem pra torcida. Os outros craques que desfilaram por aí não devem ser copiados, devem servir de inspiração. E só. Ocupe-se de lapidar e desenhar o seu estilo.

Não se renda a nenhuma cifra. Nenhuma. Porque nenhuma delas deve ser suficiente para comprar um homem. E muitas vezes é disso que trata o futebol. Uma montanha de dinheiro, seja qual for o tamanho dela, nunca será garantia de um futuro digno e feliz.

Os mais possessivos dirão que não foi bem o futebol que enriqueceu com sua chegada, foi o Santos. Tudo besteira. Lucrar é uma coisa, ser rico, outra. O futebol é, e sempre será, muito maior do que qualquer clube.

E mais. Não se intimide. Não faltarão brucutus para lhe ameaçar. E saiba que qualquer cabeça-de-bagre um pouco mais esperto estará consciente de que tudo que ele tem pra vencer alguém como você é a catimba e a violência. Ouse. Contra cada jogada dura, aposte na sua leveza.

E surpreenda os maus adversários mostrando, só pra eles, o quanto você é capaz de se defender. Sempre que possível, aproveitando que és peixe, afogue-os num mar de dribles. Duvide sempre de quem o aconselha.

E nunca deixe de comemorar seus gols dessa maneira limpa, brilhantemente sugerida pelo seu pai.


* artigo escrito pra o jornal " A tribuna", Santos

quinta-feira, 12 de março de 2009

O torcedor

Torcedor é, antes de tudo, instinto.
Mas não um instinto natural, um instinto diferente, admitido, concebido.

Torcedor é alguém esquisito. Um ser que sangra um sangue invisível só de ouvir que seu esquadrão não triunfou. Torcedor é uma linda ausência de razão. O que os olhos dele não vêem o coração sente, e como sente.

Torcedor é o que ousa desafiar o provável. Torcedor é imenso.

Torcedor é coisa tão vital que foi ele que o "fenômeno" procurou depois de explodir de alegria no último domingo. Torcedor parece ter sido inventado justamente pra esse instante em que nem uma comemoração com a própria mãe faria tanto sentido.

Ao falar dele, do torcedor, falamos de uma alma condenada a um sentimento capaz de irmana-la com um desconhecido. Uma alma condenada a trazer consigo um impulso incontrolável que faz brotar na boca, numa ínfima fração de segundos, um palavrão que dinamita a educação, os bons costumes. Um desatino.

Quem torce desafia sem querer a caretice intelectual de quem não consegue esquecer que o futebol é o ópio do povo.

E chega de Ronaldo. Chega!

Não estranhe não. É isso mesmo que estás pensando. Essas linhas, hoje, foram escritas pra você, em vosso nome, por alguém que se recusa, de maneira rebelde até, a propor comparações inexplicavelmente simples, como a que o reduz meramente a um ser apaixonado.

São palavras alinhadas para enaltecer os que um dia juntaram dinheiro pra comprar um ingresso. Palavras escritas pra quem um dia qualquer acordou cedo só pra acompanhar um jogo chinfrim num campinho singelo, ou pra quem se deixou levar pela ginga descoberta repentinamente ali na areia da praia.

Torcer é ampliar a possibilidade do sarro bem tirado, da alegria dividida.

Torcer é aceitar o risco prazeroso de uma dor que não mata. Torcer é aceitar que uma paixão nos toma tempo e nem sempre traz satisfação plena.

Torcedor é um ser que sonha acordado um sonho que não é seu, porque torcer é ter o poder de viver o delírio de colocar a bola entre as pernas de um adversário mesmo quando o pé que conduz a bola não é o nosso.

Dos torcedores é um reino absurdo e mágico. Antiquado e trágico. Mas onde a esperança de um acontecimento sublime está sempre viva.

Torcer é detectar uma certa pobreza escondida entre todas as teorias daqueles que não entendem esse ato.

A beleza do torcedor é resistente, humanamente complexa. Podem lhes tirar as bandeiras. Podem aumentar o rigor das revistas nas portas dos estádios. Podem ameaçá-los com a gatunice dos cambistas. Podem entregá-los à esperteza dos flanelinhas. Torcedor resiste.

Mas, olhe as palavras ao redor. Repare nos títulos. Investigue os primeiros parágrafos dos jornais. Tudo isso foi feito pra eles, em nome deles. E eles pouco aparecem.

O torcedor é um místico.

O torcedor sugere o vazio que ameaçaria os santos na ausência dos devotos.



* artigo escrito pra o jornal "A Tribuna", Santos

quarta-feira, 11 de março de 2009

Ronaldo Luiz Nazário de Lima












"Que é um herói? É um homem... que viveu uma vida humana mais intensa e mais larga do que a mesma...Ou ainda, um qualquer saído um dia da multidão obscura, para realizar um... feito, mas esse tão grande, tão belo, que o imortalizou" *



* Charles Wagner, orador francês (1852/1918)

Foto: UOL

quinta-feira, 5 de março de 2009

O ocaso do Paulistão

O jogo de bola anda xôxo! E a caça às bruxas corre solta.

É preciso, urgentemente, achar um culpado pra toda essa monotonia que se abateu sobre os gramados paulistas. É preciso uma explicação. Algo que possa aclarar que tipo de vírus é esse faz o sujeito não acertar um passe de dois metros.

Quem irá admitir que o nosso futebol não é mais aquele? E insistir? Pode pegar mal, eu sei.
Que heresia, dirão! Falta-nos coragem, esse requisito fundamental... como já sugeria Guimarães Rosa.

Bem mais fácil do que isso é crucificar o Campeonato Paulista , essa entidade que atravessou o último século a brincar com o coração dos nossos pais, nossos avós, tantos outros.

Gente que um dia separou seu melhor terno e seu melhor chapéu e caminhou calmamente para o estádio onde seria disputado uma peleja do estadual. E foi assim, transbordando simplicidade. Comprando o ingresso na hora. Com direito a esquecer da vida nas arquibancadas antes da bola rolar.

Uma cena entre tantas. Cenas que se distanciaram do nosso cotidiano.

Hoje a curtição está a serviço do anseio de grandiosidade que tomou a torcida. E viva a UEFA, a Champions League, o Chelsea e seus milhões. E não são apenas os jogadores, a mídia também anda amarradona no glamour, na Libertadores, anda empolgada com ela. Silenciosamente.

E não pense que são apenas os jogadores que encaram essa ou aquela partida de maneira diferente. Os repórteres também. Trata-se de uma cumplicidade inconfessável.

O problema não é exatamente a fórmula, o Campeonato Paulista. O problema é que as mazelas do futebol brasileiro foram corroendo a estrutura, a força , a vitalidade dos pequenos clubes. Clubes que deram status para muita gente por esse interiorzão à fora.

Mas que tipo de futebol podemos esperar de um reino onde o equilíbrio está seriamente ameaçado? Comprometido mesmo.

A nossa realidade repleta de investidores, de direitos federativos repartidos, de transações com o exterior, de procuradores bem sucedidos, está a ponto de fazer dos pequenos times meros figurantes, cujo papel, às vezes, pode ganhar certa importância. E só.

Não é difícil compreender que o tempo passou, ácido, transformando tudo, tecendo novas coisas obsoletas. Ok, entendo. Não dá mais! Quem sabe?


Só acho que o respeitável Campeonato Paulista não deveria sair de cena de forma tão melancólica. Merecia reverência maior. Em nome da nossa história, da nossa memória.

Muitos já jogaram a toalha, pressentindo, é provável, que recuperá-lo só será possível no dia em que nosso futebol estiver curado dessas chagas que lhe fazem adoecer.


Num futuro próximo, o domingo vindouro pode não ter mais um Palmeiras e Corinthians como o que se aproxima, mas que eu ainda espero ansioso.



* artigo escrito para o jornal "A Tribuna", Santos

terça-feira, 3 de março de 2009

Então, a regra é clara?

2 - Sonha o menos possível, excepto quando o propósito directo do sonho for um poema ou uma produção literária. Estuda e trabalha.

3 - Tenta ser o mais sóbrio possível, antecipando a sobriedade do corpo por uma atitude sóbria da mente.

7 - Tenta cativar por aquilo que teu silêncio contém

9 - Organiza a tua vida como uma obra literária, pondo nela tanta unidade quanta seja possível.



* Regra de vida - Fragmentos do livro " Fernando Pessoa, escritos autobiográficos, automáticos e de reflexão pessoal"